sexta-feira, 28 de maio de 2010

Memórias proibidas de D.J. Trevisan

Dalton Trevisan, o contista quando jovem
Christopher Lee, o Príncipe das Trevas

Quando Dalton Trevisan decidiu afastar do convívio, em 2001, o escritor Miguel Sanches Neto, então com 35 anos, cometeu uma injustiça histórica. Assumimos a missão de perscrutar a vida do sombrio ermitão de Curitiba. Durante quase 30 dias, foram entrevistadas dezenas de pessoas, mas o pupilo emudeceu. Fiel à amizade de Dalton, revelou quase nada. O vampiro, no entanto, não tolerou as fotografias roubadas e o perfil indiscreto estampados nas páginas de uma gazeta de circulação nacional. Alguém teria que pagar por aquilo. O rapaz tornou-se, para Dalton, um Cristo ou Judas às avessas. A amizade foi rompida definitivamente quando Sanches Neto começou, em 2004, a escrever o romance à clef (com os situações e nomes cifrados) Chá das Cinco com o Vampiro, publicado há dois meses pela editora Objetiva.



Para quem quiser se aventurar a escrever a biografia (não autorizada, obviamente) de Dalton Trevisan e, assim, matar definivamente o vampiro, à luz do sol tímido de Curitiba, o caminho é outro. A estaca certeira está no acervo mantido pela pesquisadora Cassiana Lacerda Carollo, que resgatou novela, críticas, aforismos e sonetos de adolescência renegados pelo autor de A Polaquinha. Professora do curso de pós-graduação da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Cassiana Lacerda pretendia divulgar os textos antigos e ainda ousava propor a criação de uma Casa do Vampiro, para exibir o acervo proibido na rua Emiliano Perneta, onde o contista nasceu. "É importante deixar para as futuras gerações referências históricas sobre o gênio de Dalton Trevisan", alegava. O contista a ameaçou com uma ação judicial.


Cassiana conheceu Dalton quando frequentava, como aluna, a universidade, nos anos 60. Vivia na Lapa, a 60 quilômetros de Curitiba, onde o autor passava férias. Dalton era colega, na Faculdade de Direito da UFPR, de Francisco Lacerda, tio de Cassiana. A jovem começara a se interessar cedo por literatura graças ao crítico Temístocles Linhares, sócio do pai dela, Jair Lacerda Jr. na fábrica de chá-mate da família. Linhares foi um dos primeiros colaboradores da Joaquim, revista dirigida por Dalton Trevisan. Ali, o contista redigiu textos entre abril de 1946 e dezembro de 1948.



Dalton visitava muito a Lapa, quando a Cassiana Lacerda tinha 22 anos. A pesquisadora foi amiga do escritor até o dia em que ousou questionar a suposta traição de Capitu a Bentinho, personagens do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. O escritor carioca é, entre os brasileiros, a maior paixão literária de Dalton Trevisan. "Ele rompeu comigo alegando o que sempre escreveu: se Capitu não traiu Bentinho, Machado se chamaria José de Alencar." Cassiana diz que admira muito a obra de Dalton, mas, "ao contrário de outras de pessoas da inteligência curitibana", não quer "alimentar com ele uma relação de subserviência." Para o crítico literário Wilson Martins, morto em Curitiba em 30 de janeiro passado, aos 89 anos, o resgate dos primeiros textos de Dalton Trevisan fora importante e, sobretudo, surpreendente. "Eu mesmo não sabia das crônicas esportivas", disse Martins, que trabalhou com o contista na década de 40.

Os escritos desprezados pararam nas mãos de Cassiana graças a um descuido do próprio Dalton, que, aos 16 anos, doou a coleção completa dos textos redigidos no jornal Tingüi ao Instituto Neopitagórico, sociedade literária fundada pelo poeta Dario Veloso (1869-1937). Lá estavam, entre outros, os Sonetos Tristes e Visos. O jornalzinho era vendido numa banca da Rua XV, de Jorge dall'Ignna. O Tingüi e, mais tarde, a Joaquim funcionaram na mesma casa, onde Dalton Trevisan nasceu, também sede administrativa da fábrica de cerâmicas e vidros Trevisan, ironicamente na rua Emiliano Perneta. O poeta simbolista Perneta (1866-1921), ícone do beletrismo na cidade, foi a maior vítima post mortem das críticas de Dalton.



O acervo de Cassiana Lacerda é raro. Ela tem, por exemplo, um dos 20 livros da edição especial de Novelas Nada Exemplares (José Olympio, 1954), assinado pelo autor. Primeira obra de Dalton Trevisan de circulação comercial, as Novelas conquistariam os prêmios Jabuti e do Instituto Nacional do Livro, mas foram recebidas com reservas pelo crítico literário Otto Maria Carpeaux, a quem Dalton jamais perdoou. Sempre se referia a Carpeaux como "o gago", em alusão à disfemia de um dos maiores críticos literários do Brasil. Dalton voltaria a conquistar o Jabuti com Cemitério de Elefantes (1964). Ele foi consagrado nacionalmente em 1969, quando com O Senhor Meu Marido ganhou o Concurso Nacional de Contos.



Cassiana Lacerda dispõe de elementos para construir a biografia de Dalton Trevisan, mas ainda não se decidira a fazê-la. Foi dela a descoberta de que, aos 14 anos, Dalton atuou como cronista esportivo em uma revista intitulada O Livro. Em 1939, ainda assinava Dalton Jérson Trevisan e defendia o esporte como "elemento necessário à formação do caráter." Fundista do Atlético Paranaense, sonhava em ser campeão dos 110 metros com barreira. "O Brasil deverá ter seus sábios atletas." No artigo Duas glórias nacionais, demonstra má vontade em relação ao futebol e ao samba, especialmente a Carmem Miranda, pela "supervalorização que distorce a consciência nacional." Com a turma do direito, integrou o time que jogava no estádio do Coritiba. Ele se formou em dezembro de 1947.



Em meio às pesquisas, Cassiana tentou relançar a revista Joaquim. Foram 21 números, que alcançaram repercussão nacional. Contava com a colaboração de Wilson Martins e Temístocles Linhares, além dos ilustradores Poty, Viaro e Renina Katz. Nas páginas da revista - "uma homenagem a todos os Joaquins do Brasil" - Dalton lançou os primeiros livretes, Mistérios de Curitiba (1946) e Sete Anos de Pastor (1947), e publicou traduções de Tchecov - cujos contos comparava em delícia à pitanga e às balas azedinhas -, Tolstoi, Kafka, Joyce, Cervantes, Salinger e Rilke, cuja Carta a um Jovem Poeta costuma presentear aos poucos "novos" com quem simpatiza. A iniciativa de reeditar a Joaquim foi, enfim, proibida pelo contista. "Ele me chamou de necrófila, apesar de eu haver proposto que se retirassem os contos que assinou."

Dalton Trevisan promoveu no Tingüi um concurso de contos que ele mesmo ganhou, com Trapo, a história de um homem submisso. O prêmio: uma ilustração de Guido Viaro. Na época, ainda não reescrevia 12 vezes uma narrativa. "Creio que o fenômeno de reescritura obsessiva começa com Minha Cidade, em 1946", conta Cassiana. "Ele publicou o conto na Joaquim para, em seguida, republicá-l0, com modificações, no Guaíra." Na formatura do colégio Iguaçu, orador da turma, Dalton não pôde proferir o discurso nem publicá-lo no Tingüi , por causa das críticas que fazia ao ensino da época. Cassiana possui ainda reproduções de fotos do contista, menino, ao lado dos irmãos Derson e Hilton Dácio, que também colaboraria no Tingüi. O anunciante mais assíduo do periódico foi a fábrica Trevisan. A família apoiava a carreira do escritor. A professora dispõe também de 14 cordéis que ele lançou, de 1953 a 1964.

Dalton Jérson Trevisan nasceu em 14 de junho de 1925 na rua Aquidabã 80, atual Emiliano Perneta, onde funcionou a fábrica de cerâmicas e vidros do pai, João Trevisan. A família Trevisan teria origem na cidade de Treviso, no norte da Itália. Os primeiros representantes se estabeleceram, em 1888, na colônia Dona Isabel, no Rio Grande do Sul. Aos 15 anos, Dalton escreveu no Tingüi: "A questão foi que nasci...Foi numa madrugada, friorenta e úmida, de um 14 de junho que nasci, e desde já, errado como agora. Em vez de escolher uma noite cálida e poética em que a lua - minha namorada mais inconstante - estivesse a passar sonhadoramente, fui surgir nesta barca de Noé, em uma madruga trêmula e encapuçada. A questão foi que nasci...E, para me vingar desta primeira ironia da sorte, berrei até quase estourar." Na revista, que teve 43 números, Dalton Trevisan foi redator, cronista, repórter e crítico. Assinava com pseudônimos: Faminto, De Alencar, Notlad, D.Nada, Rapaz.



Desde menino, Dalton foi ótimo aluno. Quando prestou exame para o Iguaçu, aos 8 anos, obteve média 92. No curso complementar de direito, no colégio estadual, conquistou graus 99 em literatura e 92 em história da civilização. "Estudei o que achei que devia ter estudado; por isso, sou o que sou. Podia ter dado ladrão. Por enquanto, dei em nada", escreveria em 1943. Aos 14 anos, Dalton começou a colaborar com a revista O Livro, fundada naquela ano de 1939 por Roberto Barone Filho. Escrevia, principalmente, sobre esportes. Em 1940, fundou o Tingüi - "órgão dos ginasistas intelectuais publicado pelo Centro Literário Humberto de Campos." O jornalzinho circulou até 1943, período em que Dalton cursou o Colégio Iguaçu e o pré-jurídico. Nessa época, o Tingüi já era publicado pelo grêmio cultural General Rondon. Aos 16 anos, óculos de sete graus de miopia, frequentava as salas Avenida, Luz e Imperial, que não existem mais. Em literatura, encantava-se com Monteiro Lobato.



O Tingüi parou de circular quando Dalton completou 18 anos e passou no vestibular. Foi nesse jornal que publicou o polêmico artigo Percevejos, pulgas e sapos, um sopapo no beletrismo, sublinhado, mais tarde, pelo irascível Emiliano, o poeta perneta, na Joaquim. O texto causou tanto mal-estar que provocou a saída de um dos diretores da revista, Erasmo Pitoto. Dalton considerava-se integrante da "geração de 20 anos da ilha", de poetas isolados pelos simbolistas e tradicionalistas. Regurgitava aforismos: "O adultério é nojento (principalmente pela parte da mulher). Tem gosto de bagaço de laranja." Com o fim do Tingüi, o contista trabalharia como repórter policial e crítico de cinema no Diário do Paraná.

No escritório da fábrica Trevisan, Dalton fez o escritor e se desfez do consultor jurídico. A tabuleta na porta denunciava a vocação para a esquiva. "Não se faz anúncio/não se assina revista/não há verba/não insista." Com o fim da empresa, o terreno se tornou estacionamento. Em sete anos, ele declinou dos pareceres.

Ano de publicação de Serenata ao Luar, 1945 foi importante para a trajetória de Dalton. Ele venceu um concurso no Paraná com Conto tirado de uma notícia de jornal. Quase morreu em 11 de março, em consequência da explosão de uma caldeira na fábrica. Fraturou o crânio. Um mês no hospital. Costumava dizer que o acidente mudara-lhe até a perspectiva literária.

Em 1948, quando a Joaquim morreu, Dalton comandava as reuniões do Clube de Cinema de Curitiba. Até hoje gosta de filmes de terror, comédias italianas e clássicos de Charles Chaplin, Woody Allen, Fassbinder, Jornada nas Estrelas. Em 1949, colaborou com o Guaíra e viajou seis meses pela Europa, único passeio ao exterior. Em 1951, começou a escrever para a Gazeta do Povo.


Casou-se com Yole Bonato, em 1953. Teve duas filhas, Isabel e Rosane. Yole e Isabel morreram quase na mesma época, em 1997. Dalton passou a viver só na casa da Rua Ubaldino do Amaral. A cachorrinha Fifi também se foi. O escritor tem duas netas: Catchuska, que nasceu em Londres, e Nataska, ambas com pouco mais de 30 anos, filhas de Isabel e Arion Cornelsen. O irmão Hilton Dácio também vive em Curitiba.

Dalton Trevisan cuida dos jardins, ocupa-se de trabalhos manuais. Prefere escrever de manhã, em máquina datilográfica mecânica no escritório do lado de fora da casa. Perto das 10h30, sai pelo portão lateral. Passa pelas livrarias do Chaim e do Elotério, cujo proprietário, Elotério Borrego de Oliveira, tornou-se amigo e confidente. Almoça às 11h30 no restaurante vegetariano All Natura, no centro da cidade. Senta sempre nos fundos. Paga o almoço com tíquetes e segue para o Citibank. De lá vai ao Mercadorama. Na rua XV, passa pela Schaffer para uma coalhada ou um chá com torradas. Na livraria Ghignone, prosa com o José Ghignone. Vai à banca de jornal.

Tímido e hipocondríaco, Dalton sempre zelou pela imagem e o alcance da obra. Em 1953, começou a imprimir contos em cordel., edição limitada a 200 exemplares. Distribuia para críticos, escritores, amigos. Tentava uma editora. Começou a frequentar o ciclo intelectual de São Paulo. Cassiana Lacerda revela que o contista ostentava na parede do escritório o diploma de bacharel em direito e um bilhete de Carlos Drummond de Andrade. "Que delícia uma revista cuja redação é na Rua Emiliano Perneta 476 e que promete publicar, em seu segundo número, um artigo sob o título Emiliano, o poeta medíocre". A pesquisadora diz que Dalton levava para a biblioteca pública recortes com reportagens sobre ele e obra publicadas no mundo. O contista defendeu a publicação de teses sobre o próprio trabalho, como Do Vampiro ao Cafajeste, de Berta Waldman, ou Dalton Trevisan: a Trajetória de um Autor que se revê, de Rosse Bernardt.

Dalton Jérson nunca gostou muito de música, à exceção dos antigos e populares como Orlando Silva e Vicente Celestino. Detesta poluição sonora e visual, comida americanizada, shopping center. Gostaria muito de voltar à Europa. Adora comédia, bangue-bangue, macarrão, peixe e vinho. Quando lá estivemos, preparava um conto, Pico na Veia. Domina a cena literária sem influenciar diretamente a produção local. Despreza tanto a obra de Emiliano Perneta quanto a de Paulo Leminski, poetas curitibanos, o último de expressão nacional. Fala e lê inglês, francês, espanhol. Esqueceu o alemão.



Bastante conhecido em Curitiba, há quem duvide de sua existência na cidade, por onde caminha diariamente de jeans, boné, jaqueta e par de tênis surrado. Odeia barulho, mas mora numa esquina ruidosa, na Rua Ubaldino do Amaral, no bairro Alto da Glória, na casa acidentetada onde ninguém ousa bater.


Cláudio Renato


segunda-feira, 10 de maio de 2010

Dalton Trevisan, um vampiro à luz do sol

Dalton Trevisan, pelas ruas de Curitiba, em foto de Marcelo Ridini, Agência Folha
Uma das raras fotos do contista


Dalton Trevisan observa o minúsculo doutor Sampaio, terninho e bengalinha, que deixa a confeitaria Schaffer. "Olha o pezinho, olha a mãozinha, vamos segui-lo!", ordena ao séquito. À noite, vai ter com cafetinas, prostitutas, malandros e velhinhos abandonados. "Dalton divertia-se com cárie, caspa, chulé e usava o material nos contos", diz Carlos Alberto Pessoa, que conheceu e conviveu com o escritor nas andanças por Curitiba. O maior contista do Brasil perseguia, sarcasticamente, o tal doutor Sampaio, mas odeia que o sigam. Aos 85 anos incompletos, sustenta a própria lenda. Há pelo menos seis décadas, foge dos fotógrafos como Drácula, da cruz. Nega entrevistas. Cultiva o mistério.


Xingar em escala crescente (ou decrescente) é uma característica de Dalton Trevisan. O desafeto começa como "barata de fogão", passa a "barata de fogão com caspa na sobrancelha" até ser rebaixado a "barata de fogão leprosa com caspa na sobrancelha". Regozija-se na prospecção de histórias. Na última mesa da Schaffer, é visto normalmente com o advogado e ex-integralista Luiz Gastão Franco de Carvalho ou um amigo "informante." Pede coalhada, torrada e chá. Dalton, fama de avarento, paga ao amigo um moranguinho com nata, a título de "direito autoral."


Pessoa, o ex-informante, conta que Dalton Trevisan considerava Grande Sertão: Veredas ingenuidade de Guimarães Rosa. "Como os vaqueiros não perceberiam que estavam diante de uma mulher?" Tinha reservas até ao conto O Alienista, de Machado de Assis, por achá-lo muito longo. Em cinema, diz o "garganta profunda", adorava Fellini, Visconti e Kubrick.
Dos amigos, Dalton exige fidelidade absoluta, segundo o discreto Eleotério Borrego, livreiro e confidente. Na livraria, o contista tem uma caixa de correspondências. "Quando se aproxima um estranho, pede para apresentá-lo como João", conta o jornalista e editor Fábio Campana.


Uma das principais fontes de Dalton foi Ali Chaim, que, na década de 70, tinha um programa policial na rádio. Chaim - "único cidadão comum com título de delegado honorário do Paraná" - entrevistava ladrão, estuprador, marido traído. "Ele mandava contar tudo, queria saber do fel da história, curra, sacanagem; às vezes ia à delegacia verificar o inquérito", diz o radialista. Dalton gostava de rodar Curitiba de madrugada no fusquinha de Chaim. "Fogueteado, contava um monte de histórias babilônicas."


Como o conde demoníaco da Transilvânia, Dalton tem seus Renfields, seguidores fiéis. "As pessoas ficam fascinadas diante do vampiro e tornam-se doadoras literárias", conta o jornalista Luiz Geraldo Mazza, amigo da juventude. O simpático Estêvão A.S mimetiza os tiques do mestre. Até para marcar entrevista preferia evitar a lotérica onde trabalhava. "Vamos ao café da praça Zacharias, e nada de fotos. Já não gostava de fotografias antes de conhecer o Dalton, imagina agora!" Estevão conta que conheceu o escritor quando precisou gravar um vídeo, Que fim levou o Vampiro de Curitiba? Ele faz favores profissionais e contatos para Dalton no mundo exterior.

O escritor Miguel Sanchez Neto é um dos que mais conversam com Dalton, mas garante que não pretende escrever a biografia do contista. "Não traio a amizade." Sanchez Neto revela apenas que Dalton considera Cristo o grande personagem do Ocidente e gosta muito dos textos de Ivan Lessa, Paulo Francis e, principalmente, das obras de Machado, Rubem Braga e Pedro Nava. O escritor Manoel Carlos Karam conta: o contista odeia ser fotografado por considerar que "a foto mata o espião."


Dalton costumava ir ao Rio para visitar Rubem Braga, morto em 1990. Gostaria de ter convivido mais com o mestre. Crítico feroz de Curitiba, diz que em cada esquina da cidade pode haver um Raskolnikof, o assassino protagonista de Crime e Castigo, obra-prima de Dostoiévski. Dalton até já teve um fusquinha bege, mas gosta mesmo de andar a pé. Frequentador da Boca Maldita na década de 60, preferia as discussões literárias às políticas. Jamais aceitaria uma indicação para a Academia Brasileira de Letras, embora gostasse muito de um ou outro imortal. Os ex-amigos dizem que Dalton é poroso aos elogios, detesta crítica, tem horror a discussões. Foi grande amigo do artista plástico Poty Lazarotto, mas andaram brigados. Reconciliaram antes da morte de Poty - em maio de 1998. Gosta muito de Constantino Viaro, filho do amigo Guido e ex-diretor do Teatro Guaíra, bem como de Miguel Sanchez Neto, hoje com 44 anos.


Na década de 70, Dalton publicou uma crítica na Gazeta do Povo, com as iniciais J.P., intitulada Quem tem medo do vampiro?, em que desbancava o próprio trabalho: "Quem leu um conto, já viu todos (...) Seu pobre vocabulário não tem mais de oitenta palavras." Um trecho diz: "Um talento não se lhe pode negar - o da promoção delirante. Com falsa modéstia, não quer retrato no jornal - e o jornal sempre a publicá-lo. Nunca deu entrevistas - e quantas já foram divulgadas com foto e tudo? Ora, negar o retrato ao jornal não é uma forma de vaidade, a outra face diabólica do cabotino?"


Talvez menos de 15 pessoas saibam o número do telefone da casa acinzentada de Dalton Trevisan. "Quem precisa falar, deve obedecer a códigos pessoais e intransferíveis", conta um dos privilegiados conhecedores da numeração. Cada interlocutor deve obedecer a determinados números de toques, a tantos minutos de espera cronometrada, a senhas predefinidas. É Dalton quem normalmente liga, quando o assunto lhe interessa.


Conta-se que, certa vez, chovia aos cântaros em Curitiba, e o cineasta Joaquim Pedro de Andrade ousou bater no portão da casa, que nem fresta para correspondência tem. Queria conversar sobre o filme Guerra Conjugal, baseado em um conto do curitibano. A porta se abriu; o portão, não. O escritor teria mandado Joaquim Pedro esperar numa esquina determinada em tantos minutos. Quem conhece o escritor, garante que a história é verdadeira. Perto da casa, há uma igreja que inspirou em Dalton Trevisan o anátema Lamentações da Rua Ubaldino. O texto amaldiçoa os Irmãos Cenobitas por causa do barulho das guitarras elétricas e dos sermões. Também perto, há uma sauna masculina, da qual andaram jogando bilhetinhos provocadores para dentro da casa do contista, que jamais acusou recebimento.


Na revista Joaquim, Dalton escreveu certa vez: "Notícia policial, frase no ar, bula de remédio, pequeno anúncio, bilhete suicida, fantasma no sótão, confidência de amigos, leitura de clássicos etc. O que não me contam escuto atrás da porta." É um aspecto curioso da personalidade do escritor. Ele preza a própria intimidade, mas não poupa a alheia, ainda que a ela acrescente uma abordagem ficcional. Muitas das histórias contadas por conhecidos tornaram-se narrativas literárias. Dalton adora quando há uísque em roda de amigos. Ele não bebe, mas os outros se soltam. "Ele quer saber de todos os pormenores, os detalhes sórdidos", conta Carlos Alberto "Nego" Pessoa, personagem involuntário do contro Pássaro de cinco asas (1975).


Verbete na Enciclopédia dos Vampiros, da editora americana Makron Books, Dalton Trevisan há anos mantém em Curitiba asseclas que se renovam. Para apagar os próprios rastros, pedia aos amigos - como os jornalistas Fábio Campana, "Nego" Pessoa e o escritor Jorge Snege - que "invadissem" as bibliotecas públicas e os sebos, onde mantinha informantes para saber quando surgia qualquer obra por ele enjeitada. Eles deveriam subtrair da prateleira as provas dos "crimes" juvenis de Trevisan e entregá-las para o autor destruí-las. Em troca, oferecia novas edições autografadas. Ou um dedo de prosa em que ele ouvia, o outro falava.


Snege registou na autobiografia Como eu se fiz por si mesmo (Travessa dos Editores, 1994) o episódio em que Dalton ofereceu a Campana, na época, os seus três últimos livros autografados, em troca de um único exemplar de Sonata ao Luar (obra de 1945 renegada pelo autor). O jornalista deveria surrupiar o livro da biblioteca pública. Campana cumpriu a missão, segundo Snege, graças a um capote sob o qual escondeu o exemplar.


Dalton Trevisan tem obsessão em revisar os contos e apagar o passado literário e biográfico. Quando presenteia um velho amigo com a nova edição de um livro, faz questão que lhe devolva o exemplar da tiragem anterior. Além da novela Sonata ao Luar, com ilustrações de Guido Viaro, o escritor rejeitou sonetos, ideias soltas, críticas e crônicas esportivas publicadas nos periódicos O Livro (1939) e Tingui (1940). Os textos de Dalton são reescritos (e reduzidos) quantas vezes julga necessário. Em cada edição, narrativas mais concisas, os mesmos personagens, as mesmas situações em uma Curitiba que já não existe mais. Com o tempo, os contos se reduzem a haicais, como em 111 Ais (editora L&PM) e na edição limitada de 71 contos fragmentários distribuida para amigos.


O ex-secretário estadual de Cultura do Paraná Luiz Alberto Soares elogia a coragem do contista. "Ele quer mais é fugir dos chatos que o procuram para uma orelha de livro, um prefácio, coisas que ele nunca fez." Soares garante que o escritor é afável, mas contido. De Jorge Amado, só considera A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água. O crítico Wilson Martins, amigo de Dalton da década de 40 até os anos 70, foi dos primeiros a lhe elogiar o trabalho na revista Joaquim. Romperam. Morto no começo deste ano, Martins acusava o contista curitibano de repetitivo. "E não vamos brincar de fazer as pazes."


Quando, na livraria do Chaim, Dalton folheou a biografia de Vinícius de Moraes, O Poeta da Paixão, do jornalista e escritor José Castello, ficou apavorado. Para começar, não gostou de uma foto. Telefonou para todos os amigos para perguntar o que Castello fazia na cidade. Quando soube que o jornalista se mudara para Curitiba definitivamente, ficou aflito. Castello garante que não quer saber mais de biografia. Cinco anos na capital do Paraná, não tinha idéia de como Dalton era fisicamente.


O escritor Wilson Bueno dizia achar curioso o conceito de morte de Dalton. Ele afirmava existir três experiências de morte: a natural, a de Ivan Illich, de Tolstói, e a anunciada, de Gabriel García Márquez. A biografia seria a quarta forma de um vampiro morrer.


No próximo capítulo, informações preciososas para quem um dia ousar escrever a biografia (não autorizada, obviamente) de Dalton Jérson Trevisan. ´


Cláudio Renato