sábado, 22 de agosto de 2009

Entre Canudos e Piedade, o Cosme Velho

Euclydes no enterro de Machado de Assis, em 1 de outubro de 1908. Ele carrega o caixão, juntamente com Olavo Bilac, Graça Aranha, Coelho Netto, Rui Barbosa, Raimundo Correia, Rodrigo Otávio e Affonso Celso
Euclydes da Cunha
Por ocasião do centenário da morte de Euclydes da Cunha, assassinado aos 43 anos, em 15 de agosto de 1909, uma tragédia social e outra pessoal são lembradas recorrentemente. A primeira é a de Canudos, no sertão baiano, entre os outubros de 1896 e 1897, quando pelo menos 25 mil jagunços foram dizimados por quatro expedições do Exército da Primeira República. A segunda é a de Piedade, subúrbio do Rio, onde Euclydes encontrou o próprio fim ao invadir a casa do comborço, o tenente Dilermando de Assis, pai de dois filhos da mulher de Euclydes, Saninha, registrados pelo escritor. O primeiro deles, Mauro, nascido em 1906, morreu com uma semana de vida, porque Euclydes o trancara em um quarto e não deixara que a mãe o alimentasse. Exímio atirador, Dilermando deu cabo à vida de Euclydes e, seis anos mais tarde, à de Euclydes da Cunha Filho, o Clidinho, que tentava vingar a morte do pai. Ana de Assis viveu 15 anos com Dilermando até ser abandonada, aos 50 anos, com cinco filhos.
Em Canudos, Euclydes da Cunha, egresso da Escola Militar e republicano de primeira cepa, recolhera, como correspondente do jornal A Província de São Paulo (atual O Estado de S. Paulo), farto material para escrever Os Sertões (1902), a reportagem excepcional que faz dele, no Brasil e no mundo, um dos pioneiros do Novo Jornalismo avant la lettre. Para o leitor moderno, a primeira parte do livro é chatíssima, concessão natural ao realismo e ao determinismo vigentes à época. O final da obra, contudo, é eletrizante, porque o próprio Euclydes, como repórter, superara, diante da realidade, os preconceitos iniciais, de que Antônio Conselheiro seria um corifeu monarquista com articulações internacionais, fanático, anarquista, socialista, líder de uma espécie de Vendeia, a comunidade rural francesa que resistira à Revolução de 1789 em prol do Rei e do Vaticano. Sequer armas os sertanejos tinham, a não ser aquelas que capturavam dos soldados. Foram chacinados e covardemente degolados homens, mulheres, velhos e crianças.
Depois de descrever as atrocidades de Canudos e antes de morrer a tiros em Piedade, Euclydes da Cunha testemunhou a morte do maior escritor que o Brasil já teve e jamais terá, Joaquim Maria Machado de Assis, na casa 24 da Rua Cosme Velho, no Rio de Janeiro, em 29 de setembro de 1908. Euclydes deixou um texto apaixonado e muito pouco conhecido sobre a morte do mestre, vítima de câncer na língua. Está registrado em uma página amarelada no Arquivo do Centro de Memória da Academia Brasileira de Letras. Euclydes descreve, emocionado, os últimos momentos de Machado de Assis - triste e solitário - e a aparição inesperada, naquela noite, de um menino anônimo "entre os 16 e 18 anos". Ele não identifica o rapaz, recusa-se a fazê-lo, mas exalta-lhe a atitude. "Qualquer que seja o destino dessa criança, ela nunca mais subirá tanto na vida. Naquele momento o seu coração bateu sozinho pela alma de uma nacionalidade. Naquele meio segundo – no meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis – aquele menino foi o maior homem de sua Terra."
Eis o testemunho histórico de Euclydes da Cunha:

"Na noite em que faleceu Machado de Assis, quem penetrasse na vivenda do poeta, em Laranjeiras, não acreditaria que estivesse tão próximo o desenlace de sua enfermidade. Na sala de jantar, para onde dizia o quarto do querido mestre, um grupo de senhoras – ontem meninas que ele carregara no colo, hoje nobilíssimas mães de família – comentavam-lhe os lances encantadores da vida e reliam-lhe antigos versos, ainda inéditos, avaramente guardados em álbuns caprichosos.

As vozes eram discretas, as mágoas apenas rebrilhavam nos olhos marejados de lágrimas, e a placidez era completa no recinto, onde a saudade glorificava uma existência, antes da morte. No salão de visitas viam-se alguns discípulos dedicados, também aparentemente tranqüilos. E compreendia-se desde logo a antilogia de coração tão ao parecer tranqüilos na iminência de uma catástrofe. Era o contágio da própria serenidade incomparável e emocionante em que ia a pouco e pouco extinguindo-se o extraordinário escritor.

Realmente, na fase aguda de sua moléstia, Machado de Assis, se por acaso traía com um gemido e uma contração mais viva o sofrimento, apressava-se a pedir desculpas aos que o assistiam, na ânsia e no apuro gentilíssimo de quem corrige um descuido ou involuntário deslize. Timbrava em sua primeira e última dissimulação: a dissimulação da própria agonia, para não nos magoar com o reflexo da sua dor. A sua infinita delicadeza de pensar, de sentir e de agir, que no trato vulgar dos homens se exteriorizava em timidez embaraçadora e recatado retraimento, transfigurava-se em fortaleza tranqüila e soberana. E gentilissimamente bom durante a vida, ele se tornava gentilmente heróico na morte...

Mas aquela placidez aguda despertava na sala principal, onde se reuniam Coelho Neto, Graça Aranha, Mário de Alencar, José Veríssimo, Raimundo Correia e Rodrigo Otávio, comentários divergentes. Resumia-os um amargo desapontamento. De um modo geral, não se compreendia que uma vida que tanto viveu outras vidas, assimilando-as através de análises sutilíssimas, para no-las transfigurar e ampliar, aformoseadas em sínteses radiosas – que uma vida de tal porte desaparecesse no meio de tamanha indiferença, num círculo limitadíssimo de corações amigos.

Um escritor da estatura de Machado de Assis só devera extinguir-se dentro de uma grande e nobilitadora comoção nacional. Era pelo menos desanimador tanto descaso – a cidade interira, sem a vibração de um abalo, derivando imperturbavelmente na normalidade sua existência complexa, quando faltavam poucos minutos para que se cerrassem quarenta anos de literatura gloriosa...

Neste momento, precisamente ao enunciar-se este juízo desalentado, ouviram-se umas tímidas pancadas na porta principal da entrada. Abriram-na. Apareceu um desconhecido: um adolescente, de 16 a 18 anos no máximo. Perguntaram-lhe o nome. Declarou ser desnecessário dizê-lo: ninguém ali o conhecia; não conhecia, por sua vez, ninguém; não conhecia o próprio dono da casa, a não ser pela leitura de seus livros, que o encantavam. Por isto ao ler nos jornais da tarde que o escritor se achava em estado gravíssimo tivera o pensamento de visitá-lo. Relutara contra essa idéia, não tendo quem o apresentasse: mas não lograra vencê-la. Que o desculpassem, portanto. Se não lhe era dado ver o enfermo, dessem-lhe ao menos notícias certas do seu estado. E o anônimo juvenil – vindo da noite – foi conduzido ao quarto do doente. Chegou. Não disse uma palavra. Ajoelhou-se. Tomou a mão do mestre; beijou-a num belo gesto de carinho filial. Aconchegou-o depois por algum tempo ao peito. Levantou-se e, sem dizer palavra, saiu. À porta José Veríssimo perguntou-lhe o nome. Disse-lho. Mas deve ficar anônimo.

Qualquer que seja o destino dessa criança, ela nunca mais subirá tanto na vida. Naquele momento o seu coração bateu sozinho pela alma de uma nacionalidade. Naquele meio segundo – no meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis – aquele menino foi o maior homem de sua Terra. Ele saiu – e houve na sala há pouco invadida de desalentos uma transfiguração. No fastígio de certos estados morais concretizaram-se às vezes as maiores idealizações. Pelos nossos olhos passara a impressão visual da Posteridade."


Aquela "criança" se chamava Astrojildo Pereira. Tinha 18 anos. E seria, em 1922, o fundador do Partido Comunista do Brasil (PCB) e um dos principais intelectuais marxistas no Brasil até a morte, em 1965. Euclydes tinha razão: Astrojildo Pereira nunca subiria tão alto na vida quanto naquela noite, no antigo bangalô do Cosme Velho.


Cláudio Renato

19 comentários:

  1. Sir Renato,

    Eu não conhecia o texto do Euclydes, não sabia que ele tinha visto Machado de Assis morrer e, muito menos, tinha ciência dessa história do Astrojildo Pereira. São três gerações de pensadores que tiveram encontro marcado no Cosme Velho!

    Euclydes, como você mostra, era um homem predestinado.

    À exceção do excelente documentário da Globonews, sinto que a mídia não está dando muita atenção ao centenário do autor de "Os Sertões". Confundem-se muito a vida pessoal e epopéia literária de Euclydes, infelizmente.

    Conheço o texto em que Euclydes compara Canudos à Vendéia. Foi com dois textos sobre o assunto na "Província de São Paulo" que ele se credenciou a viajar com os militares para o sertão baiano. Euclydes, como você destaca, era "republicano de primeira cepa" e só descobriu in loco a desgraça que a República representava para as populações sertanejas.

    Aprendi mais uma vez contigo, amigo.

    Um abraço,

    Graciano Filho - João Pessoa (PB)

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  2. Amigo com problema na Internet pede que seja publicado o seguinte comentário:

    Querido amigo!
    Que texto genial!... Só mesmo você para parafrasear um fato histórico (com detalhes desconhecidos pela maioria) de forma romanceada. E nossa cerveja gelada?
    Beijos no coração.

    Sergio Dutra

    P.S. Solicito editar nos comentários. Ainda não superei algumas tecnologias...rs

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  3. Grande texto, CRE. Fico feliz em poder confirmar uma tese: todo talentoso brasileiro tem problemas com mulheres, né não? Não me surpreenderia se o bravo Antonio Silva Jardim também houvesse rabiscado algum jornal em comum. Grande abraço e vai destrinchando a nossa literatura que a coisa vai cada vez melhor.

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  4. Caríssimo!

    Embora Euclides tenha digitado mais caracteres que você nesta crônica - e possa reinvidicar parte do seu salário semanal de blogueiro - é inegável que estamos diante de uma "fábrica" de belos textos, informativos e sensíveis, muitas vezes comoventes, epifânicos, inefáveis.

    Abração! (e quando você você escreverá sobre outra tragédia, a que parece reservada ao Fluminense Futebol Clube?...)

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  5. Gustavo Gomes, editor do telejornal Bom Dia Brasil, em mais uma luta acirrada contra o computador, nos pede para publicar o comentário

    ENTÃO, AQUI VAI:

    Caro CR,
    Parabéns por mais um registro histórico notável.
    Sobre o texto tenho a dizer:
    Qualidades e defeitos todo homem tem.
    Os defeitos são muitos e não valem a
    pena ser listados.
    Mas entre as qualidades, nenhuma outra é tão
    nobre quanto a delicadeza.
    O homem delicado, sem ser fraco ou dissimulado,
    é raro e valioso.
    Machado de Assis era assim.

    Um forte abraço do não tão delicado amigo, mas
    ainda em construção, Gustavo

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  6. Este comentário foi removido pelo autor.

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  7. Este comentário foi removido pelo autor.

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  8. Cláudio, mais uma paulada, bálsamo neste mar de mediocridade que nos cerca e vive cheio, nunca vaza, tentando incessantemente matar a nossa cultura.
    Viva Euclydes e Machado, para todo o sempre o maior entre os maiores.
    Beijo e já te espero, daqui a pouco, no Renascença, Andaraí, praquelas geladas ao som do samba, com o Brunoq.

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  9. Adorei o texto, adorei o blog. Vim aqui indicada pelo meu querido amigo Rogério.
    Valeu muito.
    Parabéns.
    Eliane Furtado

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  10. De Antônio Carlos Athayde, da Academia Brasileira de Letras:

    Agradecemos a preciosa divulgação

    "Rapaz, que maravilha das maravilhas!
    Vou passar para os acadêmicos!"
    Grande abraço.
    Athayde

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  11. Os 100 anos da chamada Tragédia da Piedade estão sendo pródigos de eventos alusivos ao gênio de Euclydes da Cunha, e seus feitos - dos quais se destaca, obviamente, Os Sertões.

    Ainda que o valor de sua obra-prima seja inquestionável sob diversos pontos de vista, textos como esse do Claudio, sem esconder detalhes importantes como a maneira ele levou à morte o filho bastardo da esposa, ajudam a separar homem do mito.

    Euclydes tem pés de barro, e muitos dos louvadores de plantão, infelizmente, tendem a superlativizar suas realizações e esconder suas falhas (tão humanas quanto as de qualquer outro ser vivente), para engrandecer a lenda.

    Recomendo, para mais informações sobre as relações do autor com os militares, e sobre sua ida a Canudos como ordenança do comandante da expedição (ou coisa que o valha), o "Esboço biográfico", escrito por Roberto Ventura - morto prematuramente por um acidente de carro, antes de completar a obra.

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  12. Voltei para agradecer a visita lá no Blog da Eliane.
    Claudio, já estamos enlaçados por nossos amigos.
    Voltarei sempre que puder. abração.

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  13. Nossa... que estoria linda!!! É maravilhoso entender história mas... entender os "bastidores" é impagável...
    E vamos que vamos aprendendo mais e mais.
    Bjs!!
    (Eu li lá em cima q vc ia no trabalhador??? vou matar todos vcs, q pra ir comigo eu tenho q quase pagar...rsrs)
    Bjs de novo. TT

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  14. Meu fofoqueiro histórico predileto...
    Vem fazer zum, zum, zum nos nossos ouvidos com as delicadezas de Machado contadas por Euclides, e as de Euclides agora por você, gentilmente diga-se de passagem. Viva Astrojildo!!
    Genial!!!
    bjoca

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  15. Este comentário foi removido pelo autor.

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  16. Que garimpa! Claudio Renato.
    Falar de Euclides nos faz refletir sobre o tipo de cidadania que se deu por aqui, nesses exatos 120 anos de República. Para isso, basta olharmos o cotidiano e o desastre da educação (ferramenta para a cidadania)nesse país.
    Euclides morreu jovem (42), professor (Colégio Pedro II) e desiludido com a República "que não era dos nossos sonhos". Teve "sorte". Não viu, ao contrário de Canudos, a sociedade de bananas que aqui se constituiu

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  17. Adorei!
    Confesso que de todos aqui já lidos, creio que esse seja o mais bem escrito. A escolha das palavras e as metáforas são colocadas como numa construção.
    A morte de Machado de Assis com certeza foi uma imensa comoção, morria ali o maior escritor de nossa literatura, e em mais um comentário ouso dizer do mundo. Sempre que vou ao Cosme Velho, procuro o Largo do Boticário para conversar com o Velho Bruxo. Está certo que tenho essa mania de ver os mortos e em delírios mais agudos até conversar desde moleque. Talvez por isso a escolha por História. Sempre o imagino com sua Carolina ao lado, nunca como uma grande estrela, mas como um bom senil que caminha e acena para os vizinhos. Assim com em seu leito derradeiro, que pedia desculpas por agoniar-se. Jamais foi uma estrela, ainda que soubesse, sempre foi um homem gentil. Até a próxima visita, Machado.

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  18. Meu amigo, mais uma vez suas palavras me fazem aprender sobre os bastidores da História, jornalismo puro! Não fazia ideia de que Euclydes testemunhara a morte de Machado nem do garoto que viria a ser o Astrojildo Pereira. Muito legal! Parabéns, sou seu fã.

    E o mais interessante foi que, assim como Euclydes testemunhou tanto a morte de Machado quanto à reverência do garoto, nós pudemos testemunhar também, de certa forma, o Euclydes rabiscando à tinta as palavras que descreveram aquele momento. Todos nós pudemos viajar no tempo e ficar ali, naquela placidez aguda da sala principal, pertinho do Coelho Neto, Graça Aranha, Mário de Alencar, José Veríssimo e Rodrigo Otávio, testemunhando o testemunho do escritor. Viva ele! Viva Cláudio!

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  19. Não sei o que foi melhor, o texto, o título ou a sacada de interligar os fatos. Enquanto vou pensando...parabéns.

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