Além de Múcio Bezerra, este texto é dedicado aos saudosos amigos Elaine Rodrigues, Rodolfo de Bonis e Sebastião Reis, que evitaram os calhaus da vida, anteciparam o fechamento e foram embora mais cedo.
Dario veste a camisa 9 do Internacional na decisão antecipada contra o Fluminense, domingo de muito sol no Maracanã, 10 de outubro de 1976. Empate eletrizante, 1 a 1. Rivelino e Falcão não jogam. Outros craques estão em campo. Pintinho, Gil, Paulo César Caju e Carlos Alberto Torres compõem a Máquina Tricolor. Batista, Manga, Lula e Figueiroa defendem o Expresso Colorado. Jogo nervoso, disputadíssimo. Em determinado momento de pressão carioca, no segundo tempo, o contra-ataque gaúcho: Batista retoma a bola na intermediária e lança, em profundidade, o ponta-esquerda Lula que, veloz, se livra do goleiro Renato e toca para a meia-lua. Gol vazio. Dadá Maravilha bombardeia. Jorge Cúri berra aos ouvidos em suspense. A bola toma velocidade e efeito espantosos, raspa o travessão. Alívio de um lado. Irritação de outro. Perplexidade geral.
Ao ser substituído por Escurinho, Dario é imediatamente cercado pelos microfones.
- O que houve, Dadá? O gol estava vazio...era só dar um totozinho que a bola entrava...
Dadá para à beira do gramado, respira fundo, sorri e sentencia:
- Eu queria era ver a rede estufar!
Pelas ondas do rádio, a resposta singela de um goleador folclórico incendiava a imaginação. Terceiro maior artilheiro do futebol brasileiro (926 gols de todos os ângulos e maneiras), Dario filosofara. Era a questão exata: as pessoas já se conformavam (conformam-se cada vez mais) com o meio-gol, o gol mixuruca, chorado, medíocre, em que a bola às vezes sequer toca na rede. E piorou muito nos últimos 30 anos. O importante é somar um pontinho, para se manter no G-4, no G-8, no G-12 (expressões emprestadas ao economês), como um país emergente no "mundo plurilateral". Qualquer migalha serve, desde que nos ajude a pôr os pés em certames lucrativos, uma Libertadores, uma Sul-Americana. O desprezo pela bola e pela rede é indignante!
Muitos anos depois, a história do petardo de Dario voltaria a ser lembrada na conversa inaugural com o companheiro Múcio Bezerra, no Galeto, na Rua de Santana, em frente a O Globo, entre doses de Teacher's, Red Label, azeitonas, rodelas de salaminho e cubinhos de queijo prato. Estávamos nos conhecendo naquela tarde e começando a construir uma amizade que superaria barreiras geográficas e temporais. Múcio ajeitava os óculos e prestava atenção de coruja. Três horas se passaram, o assunto mudara completamente de rumo, e Múcio, a cabeça um tanto tonta, preparava-se para partir, quando rematou, escandindo as palavras:
- É, rapaz...Essa história do Dario é do caralho...Dava uma puuuta matéria! Eu que-ro é ver a re-de es-tu-far! Ho! Ho! Ho! (Ele tinha uma risada de Papai Noel).
A partir de então, a sentença do Dario se tornaria um código secreto entre nós, palavras de incentivo mútuo, diante de uma boa história, de uma "puuuuuta matéria". E mesmo com uma pauta ingrata, Múcio saía feliz da redação e quase sempre surpreendia a chefia, porque construía, com observação sagaz e texto brilhante, a "puuuuuta matéria." Voltava esfregando as mãos:
- É hoje...é hoje que a rede vai estufar!
Certa vez, Múcio telefonou à noite para o flat onde morávamos em São Paulo para comentar uma reportagem de três páginas veiculada na Gazeta Mercantil, "O Rio que fez de um Joaquim Maria o Machado de Assis", a propósito do centenário da primeira edição de Dom Casmurro.
- Aíii, canalha! A rede estufou e deu para ouvir o barulho da arquibancada!
Jornalista que não trabalhou nas redações de O Globo e do JB nos últimos 15 anos do século passado, tem um motivo justo para se sentir frustrado: o de não ter labutado, aprendido, conhecido, convivido e bebido com o Múcio Bezerra, o texto mais criativo da imprensa carioca. Múcio tinha tudo o que, infelizmente, falta à parcela significativa dos colegas de hoje: competência, generosidade, companherismo, inteligência, sensibilidade crítica, adoração transgressora pelas palavras e muito bom humor. Ele nunca se levou a sério, condição sine quae non para se ser realmente levado a sério. Jamais foi carreirista, lambe-botas ou puxa-saco, motivo por que, talvez, fosse tão sinceramente querido por Evandro Carlos de Andrade, diretor de redação de O Globo por 25 anos, e por todos os funcionários do jornal, os colegas de profissão, as secretárias, as telefonistas, os faxineiros e os ascensoristas.
Um dia, por castigo, inveja ou bizarrice, inventaram de escalar o Múcio, por uma semana, na Repol, salinha de três metros quadrados da apuração, com duas linhas telefônicas, dois terminais de computador (Internet não havia) e um velho aparelho de radioescuta, que captava as frequências emitidas pelas centrais de telecomunicações dos bombeiros e das polícias civil e militar. Surpreendentemente, ele adorou a experiência. Pendurava o indefectível paletó cinza escuro no encosto da cadeira e ficava lá no canto, ouvido grudado no radinho, como torcedor fanático em final de campeonato. Anotava tudo. Em dois ou três dias, estava escolado no policialês.
Naquela semana de degredo, Múcio chegava sorridente à Sibéria particular:
- Alô, Repol, na escuta? Câmbio, guarnição em QAP! - anunciava, às gargalhadas.
- Companheiro Papa Mike, a genitora do mesmo elemento que se evadiu procurou um Papa Fox e um Bravo Mike, dizendo se tratar de um Papa Índia, que entrou num Tango Xiraia...- tartamudeava o rádio fanho.
Exegeta do submundo, Múcio concentrava-se para fazer a tradução simultânea: "Caro policial militar, a mãe do homem que fugiu procurou um policial federal e um bombeiro conhecidos, dizendo que o filho era um pé-inchado e escapara num táxi..." Restava só decodificar os números cantados no rádio da polícia: 121, 159, 932... e decorar os que correspondiam a homicídio, extorsão mediante sequestro, encontro de cadáver...
Feito o curso intensivo de Direito às avessas, Múcio redigiu uma reportagem extraordinária sobre o estranho léxico policialês. A reportagem foi sucesso de público e crítica. Divulgava para a sociedade, divertidamente, como a imprensa tinha acesso privilegiado (e proibido) às informações básicas das ocorrências policiais.
- Viu lá? A rede estufou! Golaço! Ho-ho-ho! - comemorava o potiguar, que talvez nunca tenha chutado uma bola.
Quando saía da redação às sextas-feiras (às vezes, em dias menos convenientes também), Múcio preparava-se para o serão, repórter diuturno que era. O itinerário começava no Bar do Felipe, na Rua Irineu Marinho, passava pelo Galeto e pelo Rocha (na Rua do Riachuelo, em frente ao jornal O Dia), seguia pela Gomes Freire, a Mem de Sá, a Lapa, a Praça XV...até chegar a Niterói, para a saideira sagrada no Steak House. Nas andanças noturnas, colhia histórias de putas, mendigos, malandros, boêmios, policiais do Coe (hoje Bope)... E as escrevia como ninguém!
Quem não se lembra das crônicas-reportagens do jaboti vítima de bala perdida de fuzil, do cachorro que calculava, do perfil romário do pai do Hilário ("o copo do mundo é nosso!"), da cadeira do Luís Carlos Prestes, da avenida do Sr. Amaral e do Sr. Peixoto? Praticamente, ninguém. É por isso que os repórteres Fábio Lau e Elenilce Bottari ("as mais belas e torneadas pernas do jornalismo", segundo o homenageado) decidiram se empenhar no lançamento de uma coletânea da obra jornalística de Múcio Bezerra,"uma campanha do jornalismo esperança". Sem deducão fiscal, todo o dinheiro arrecadado com a venda do livro será revertido para a família do jornalista, as filhas Aline e Maria e o gato de estimação, o Duque de Macau, cidade de 28 mil habitantes, a 175 quilômetros de Natal, onde nosso craque nasceu.
Múcio, aliás, tinha paixão por felinos e uma das últimas publicações em que trabalhou se chamava O Pulo do Gato. Um dia interrompeu o trabalho, porque a mulher o telefonara chorando: um gato siamês - das dezenas que teve - jogara-se do décimo-terceiro andar. "Os siameses são suicidas, e agora a minha casa virou uma UTI", ria-se, no dia seguinte, ao imitar o pobre gato com as quatro patas enfaixadas, depois de socorrido por uma guarnição da Defesa Civil. O amor pelos gatos inspirava até a ética muciana. "Sou muito leal, mas jamais serei fiel", dizia. "Fidelidade é uma atribuição canina, a lealdade é leonina, e o leão nada mais é que um grande gato."
Depois de trabalhar como topógrafo e técnico de Estradas de Rodagens - mais uma estranha coincidência que nos unia -, Múcio fez Jornalismo no início dos anos 80 e começou em redação com mais de 30 anos. Tinha opiniões próprias sobre o exercício da profissão. Dizia, por exemplo, que jabá é tudo aquilo que se recebe e não se pode retribuir de pronto, se necessário. "Jabá é carro, apartamento, dinheiro. O que há de mau em receber de uma assessoria uma caneta, um bloquinho, uma agenda ou uma garrafa de uísque? São tão úteis pra nós!", ponderava. Múcio também se empombava com a históra de jornalista depender de fontes, as mesmas pessoas que constantemente passam informações supostamente exclusivas a troco de vai se saber o quê. "Ora, ora, ora...quem tem fonte é cemitério e jardim!"
Múcio bebia muito (uísque e cerveja) e também fumava demais (pelo menos três maços diários de Minister), mas nunca bebeu durante o expediente convencional. Às vezes, de ressaca, preferia faltar ao trabalho a dar bandeira. Só uma coisa intrigava o departamento financeiro, quando Múcio voltava de viagens custeadas pelo jornal: a quantidade de jarras de suco que ele declarava, em notas fiscais, ter bebido a cada refeição. "Ele deve ter pedras nos rins", disfarçavam os mais chegados. Durante o carnaval, por exemplo, só água mineral com gás. Tinha à disposição duas páginas inteiras de crônica para cada dia de desfile das principais escolas de samba. Mesmo quem passava a madrugada na Passarela, só entendia a confusão, o burburinho, as tragédias e maravilhas do desfile, lendo o Múcio Bezerra do dia seguinte. E ele curtia aquela sensação, aquele estufar das redes. E desdenhava dessa vidinha medíocre do zero a zero.
Múcio Luiz Bezerra lutou contra o câncer até a madrugada do último 12 de maio, quando nos deixou, aos 60 anos. Viveu os últimos dias em Nova Friburgo, na região serrana do Rio, em dificuldades financeiras e com a ajuda de amigos. Assim mesmo, com a voz fraquinha, atendia ao telefone com o mesmo sorriso de Papai Noel e a pergunta recorrente: "E aí? A rede vai estufar?"
Cláudio Renato
Tudo bem, Márcio. O Múcio também não conseguiria postar. Segue o teu comentário
ResponderExcluir"Minha primeira reação à do jaboti paraplégico, antes de ler – quando um camarada me mostrou o exemplar do Globo –, foi pensar no ridículo de se gastar um alto de página de um veículo dito com uma premissa digna do casseta & planeta.
A má vontade explícita resistiu ao lide, mas foi se desfazendo nos parágrafos seguintes. Comecei achando impossível que aquela matéria merecesse qualquer espaço, e terminei com milhares de perguntas adicionais - que é o que acontece quando nos deparamos com uma boa reportagem.
Com a natureza inusitada do assunto, tratá-lo com sisudez ficaria patético. Tratar com escracho, por outro lado, desrepeitaria o sofrimento do animal (que não se pode negar) e o de seu dono.
Entre uma coisa e outra, e sem ser nenhuma delas, o cronista achou o tom perfeito. Passei o resto do dia me achando um incompetente, como podia ter sido incapaz de ver valor naquela história. Ficou a lição: não é só "o que" se conta, mas "como" ... e "por que".
Acompanhei algumas outras matérias dele, mas não cheguei a conhecê-lo, infelizmente.
Em tempo: "quem tem fonte é cemitério e jardim" é do caralho."
Márcio Beck
_ Probo deputado Gilberto Rodriguez!!!
ResponderExcluirLá vem Múcio adentrando o Galeto, meio sorriso de canto de boca, tirando riso de quem achava que aquela tarde seria mais uma das enfadonhas tardes no bar. Foi ali, no Galeto, que ouvi do Múcio as melhores histórias vividas por ele ou observadas por ele no universo jornalístico. E quando história faltava, ele tirava da pedra: "voce não tem um sobrenome, mas um convite", disse certa vez para saudar a chegada monumental da nossa brava Cátia Seabra. Naquela dia ou noutro próximo ele aceitou o desafio de Simone Intractor de tentar tocar o nariz com a ponta da língua. Já tocados sim pelo álcool, desistimos (eu e Gustavo Goulart) nas primeiras duas tentativas. E Múcio também teria parado se Simone não tivesse soprado baixinho no seu ouvido: "Sabe o que signfica conseguir tocar o nariz com a língua? Que voce é bom amante!" Múcio passou aquele e outros fins de noite tentando provar ser um Casanova. Terminado o expediente boemio, Assis levantando cadeiras, lá ia Múcio em busca de um novo bar, de uma estante com outros livros líquidos para esquentar a suas e nossas histórias.
Minha memória é traiçoeira, menos do detalhe essencial: Múcio era um dos melhores cronistas que o jornalismo brasileiro já produziu. Texto afiado, inteligente, de raro senso de humor. Merecia uma coluna no jornal para o qual escreveu algumas pérolas da reportagem do cotidiano, mas preferiram reserver o espaço para penas menos brilhantes. É do jogo - que nem sempre acaba com uma rede estufada.
ResponderExcluirA última vez em que estive com Múcio foi no Rocha. Era redatora do Dia e desci, numa noite de pescoção - que no Dia só acabava ao raiar do sol. Ia tomar uma coca light cheia de cafeína pra suportar a madrugada, quando ouço o brado: "Brava jornalista e maternidade Olga de Mello!!!". Era Múcio, saudando minha entrada, numa mesa que se deleitava com seu papo.
ResponderExcluirA referência é porque numa tarde de plantão sem qualquer desgraça na cidade, Múcio decidiu matar o tempo criando uma cidade fictícia, batizando escolas, praças, praias, lojas, o que fosse com as características de cada um. Na época eu só tinha dois filhos, mas ele já me consagrara a vocação - o que me decepcionou um pouquinho, já que pensava ser imortalizada como uma biblioteca ou livraria, ao menos.
Com Múcio, a vida era sempre motivo pra sorrir.
Múcio Bezerra me ensinou que a vida é tão pródiga, tão boa, que não saberíamos viver sem ela. E, ao modo dele, viveu a vida intensamente, feliz, risonho, piadista contumaz e, principalmente, amigo. Gravo na memória lides de matérias suas impagáveis. Cito um. Na época da pré-epidemia do cólera no estado, no início dos 1990, nosso bravo repórter, que já havia sido convidado a ser editorialista do Globo e declinou do convite alegando que nasceu para ser repórter, descobriu um caso da doença em Niterói. Encontrou o colérico no bairro de Engenhoca, Zona Norte da cidade. E escreveu: "Surgiu um caso de cólera em Niterói. Mas parecem dois, do ponto de vista do colérico, incapaz de fazer um quatro". O cara simplesmente estava se tratando com doses cavalares de cachaça. Depois conto mais. Bela ideia esta de homenagear o grande Múcio.
ResponderExcluirSir Renato,
ResponderExcluirInfelizmente, não sei nada sobre Múcio Bezerra, que, pelos comentários acima, era muito querido. Mas o que me chamou a atenção foi o fio da narrativa, um gol perdido pelo Dario e a reflexão filosófica que se gerou...É a madeleine de Proust, meu caro...Excelente narrativa
Graciano Filho - João Pessoa (PB)
Minha primeira reação à do jaboti paraplégico, antes de ler – quando um camarada me mostrou o exemplar do Globo –, foi pensar no ridículo de se gastar um alto de página de um veículo dito com uma premissa digna do casseta & planeta.
ResponderExcluirA má vontade explícita resistiu ao lide, mas foi se desfazendo nos parágrafos seguintes. Comecei achando impossível que aquela matéria merecesse qualquer espaço, e terminei com milhares de perguntas adicionais - que é o que acontece quando nos deparamos com uma boa reportagem.
Com a natureza inusitada do assunto, tratá-lo com sisudez ficaria patético. Tratar com escracho, por outro lado, desrepeitaria o sofrimento do animal (que não se pode negar) e o de seu dono.
Entre uma coisa e outra, e sem ser nenhuma delas, o cronista achou o tom perfeito. Passei o resto do dia me achando um incompetente, como podia ter sido incapaz de ver valor naquela história. Ficou a lição: não é só "o que" se conta, mas "como" ... e "por que".
Acompanhei algumas outras matérias dele, mas não cheguei a conhecê-lo, infelizmente.
Em tempo: "quem tem fonte é cemitério e jardim" é do caralho.
Consegui, até que enfim!!!! Hehehehehe... abração, CR!
ResponderExcluirLi num fôlego só. Fantástico. Doce e ao mesmo tempo irônico, na medida certa, como o Múcio era. O texto está um primor. Fiquei emocionada de ver sua homenagem tb a dois outros grandes amigos: Elaine e Rodolfo. Nossa, que saudade desses três guris com quem aprendi tanto profissionalmente e na vidinha mais ou menos das redações. Grande beijo
ResponderExcluirangel
A última vez que eu vi Múcio foi em abril deste ano. A seu pedido, a filha dele me ligou dizendo que ele estaria na casa da irmã em Niterói. Passei lá antes de vir trabalhar. Quando cheguei, um abraço apertado e emocionado fez nossa amizade de 30 anos passar veloz por nossas cabeças. Não houve palavras. E nem seria preciso. Nós nos conhecemos, em março de 79. Eu, caloura da UFF. Ele, veterano. De lá pra cá, não nos largamos mais. Partiu dele e de Elaine Rodrigues o aviso/convite para que eu saísse de um jornal em Niterói e fosse trabalhar no Globo Niterói. Com eles. Mais que um doutorado. Múcio, que fazia paródias com os nomes dos amigos - também ganhei a minha, aliás, as minhas - também tinha suas fases ruins. Mas, mesmo mal-humorado, sabia me fazer rir. Certa vez, disse a ele para reduzir um pouco a bebida, que estava lhe causando problemas. Ele olhou pra mim e soltou: "Eu não tenho problemas com a bebida. Ela é que tem problemas comigo." Texto maravilhoso, cabeça sempre a mil por hora. Múcio conseguiu, nos últimos meses de vida, deixar de brigar com a filha, que cuidou dele até o fim, passando a rir das próprias dificuldades. Ele, em Friburgo; eu, em Niterói. Sem internet em casa, atendia sempre o celular. E sempre acabávamos rindo. Quando, no dia 12 de maio, a família me ligou de manhã avisando que ele estava (de novo) no hospital e estava morrendo, não acreditei. Um segundo telefonema acabou com a minha esperança de ir lá em Friburgo para vê-lo novamente. De volta ao jornal, bati seu obituário. A tristeza não deixou que o texto ficasse tão bom como deveria. Ele teria feito melhor, como sempre. Mas, ao batê-lo, senti que o Múcio nunca sairia do meu lado. E é com alegria que me lembro dele quase todos os dias. E lhe digo sempre "Até breve, amigo! Guarde umas estupidamente geladas aí pra mim. Como as que bebíamos no Bar Natal!"
ResponderExcluirBela homenagem, Cláudio e obrigada por me deixar participar dela! bjs,
Que linda homenagem! Que texto delicioso!
ResponderExcluirEnviado por Gustavo Gomes, editor do telejornal Bom Dia Brasil, da TV Globo:
ResponderExcluirEsse computador daqui do meu trabalho não "estufa a rede".
Mas conto com você, CR, pra postar o meu comentário.
A nossa colega Sandra Moreyra me deu - faz uns 7 ou 8 anos - quando eu preparava uma série para a Globonews, um toque muito sério: Se for fazer algo, pense Mega! Se você pensar Super, vai sair apenas Legal. Se você pensar apenas Legal, vai sair mais ou menos, e assim por diante. Sempre pense Mega. No jornalismo, nada se faz de qualidade sem muito envolvimento, criatividade, capricho, e principalmente, sonho.
Parabéns novamente pelo exemplo singelo de exercício da nossa profissão.
Não tive o privilégio de conhecer o Múcio.
Mas conheço alguns Múcios do jornalismo. Eles servem de inspiração para a minha trajetória.
Abraços.
Gustavo
Que beleza, Cláudio...
ResponderExcluirNão conheci o Múcio pessoalmente, só de ler alguns textos dele - um cracaço que não se vê mais. Mas, lendo você hoje, entrei um pouco na máquina do tempo que TANTO procuro, que TANTO desejo encontrar, pra voltar e viver coisas, das quais tenho saudade, mesmo sem tê-las vivido.
E o jornalismo, meu bom amigo, essa nossa profissão - da qual, você sabe, não me orgulho muito -, vai de mal a pior exatamente porque não se estufam mais as redes. É só mediocridade, pra onde você olhar.
Eis o ponto, perfeito, que conduz a sua narrativa aqui. Porque você foi preciso: na vida - e no amor, no trabalho, na amizade, no esporte, em tudo, tudo - o negócio é (tem que ser) ESTUFAR A REDE. O resto (todo o resto?)? É conversa fiada.
Cláudio, pra mim você - e as nossas conversas e biritas, desde que nos conhecemos, mesmo com a diferença de idade e de competência (vc é um craque!) -, pra mim você é, por assim dizer, um grande Múcio.
Abraço, meu amigo.
Bravo amigo, bela homenagem ao nosso companheiro Múcio. Um texto fino, sensível e bem humorado, como era o nosso Múcio Bezerra. Lembro de uma matéria que fizemos, quando as putas da Praça Onze (ou Estácio) estavam sendo transferidas para a atual Vila Mimosa. Ele pelo Globo e eu pelo Dia, ouvimos histórias maravilhosas, com dramas e problemas familiares que empurraram aquelas mulheres para a prostituição. Já tinhamos uma amizade, mas ela se confirmou naquele dia, regada a algumas garrafas de cerveja e conversas com as "meninas". Belo Texto, repito. De onde estiver, o Múcio deve ter aprovado, podes crer.
ResponderExcluirUm beijo grande,
Nelsinho - Duque de Caxias - RJ
Querido amigo,
ResponderExcluirDe volta à civilização (mas já preparando as malas novamente), finalmente consigo deixar meu comentário! Estou tão exultante quanto o Márcio!
Essa homenagem é realmente encantadora. Tão encantadora quanto a personalidade de Múcio descrita por você. Esse é o jornalismo que nos faz vibrar como em uma partida de futebol.
Suas palavras me fizeram lembrar de um conselho dado por um grande amigo meu e excelente jornalista. Eu fazia uma série de reportagens que defendi com unhas e dentes. Esperavam que eu fizesse o que todos fazem sobre aquele tema: mais do mesmo. Fiquei inconformada porque queria mais. Então, esse meu amigo me disse: "Se ainda há algo a fazer, faça. Procure onde ninguém olha". Esse conselho serviu não apenas para essa reportagem, mas para o meu dia-a-dia. Até de uma aparente "bundice" pode surgir uma puuuuta matéria, como diria Múcio. Infelizmente, não tive o prazer de conhecê-lo!
Quanto ao seu texto, se eu fosse um policial diria que, sem dúvida, você 'logrou êxito'.
Um beijo grande.
Querido amigo,
ResponderExcluirPensei que não tivesse conhecido o Múcio. Mas pude sabê-lo graças às suas palavras. Ele, sim, um jornalista genuíno, frasista, malandro: criativo. Um repórter que via a matéria dentro da matéria, devorador de livros líquidos, alô Lau,: romântico.
Estufou a rede e pôde ouvir, daqui da arquibancada, o barulho ensurdecedor do nosso delírio.
Obrigado, Múcio, pelo que você fez pelo jornalismo - e pelos jornalistas.
Cláudio, parabéns! Bela homenagem, hein, filho?
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirEstive com o Múcio algumas poucas vezes. E, lamentavelmente, não compartilhei com ele uma mesa de bar nem de sua intimidade, pois contam os mais chegados que era tão bom de histórias contadas oralmente como as que ele de forma inigualável compunha nas páginas dos jornais. Mas, como colega de profissão, eu no Jornal do Brasil e ele no Globo, em meados na década de 90, já aguardava seus textos ímpares como como um presente do jornalismo. Sem exagero. Era comum não só eu, como meus pares do JB, com o exemplar nas mãos, a comentar as peripécias do Múcio nas páginas do Globo.
ResponderExcluirEra uma delícia ler o que Múcio escrevia, porque o fazia de forma simples e engraçada, com informações precisas e detalhadas, o que também interessa ao bom jornalismo. Digo também, porque não é só. Para quem se dedica ao jornal impresso, há outros ingredientes fundamentais, que incluem o estilo. A maioria que tenta fazer isso perde a mão, os faroleiros da prosa. Múcio não. Todo o adorno literário que empreendia em suas reportagens fazia sentido.
O jabuti vítima de bala perdida, que passou a caminhar com a ajuda de rodinhas, virou uma história de livro de contos, de lendas. Ficou na memória de todos nós como tantas outras histórias, ou contos, na lenda que se transformou o velho Múcio, que desistiu tão cedo do jornalismo, embora tenha começado o ofício tão tarde. Uma pena, nesse tão resumido território que transita a arte de informar no jornalismo nosso de cada dia.
Marcelo Ahmed
Comentário do jornalista Telmo Wambier, repassado pelos amigos João Batista e Solange Duart:
ResponderExcluirPô, JB, presentão
"Não só o perfil afiado como o texto delicioso do Claudio Renato. Saudades do Globão da época. Éramos felizes. E sabíamos...Quem sabe ele não se anima a escrever um livro com histórias daquela redação? Talvez a memória interessasse às redações pasteurizadas de hoje..."
Abração
Nilza Alves, que estudou com o Múcio na Universidade Federal Fluminense (UFF), localizou um texto do nosso bardo de Niterói e enviou para o Passavante. Obrigado, Nilza.
ResponderExcluirConto de Natal (Múcio Bezerra)
Deus criou o mundo em seis dias e descansou no sétimo. Achou que estava tudo uma beleza, porque ainda não conhecia o Aldemar. O conhecedor de todas as coisas_ eu estou me referindo ao Aldemar_ teria criticado logo o regime de trabalho. Seis dias numa semana? Um absurdo. Um mau exemplo divino na medida para justificar a exploração do homem pelo homem, desde quando Adão foi demitido, sem justa causa, do Paraíso. E ainda por que dois terços de água_ e, ainda por cima, salgada_ se o nome do planeta é Terra? Ele teria convencido o Todo-Poderoso_ e aqui eu estou me referindo a Deus_ a mudar o nome do planeta para Mar. Porque ficaria mais coerente. E também porque rimaria com o nome dele, Aldemar.
Às vezes, quando penso que fiz uma coisa perfeita, um trabalho bonito, um gol de placa, verifico logo se o Aldemar não está por perto. Se ele não estiver, faço autocrítica. Imagino como o Aldemar analisaria aquilo, vejo melhor cada ângulo da questão e...quer saber de uma coisa? O trabalho estava mesmo uma porcaria. E a Sharon Stone, por exemplo, não é tão linda assim. Aliás, ela nem sequer é bonita. Olhando bem, que mulher feia, meu Deus...
Conheci o meu amigo Aldemar na Faculdade de Comunicação na UFF. Éramos da mesma turma. Saí de lá convencido de que Melvin L. De Fleur, Marshall McLuahan e Umberto Eco podiam entender muito da teoria da comunicação.
Mas não teriam coragem de discutir o assunto com o Aldemar. O meio é a mensagem? Pois sim...
Imagino que Deus estava descansando naquele sétimo dia, quando olhou o futuro e viu o Aldemar. Aí resolveu criar o Antônio, outro colega da turma da faculdade. Antônio é o crítico do Aldemar.
Antônio morava no Fonseca, mas fez o impossível para se mudar para um condomínio de luxo, em Pendotiba. Não por uma questão de status. Mas para ficar perto e discordar do Aldemar:
_ Feliz natal!
_ Feliz por quê?
_ Eu provo!
_ Prove...
Mais um texto sobre o Múcio Bezerra, este enviado por César Tartaglia, colunista de O Globo
ResponderExcluirO gato da casa também é viado!
A história clássica do Múcio, se ninguém contou até agora. Nessa época ele cobria política no Globo ou no JB. A editoria de Política sempre foi um ponto nevrálgico em qualquer jornal – mas, mesmo trabalhando num poço de cobranças, isso não lhe tirava nunca o bom humor. Bem, para entender esta história, é preciso contar antes uma história dentro da história. Múcio tinha uma anedota favorita, e de tanto contá-la pros amigos acabou fazendo do desfecho da piada um bordão. A piada era mais ou menos assim: o bêbado entra no buteco com seu ratinho de estimação no ombro. Era, evidentemente, um bêbado chato, daqueles de arrumar confusão. O ferrabrás aboleta-se no balcão, pede uma cachaça, toma um gole e dá outro gole pro ratinho. Os dois dividem essa e as doses subseqüentes durante um bom tempo. A uma certa hora, já com o fole cheio, o bebum começa a desacatar todo mundo. “Aqui neste bar só tem babaca”! Ninguém dá bola pro desconjuntado, que insiste em provocar. A uma certa altura, o dono do bar não agüenta mais o freguês, pega o sujeito pela gola e o obriga a sair do estabelecimento. Num esforço de provocação, o bêbado chato estica o pescoço pra dentro e grita:
– Aqui dentro não tem homem!
E o ratinho, solidário, antes de ser empurrado junto com o dono pra calçada:
– E tem mais. O gato da casa também é viado!
E “o gato da casa também é viado” acabou virando um bordão do Múcio. Onde ele chegava, ou de onde saía, sapecava a sentença, só de farra e geralmente já calibrado: “E tem mais. O gato da casa também é viado”. Quem o conhecia, o que implicava quase necessariamente já ter ouvido a piada sair da boca do amigo, não conseguia segurar o riso, só de se lembrar da anedota. Agora pano rápido, cena seguinte, Múcio é destacado para cobrir uma reunião de caciques políticos de uma determinada legenda do Rio. O encontro era na casa de um célebre político carioca – célebre em grande parte por suas preferências sexuais... digamos heterodoxas. Melhor dizendo, o cara não assumia, mas se ele tivesse escrito uma autobiografia, a capa, certamente, seria cor de rosa. Enfim, em nome da precisão: se fosse um roqueiro e fizesse parte de um grupo chamado Queen, ele seria o (ou a?) vocalista. A reunião seguiu dentro dos conformes, com fartas rodadas de uísque – e o Múcio não economizou, servindo-se de doses em quantidade proporcional à torrente de informações que coletava entre uma intervenção e outra dos comensais. Terminado o encontro, a hostess... ops, o anfitrião, sujeito educadíssimo, foi levar os convidados ao corredor, despedindo-se de um por um enquanto eles se acomodavam no espaçoso elevador. Elevador cheio de sisudos cardeais do partido, o último a entrar foi o Múcio. Já tocado pela fartura de puro malte escocês, nosso amigo adentra o gramado, despede-se do anfitrião com um abraço e em seguida, apertando-lhe a mão, sapeca o bordão que não queria calar em sua boca:
– E tem mais: o gato da casa também é viado!
Nenhum dos convidados, evidentemente, entendeu a razão da sentença fatídica – mas, mal a porta do elevador se fechou, as risadas foram unânimes.
César Tartaglia
Porra, Tartaglia! Maravilhoso!!!!!!!!!!!!!!!
ResponderExcluirOutro texto do articulista do Globo Cesar Tartaglia sobre Múcio Bezerra
ResponderExcluirQuem é a vagabunda?
Posse de governador, ou algo parecido, no Palácio Guanabara. Estávamos, eu e Múcio, na editoria Rio do Globo, e fomos convocados pra reforçar a cobertura da editoria de Política. Fui destacado pra festa da posse, aquela breguice de autoridades estaduais e federais, exigência de traje passeio pra convidados e jornalistas. Eu, por uma questão de princípio, não consigo usar terno. Nunca usei - salvo num dos meus casamentos, emprestado e somente pelos minutos necessários a entrada e saída do cartório. Mas o dever me chamava, e eu precisava arrumar pelo menos algo que fugisse à combinação jeans-camisa-pra-fora-da-calça-tênis. Como tínhamos mais ou menos o mesmo corpo, pedi socorro ao Múcio, já calejado de coberturas frescas do tipo. No dia da festa, ele me traz um blazer bacana. Tirei do fundo do baú a minha única calça comprida que não era um jeans e amarrei no pescoço algo pouco mais grosso que um barbante, a título de gravata. Nessa época, eu usava cabelos um pouco compridos (hoje eu uso os que sobraram), e, como eles eram rebeldes (tão rebeldes que a maioria me abandonou), decidi botar no bolso um pente, desses grandões, de madeira, com a marca – lembro-me até hoje – "Letícia" gravada em letras douradas no cabo. Todo pimpão, barbante no pescoço e pente no bolso pra manter o teto baixo, fui para o tal convescote. Múcio me deixou à vontade quanto à devolução do paletó:
– Eu pego amanhã com você, porque hoje devo sair mais cedo da redação.
Fui à xaropada e voltei. A recepção demorara menos do que o esperado. Na volta, encontrei o Múcio ainda na redação, preso à apuração de uma matéria ou – o mais provável – fazendo hora pra, em vez de ir pra casa, emburacar em algum buteco. Aproveitei pra devolver-lhe o blazer e dei a pauta por encerrada. Uma semana depois, sinto falta do meu pente, e depois de tentar me lembrar onde o havia enfiado (ui!), me dei conta de que ele ficara no bolso do paletó do Múcio. No dia seguinte, chego à redação, procuro meu amigo e pergunto, na maior inocência:
– Mestre, por acaso eu não deixei um pente no bolso do teu blazer?
Múcio ficou vermelho, me olhou de alto a baixo, e entre puto e rindo pra cacete, quase avançou em cima de mim:
– Porra, então foi você, seu puto? Aquela merda era sua?
Só então em soube do desfecho da história do blazer, que pra mim havia acabado quando lhe devolvera a roupa. Com a palavra, Múcio:
- Cara, eu saí daqui naquele dia e tomei uma porranca. Cheguei em casa mamado, e só deu tempo de jogar o blazer na cadeira, cair na cama e dormir. Umas quatro da manhã, ainda de porre, fui acordado por minha mulher. Eu, deitado de barriga pra cima, ridiculamente de cueca, e ela em pé na cama, com as pernas me prendendo pelos lados da barriga. Com uma porra de um pente na mão ela gritava lá de cima, me cobrando: "Quem é a vagabunda? Quem é Letícia, seu cachorro?". Cara, como eu ia saber que merda era aquela de Letícia, ainda mais de porre como estava? Cesinha, vou ficar te devendo o pente, porque ela quebrou aquela droga e atirou em mim. E o pior é que ela ainda tá pedavida comigo, e não se cansa de querer saber quem era a vagabunda da Letícia!
Cesar Tartaglia
http://oglobo.globo.com/rio/ancelmo/frontdorio/Default.asp
Cláudio, mais um vez obrigada por nos brindar por esse trabalho.
ResponderExcluirHoje é segunda-feira e Bidú + Villa caiu como uma luva pra começar a lida!
Vou la no Twitter/Facebook/meu humilde blog recomendar
beijos
Cida Fernandes
12/05/09
ResponderExcluirSônia Araripe
Editora de Plurale
Dizem que todo jornalista tem um pouco de louco, ou de poeta. Múcio Bezerra conseguia unir os dois adjetivos. E outros tantos. Era lírico, gauche, simples e descomplicado como costumam ser as pessoas que sabem traduzir a riqueza do povo. Nos deixou hoje de manhã, aos 60 anos, sem alarde ou pompa como era seu estilo. Nos últimos anos havia trocado Niterói e a Região Oceânica por Nova Friburgo (RJ), aproveitando a tranqülidade de um bairro afastado, "quase roça", como ele gostava de chamar. Deixa duas filhas, Aline e Maria.
Legítimo representante do agreste nordestino, cabra da peste do tipo que não foge aos desafios, não sei se chegou a conhecer o companheiro Lula em uma das campanhas para presidente. Bem possível que sim: foi repórter destacado de O Globo por anos seguidos. Depois, fez frilas para várias publicações, inclusive o Jornal do Brasil e a Revista Forbes Brasil, onde tivemos contato diário. Se esteve com Lula, certamente se identificaram como pares. Múcio, politizado, sabia a relevância da união, das massas, dos operários. Sempre foi um operário das letras, do saber.
Autodidata, aprendeu no cordel, nos livros e na vida a escrever. Não tão somente. A ouvir e saber interpretar as palavras dos outros. Poucos foram tão hábeis neste afazer. Era uma pessoa do povo que gostava de descobrir outros como ele. Gente sem voz ou imagem que se transformava em personagem curioso em suas mãos, ou melhor, através de suas palavras. Tão habilmente selecionadas, como se estivesse costurando uma poesia. Jamais voltava de mãos abanando sem uma boa história para contar aos leitores. Certa vez, por exemplo, saiu com uma pauta qualquer e voltou animadíssimo: encontrara, na rua, um cachorro que sabia contar! Isso, sabia matemática. Foi matéria de destaque no Jornal do Brasil de cerca de quatro anos atrás.
Mais tarde, fazendo um frila para outra revista feminina, foi entrevistar uma dondoca emergente do jet set carioca e tornou-se seu amigo (bobagem, todos tornavam-se amigos de Múcio!). Pensou em propor escrever o site ou um blog para a emergente - sabe-se lá que inovação do mundo internético. Desistiu. Confessou: poderia até ganhar algum dinheiro, mas não sabia - ou não queria - traduzir aquele mundo pseudo-sofisticado para os leitores. "Sou do povo", costumava dizer.
Formou-se em Jornalismo pela UFF, no início dos anos 80. Começou tarde na profissão que lhe consagrou, já que, durante a faculdade, trabalhava no Departamento de Estradas de Rodagem (DER). Trabalhou na Tribuna de Niterói, no Fluminense e em O Globo, onde começou no Jornal de Bairros de Niterói trabalhando depois nas editorias Rio e Nacional. No Jornal de Bairros, escreveu crônicas semanais. Trabalhou também na Revista da Ademi.
Adorava gatos e tinha como frila fixo crônicas sobre felinos. Fascinado por natureza, engajou-se logo de início ao projeto Plurale. Escreveu duas matérias lindas que deixam saudades de seu belo texto. "Vendeu", como os jornalistas costumam falar em seu jargão, outras tantas. Como das flores produzidas pela comunidade de suíços em Friburgo ou de uma árvore imensa pelas redondezas de sua casa. Assunto nunca faltava para o mestre Múcio. Não chegou a ter tempo de produzir estas reportagens.
Acompanhe aqui as duas matérias do jornalista para Plurale: uma sobre Sana e outra sobre o Parque do Cão Sentado, ou o endereço do cachorrinho, como ele mesmo batizou a matéria.
Vai, amigo, descansa em paz. Encontre uma turma também gauche e arretada como você aí no andar de cima. E nos deixa aqui, saudosos de seus causos, mas repletos de lembranças boas de nossa convivência tão alegre.
ENVIADO POR AURA PINHEIRO
ResponderExcluirPessoal, segue o texto-homenagem ao Múcio, que meu pai escreveu há pouco.
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Múcio Bezerra, que de mudo não
tinha nada. Estava é nas bocas!
Inscrevemo-nos no rol dos voluntários e grandes amigos de Múcio Bezerra, que em bom carioquês poderia significar sonoramente Muitíssimo Bom. Ele, aliás, me confidenciou à mesa de um bar em Icaraí, lá por volta de 1980, o seguinte:
- Múcio vem do latim, quer dizer mudo. Mas isso eu nunca fui. Porque na verdade falo pelos calcanhares. E estou sempre nas bocas. De cima abaixo.
Nem tanto. Mas disse isso com ar de trocadilhista à Emílio de Menezes e começou a rir sem parar. Até pedir outro chope.
Pensando essas coisas sobre ele, constato que... assim não dá! Tá morrendo gente que não devia morrer. Nunca! Faz nem um mês da viagem de Silva Filho, o jornalistas-pintor, e agora é Múcio quem bate as asas. Suas asas de anjo que dão propósito e significado mágico ao nome do cemitério onde jaz desde a última terça-feira - Trilha do Céu.
O cara tinha só 60 anos. Mas o câncer, que não se apiedou de Silva aos 70 e desprezou suas pinturas laureadas, também não perdoou Múcio e jogou pra escanteio seu texto magnífico, sua sempiterna juventude boa-praça. Que lhe davam – texto e boa-pracismo - aquele jeito de Mark Twain duplamente reencarnado em Lima Barreto e Rubem Braga. Embora fosse ele nordestino de suprema bizarria, quer dizer bezerria, como ele talvez se autoproclamasse sem nunca fugir de um trocadilho. Pois não foi ele quem descobriu que em Niterói o menor caminho entre dois pontos era um anzol ao escrever sobre as mudanças de trânsito na área caótica do Hospital Antônio Pedro? .
Sarcástico, irônico, gozador, irreverente, cronista, repentista, poeta, repórter como poucos – o jornalista! Mas, antes de tudo, o generoso. Era ele, na dura e impiedosa redação do Globo, quem esticava a mão lá para baixo e puxava alguém iniciante, recomendando esse alguém repórter para o editor de cidade ou para o diretor da Agência Globo.
Já marcara passagem estelar no Fluminense e no JB quando desembarcou no Globo. E, se de repórter do cotidiano vulgar, fez-se cronista trilhando o céu de Rubem Braga, algo o angustiava acima de tudo como se lhe pesasse nos ombros essa necessidade de fazer o mundo menos mundo-cruel especialmente para os menos favorecidos na arte de se comunicar e se fazer entender.
Foi assim que se acoitou em Nova Friburgo. Onde vez por outra dava conta do que fazia para os que ficaram cá embaixo na esperança última de tê-lo de volta algum dia.
Esse dia chegou. Jamais o esqueceremos Múcio Mudo Bizerria Bezerra.
Lucília rolou a bola: Como terá sido o encontro de Múcio com Aldemar? Fiquei pensando, pensando...
ResponderExcluirMúcio acordou tonto e com uma puta dor de cabeça.
-Caralho, que ressaca!
Os dois assistentes de portaria de plantão olharam um para o outro.
- Não é ressaca não companheiro, você atravessou a porteira.
Riram muito e mostraram a placa: Céu – Recepção.
Caiu a ficha. Naquele instante Múcio lembrou de tudo: Macau, pau de arara, Rio, DR, UFF, O Globo e muitas, muitas, muitas cachaças e putas.
- Nesse caso, quero falar com o Aldemar.
- Calma, meu amigo, não é assim não. Essa porra tem ordem! (Os assistentes ficaram meio indignados com a carteirada). O Sr. Aldemar está muito ocupado esses dias. Com esse negócio de “Deus é brasileiro”, toda vez que dá uma chuvinha maior, é um Deus nos acuda de reza, pedido, novena, o Diabo! (desculpe!) E com essa história de gripe suína, então, puta que o pariu!
-Mas é que o Aldemar é meu brother, está entendendo? Já fiz até música prá ele!
-Deixe de história, rapaz, você fez música oquê? Era uma estrofezinha de nada e ainda por cima em versão de música alheia.
- É, mais fez um sucesso danado com a galera. Toda hora nego pedia prá eu cantar.
- Cara de pau, aí. Você vivia de sacanagem, agora taí puxando o saco. E a piada do menininho que só queria fazer xixi com o titio Aldemar segurando o pintinho dele! (a mão dele treme!) E a história do Aldemar assinando cheque, lembra? Ele ficava com a mão tremendo, segurando a caneta e alguém puxava o talão. Você acha graça nisso? Porque você ria tanto?
-A gente era assim mesmo. Um sacaneando o outro. Coisa de brother, tá sabendo! Só prá você ter uma idéia da nossa intimidade, o Aldemar ia comigo fazer serenata prá Inês depois da noitada, quatro, cinco da matina.
- Que mentira! Cê acha que o Sr. Aldemar ia pagar um mico desses, tabaréu do norte?
- Olha aqui, meu amigo, chama logo o Aldemar, senão é capaz dele ficar sabendo que você tá me tratando assim e te enquadrar, heim.
Quando os dois assistentes iam partir prá cima do Múcio e dar uma dura nele, Aldemar aparece na porta.
-Porra Múcio, mal chegou e já tá dando trabalho!
- Aldemar, meu querido! São esses porras aí da portaria, me enchendo o saco. Devem ser paraíbas, com certeza. Vamos tomar uma cervejinha? Tem uma gelada, aí?
- Tem, Múcio. Quer uma cachacinha junto?
E virando-se para um cachorro preto, todo molhado, sentado ao lado: Niki, traz lá duas Skol bem geladas e uma Havana Branca Super Premium, de Salinas.
Antonio Torres.
Amigo, ler esse texto sobre o Múcio me fez voltar no tempo. E ainda relembrou a Elaine Rodrigues!
ResponderExcluirVoltei ao dia em que entrei pela primeira vez na redação do Globo em 1985. Em plena reforma para que as máquinas de escrever fossem relegadas ao porão e substituídas pelos computadores de telas pretas e letras verdes. Com os dutos do ar refrigerado cobertos por um laminado que dava ao lugar um aspecto de abrigo antiaéreo. Saindo de 3 anos como estagiária na Isto É cobrindo a área de cultura, fui contratada no mesmo dia em que a Elaine para os Jornais de Bairro. E lá conheci o Múcio _ um exemplo para todos os focas que compunham a "editoria". Aquele "jornalista experiente" revelou-se rapidamente um colega de primeira. E mais, em uma festa de fim de ano _ daquelas em que misturam-se chefes, subchefes e nós, trabalhadores braçais _ Múcio deu um show ao microfone do inferninho do Centro. Juro! Além de todos os predicados já descritos por você, acrescento a bela voz que cantou "Ronda". Ah, e também o gingado com o qual guiou todas as mulheres presentes pela pista. Anos mais tarde, descobri as crônicas do Múcio em uma revista sobre animais de estimação que, acredite, passei a assinar só por causa dele. O texto continuava o mesmo: leve, bem humorado, brilhante.
Muito bom saber que aqueles que se destacam pelas suas bem traçadas linhas são lembrados com carinho e admiração pelos colegas. Acredite: ainda há esperança!
Beijos.
UMA PESSOA HUMILDE,UM SER HUMANO MARAVILHOSO,INTELIGENTE E SEMPRE ALEGRE ASIM ERA MÚCIO BEZERRA!!!
ResponderExcluirMEU QUERIDO TIO!!!