quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Ruy Barbosa, a caricatura da Belle Époque




De repente, o nome de Ruy Barbosa ergue-se do mausoléu do esquecimento ou do olvido, como certamente ele preferiria. Lança-se, altaneiro, por sobre e entre banners, microblogs, outdoors, comunidades eletrônicas e placas de caminhão, para tonificar o brado moralizante dos que se dizem inconformados com a crise atual no Senado da República, como se este fosse o mais grave e definitivo rompante nepotista naquela casa legislativa. "De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto." Sobranceiras, as palavras proferidas pela Águia de Haia voltam a sobrevoar as consciências indignadas no planalto central e nos quatro pontos cardeais do país como símbolo de probidade, competência e correção.



Haia, suposto ninho da nossa ave de rapina, é a terceira maior cidade da Holanda, depois de Amsterdã e Roterdã. Conta hoje com população em torno de 600 mil habitantes e área de 100 quilômetros quadrados. É uma cidade moderna e cosmopolita. Com moradores de mais de cem nacionalidades, 40% dos habitantes são estrangeiros. São 45 museus, 30 teatros, 64 hotéis, 26 salas de cinema e 70 mil árvores plantadas ao longo das ruas onde, praticamente, ninguém jamais ouviu falar em Ruy Barbosa. O jurisprudente soteropolitano pontificou naquela cidade, entre maio e outubro de 1907, durante a Segunda Conferência Internacional de Paz. Com eloquência ardente e erudição empolada, discursou em francês pelo direito de equiparação dos votos dos países fortes e fracos. Gabava-se do suposto conhecimento de todas as línguas (vivas e mortas). Cogitou de ensinar inglês para os ingleses na Inglaterra.


Que não se duvide dos bons propósitos de Ruy Barbosa, mas a correção do jurisconsulto baiano não impediu que, em 14 de dezembro de 1890, quando ministro dos Negócios da Fazenda da República Velha, mandasse queimar os registros de posse, de compra e de venda de escravos no Brasil. Dizia querer apagar "a mancha" da escravidão do passado nacional. Queria, na verdade, impedir o cálculo de eventuais indenizações pleiteadas por antigos proprietários de escravos. A discutir os projetos de lei que propunham o ressarcimento dos antigos senhores de negros, preferiu pôr fogo na História. Sinal de que, talvez, a incipiente República não tivesse adesão, coesão e força necessárias para barrar institucionalmente o eventual retrocesso escravocrata.

A competência e a probidade, tão propaladas pelos admiradores do intelectual condoreiro (e são muitos), não frearam a desastrada política financeira por ele patrocinada e que, no fim do século XIX, transformaria o Brasil em um cassino internacional. A crise do encilhamento – termo emprestado às apostas em corridas de cavalo – provocou aumento de inflação, crise estrutural na economia e crescimento da dívida e da dependência externas do país. Ocorreu durante o governo provisório do marechal Deodoro da Fonseca (1889-1891). O ministro Ruy Barbosa, sob o pretexto de acelerar a industrialização do Brasil, adotara uma política de estímulo aos investimentos no setor garantidos por emissões monetárias do Tesouro Nacional. O que se seguiu foi especulação financeira desenfreada, disparada de preços e boicotes por meio de empresas-fantasmas e ações sem lastro.

Ruy Barbosa, o sisudo, um poço sem fundo de erudição, talvez tenha sido um dos homens públicos mais caricaturados no Brasil de Machado de Assis, Chiquinha Gonzaga, Raul Pederneiras, K. Lixto, J.Carlos e Nair de Tefé. Levava-se tão a sério que difícil seria para a população brasileira, principalmente a carioca, não zombar de tamanha sisudez, ranzinzice e austeridade. A maioria dos textos ruibarbosianos caracterizava-se por um sarapatel indigesto de antífrases, antonomásias, disfemismos, hipálages, metalepses, matiazites, anadiploses, sínqueses, prolepses, oxímoros. Que não são doenças, nem curas, mas figuras de pensamento e construção a afundar cada vez mais o homem comum, semi-analfabeto, nas trevas da própria ignorância.
De como Ruy Barbosa, o erudito, despetalava a flor do Lácio caprichosamente, glosa-se, até hoje, em todos os principais cursos de Direito do Brasil. E os casos se tornaram extravagantes, quando, por motivos alheios à própria vontade, o luminar descia da torre de marfim para contatos fortuitos com a plebe rudimentar.


Notável se fez o episódio do flagrante a um ladrão de patos. Ruy Barbosa, o douto, ao chegar certa noite ao casarão onde morava, na então aprazível Rua São Clemente, em Botafogo, ouviu um barulho estranho vindo do quintal. Apressou-se o suficiente para flagrar um homem que pulava o muro, tentando furtar-lhe os patos de estimação. Aproximou-se, vagarosamente, e bateu nas costas do gatuno com o castão da bengala:

- Bicéfalo, não é pelo valor intrínseco dos bípedes palmípedes e sim pelo ato vil e sorrateiro de galgares os profanos de minha residência. Se fazes isso por necessidade, transijo; mas se é para zombares de minha alta prosopopeia de cidadão digno e honrado, dar-te-ei com minha bengala fosfórica no alto de tua sinagoga que te reduzirá à quinquagésima potência que o vulgo denomina nada.

O ladrão espantado, confuso, amedrontado, aterrorizado, apertou os olhos e balbuciou:
- Doutor, levo ou não levo os patos?

De outra feita, Ruy Barbosa, o preclaro, ingressara no bonde em Santa Teresa e se sentara em um dos bancos de três lugares, recostando-se confortavelmente, quando uma conhecida atriz francesa da época, muito gorda e patusca, acomodou-se justamente ao lado do nosso sábio. O ferrocarril estava praticamente vazio. Suando copiosamente, Ruy, angustiado, olhava de soslaio a mulher, que, a cada solavanco, o espremia mais contra a murada do coletivo. De supetão, após mirar e constatar que todo o banco traseiro estava vazio, berrou:

- Atrás há três atriz atroz!

Julgando-se cortejada por senhor tão elegante e nobre, a imensa e ignorante coquette francesa reprimiu um risinho, abanando-se com um leque colorido, e seguiu a viagem inteira tentando seduzir o impaciente cavalheiro da severa figura.

Conta a lenda que, antes de morrer, aos 73 anos, no primeiro de março de 1923, Ruy Barbosa, o profeta, teve pelo menos mais um contato direto com o povo que lhe teria deixado furioso, inconformado, estarrecido e desolado como nunca! O jurista, político, diplomata, escritor, filólogo, tradutor e orador brasileiro sofria com a perda de visão na velhice. Esperava um bonde no Passeio Público, próximo aos Arcos da Lapa, quando percebeu que, no fim da rua, apontava a condução. Ele aproximou-se de uma preta velha, gorda e bonachona, lenço de pano encardido na cabeça, para perguntar-lhe sobre o número ou o nome da direção do bonde que se aproximava.

- Meu senhor, me desculpa, porque querer ajudar eu quero. Mas acontece que eu também sou analfabeta!

Cláudio Renato.

11 comentários:

  1. Bela condução narrativa, senhor!
    Ri bastante com a história do pato, mas o desfecho foi sensacional: quem diria, Ruy Barbosa, o douto, o profeta, o preclaro, ficou às escuras... Dizem que quem fita demasiadamente luz acaba cego...

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  2. Querido Cláudio,
    Você usou muito bem as anedotas para dar um tom agradável ao texto. Mas a verdade é que você falou de coisas muito sérias. O primeiro ponto que me chamou a atenção foi o fato de que hoje, em blogs, páginas da internet, e mesmo nas conversas diárias, as pessoas ditas cultas de apoderem de citações para dar valor a conceitos muitas vezes indefensãveis. Essa judicialização das idéias me incomoda. Prezo muito mais o bom senso e o equilíbrio da ignorância pacífica. O segundo ponto diz respeito ao próprio Ruy Barbosa. Como eu já te disse, considero essa uma figura exemplar da nossa história. Reunia tantas ambivalências, defeitos, qualidades, e uma personalidade tão controvertida, que mais parece ter saído de conto. Talvez tenha mesmo. O fato é que Ruy Barbosa é importante para a formação do caráter brasileiro, que diga-se de passagem ainda está em geração. Somos nacionalistas apaixonados pelo exterior. Gostamos de complicar o que é simples, simplificar logarítimos, e frequentemente nos enrolamos nas nossas próprias canelas. Não consigo imaginar um personagem mais brasileiro que Ruy Barbosa.

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  3. Sir Renato,

    Em que pese a probidade de Ruy Barbosa, o estilo rococó, a arrogância e a sisudez o afastavam muito do povo brasileiro, como você mostrou nas anedotas. O ladrão, a atriz e preta velha são praticamente impedidas de se comunicar com o jurisconsulto, o diplomata, o escritor, o político...

    . Ruy não pode ter a desculpa de dizer que fora prisioneiro de uma época. Conviveu com Machado de Assis e Euclydes da Cunha, donos de textos extraordinários e fluentes. Mas Ruy preferia a erudição cumulativa à cultura verdadeira. Os textos são intragáveis. Ruy foi amigo íntimo de Castro Alves, conterrâneo dele, um poeta identificado com o sua gente. Mas sempre preferiu o estilo rocambolesco, que tenta se valorizar pela complicação.

    Com relação à queima dos documentos sobre a escravidão, concordo com Ruy, porque havia um movimento muito forte dos ex-proprietários de escravos para fazer uma farra à custa da Viúva.

    O encilhamento foi um equívoco que revela o liberalismo radical e inconsequente de alguns próceres da República Velha.

    Grande abraço,

    Graciano Filho - João Pessoa (PB)

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  4. Sem dúvida, Ruy Barbosa é uma das figuras mais polêmicas da história do Brasil. Seus 'discursos elitizados' permeiam a sociedade brasileira até hoje. A famosa Oração aos Moços é um exemplo. Uma regra jurídica da igualdade como concebemos até hoje (infelizmente). O texto é criticado por muitos estudiosos contemporâneos porque pressupõe tratamento jurídico desigual para pessoas socialmente desiguais. Por isso, nossa cidadania foge do pressuposto básico: a ideia de um mínimo comum de direitos a todos. Aí, ficamos como estamos: quem é juiz não vai pra cadeia, quem é político também não, quem tem dinheiro também não, quem tem parente no Senado também não...

    Mas, sejamos justos. A culpa não é só do 'pobre' letrado Ruy Barbosa. A nossa própria Constituição no artigo 5º diz que todos somos iguais perante a lei, mas não esquece de deixar claro, logo em seguida, que há exceções.

    No mais, pelo menos Ruy Barbosa nos rendeu boas risadas com esse seu texto. Muito bom!

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  5. Concordo com Graciano. Ainda bem que Ruy queimou a papelada ou até hoje estaríamos indenizando LATRIFUNDIÁRIOS. Além do que, queimar o papel não mudou em nada a história da escravidão no país. Se ela ameaçou ter fim um dia foi agora no Governo Lula quando finalmente resolveram deixar o negão sentar no banco da universidade. Quem sabe então se daqui a outros cem anos os descendentes do negão poderão percorrer os pilotis da PUC - para estudar, não para lavar. E talvez seja um tempo em que Jesus Ortal já tenha deixado a reitoria. O que o reitor tem a ver com Ruy Barbosa? E a gente não estava falando de gente que não entende nada de povo, sô?

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  6. Muito bom , muito bom. Sempre que passo por aqui, aprendo e me encanto com sua forma de contar a história.
    parabéns.

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  7. Encontro-me no grupo dos que já utilizou a famosa citação "De tanto ver triunfar...", confesso. Juro que foi com boas intenções...

    Concordo com o Mario Graciano sobre não ter a desculpa da época. O estilo rebuscado, gongórico (ninguém usou essa, achei melhor lançar mão, logo) infelizmente impressionou tanto os juristas que eles até hoje pensam que isso é "escrever bem".

    Confesso ainda, essa sim uma lacuna meio vergonhosa, que se estudei a queima dos documentos, não lembrava. No entanto, o ato não impediu só a reparação dos senhores de engenhos e etc... impediu também que os próprios descendentes dos africanos escravizados requeiram reparações. Sem contar o próprio valor da documentação para pesquisa. De qualquer forma, foi uma maneira de 'apagar a mancha' que criou uma ainda pior.

    As consequencias desastrosas do encilhamento são bem mais estudadas, creio.

    Mais um belo texto.

    abração !

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  8. Vou propor à ABL e ao Iphan o tombamento precoce deste Passavante: como disse outro seguidor informal do blog, é uma fonte infatigável de textos preciosos, de extrema utilidade pública. Cláudio, parabéns pela iniciativa e pelo empenho na construção da obra.

    Quanto aos defeitos do Ruy Barbosa, nos dias de hoje, caso realmente ele fosse aquele monumento de probidade e ética, seriam perdoáveis tanto o estilo empolado quanto a rabugice - principalmente se o compararmos com outro bigodudo de óculos, igualmente pomposo e posudo, mas que tanto tem sujado o Senado e a história política do país. Resumindo: mil vezes a Águia de Haia ao Ratão do Banhado.

    Abraço!!!

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  9. A Segunda Coferênia de Haia, em 1907,(a primeira foi idéia de Nicolau II, em 1899)ganhou importância pelo grave quadro político-militar envolvendo Europa, EUA e Japão no período. Participar da Coferência fazia parte da estratégia diplomática de fazer do Brasil nação do mundo "civilizado". O que se viu depois foram duas guerras mundiais.

    Rui Barbosa, por sua vez, destacou-se pela sua intransigente defesa das nações menos influentes no Congresso. Intransigência, publicada na imprensa americana e britânica como "...impertinência de nações sem nenhuma importância", que lhe valeu lugar na comissão responsável em refletir e dar conclusão ao impasse da composição do Tribunal de Arbitragem. O Courrier de la Conférence, em 7 de setembro, chamou a comissão de Os sete sábios, em primeira página, com foto e tudo.

    A escolha de Rui Barbosa a delegado do Brasil em Haia não se deu apenas por sua erudição jurídica, mas, por sua experiência como advogado, por ser duro nas negociações e por dominar o francês com perfeição. Segundo a historiadora, Christiane Laidler, o Barão do Rio Branco, ministro responsável que criou o epiteto Águia de Haia, e que orientava Rui Barbosa todos os dias por telégrafo, tinha no embaixador brasileiro nos EUA, Joaquim Nabuco, seu nome favorito.

    A escolha por Rui Barbosa não impediu que Joaquim Nabuco cava-se, junto ao governo norte-americano, o cargo de Presidente de honra da primeira comissão de Haia para o senador baiano.

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  10. Ri muito!!!
    Rui Barbosa realmente é um personagem fantástico. Confesso: adoro usar sua figura como exemplo, mas detesto ler seus textos. São textos absurdos, com uma erudição excessiva, totalmente excessiva.
    José Murilo de Carvalho uma vez me contou que em comício no sertão da Bahia, Rui Barbosa falou por três horas, sem parar. Um capiau chegou e disse: "Rapai, o homi tá falando tanto. Eu num entendi nada que ele disse, mas ele fala com tanta certeza, que só pode ser verdade!" E Rui saiu nos ombros do povo.

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  11. Adorei o texto! Sempre me perguntei porque Rui Barbosa é tão considerado, como se fosse um gênio da raça! Nunca consegui compreender por que ninguém tem coragem de desmascarar isso. Veio o modernismo, veio o concretismo, veio o neoconcretismo e insistem com esse sujeito.., até onde sei, ele não tem nada a ver com o Brasil

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