segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Borges, entre Homero e Gardel


"Creio que há algo essencialmente portenho em mim, para além das minhas opiniões. Devo tal convicção a um fato secreto. Ultimamente, tenho viajado muito e gostado muito de descobrir cidades, ainda que as descubra pelos olhos dos outros, porque estou cego. Mas, com certeza, todas as noites tenho sonhos muito diferentes, e nos meus sonhos sempre estou em Buenos Aires."

(Borges, aos 86 anos, pouco antes de morrer em Genebra)


Jorge Luis Borges (1899-1986) viveu os primeiros 20 anos praticamente enclausurado entre livros, dicionários, enciclopédias. Os últimos 30 foram roubados pelas trevas da cegueira hereditária e progressiva. Entre os dois exílios de fantasias e sombras, situam-se três décadas de um cidadão comum, que experimentou em Buenos Aires o mundo real das formas e das cores, mesmo enxergando mal. A cidade é cenário de seus ensaios e contos mais importantes e enigmáticos. A luz, ainda que bruxuleante, o aproximava de Gardel. As sombras o remetiam ao grego Homero, poeta cego do século VIII a.C ao qual se atribui a autoria das epopeias fundadoras da literatura ocidental, Ilíada e Odisséia.


Borges, que em 24 de agosto completaria 110 anos, não concebia para si alternativa possível a Buenos Aires. "Se houvesse nascido em qualquer outra parte, em Yorkshire, um lugar mais lindo que este, não seria eu, mas outra pessoa." Adolfo Bioy de Casares, um dos grandes expoentes da literatura argentina do século XX, deixou um testemunho sobre o amigo antes de morrer, em 1997. "Borges temia viajar na velhice porque não queria morrer longe da cidade natal." Mesmo doente foi para a Europa, em 1985, porque não queria contrariar Maria Kodama, a última mulher, de quem dependia completamente no fim da vida. É incrível que, até hoje, o parlamento argentino discuta o repatriamento dos restos mortais do maior escritor do país, que está sepultado em Genebra e expressava o desejo veemente de, na eternidade, voltar a morar em Buenos Aires, no cemitério da Recolleta.


Por ocasião do centenário de morte de Borges, estivemos em Buenos Aires para uma reportagem especial publicada no Fim de Semana, o caderno cultural da Gazeta Mercantil. Entre queijos e vinhos, na casa de um professor de literatura argentina, apaixonado pela cultura brasileira, falávamos (como sempre) de Dorival Caymmi. Bem-humorado, o anfitrião arrematou. "Como diria Borges, quem não gosta de tango bom sujeito não é!"

No verão de 1914, Borges sentiria, pela primeira vez, nostalgia da cidade, quando o pai, o advogado Jorge Guillermo Borges, levou a família para a Europa: a mulher, a sogra e a filha de 12 anos - as três Leonores - e o menino Georgie, então com 14 anos, que, aos 7, escrevera um conto baseado em Dom Quixote e, aos 11, publicara a tradução de O príncipe feliz, de Oscar Wilde.
Pertencente à quinta geração que padecia de cegueira degenerativa na família, Jorge Guillermo viajava para consultar um oftalmologista em Genebra. Enquanto durassem os prováveis meses de tratamento, os filhos estudariam num colégio suíço. A Primeira Guerra dilatou para sete anos a estada no Velho Mundo. "Os anos que vivi na Europa são ilusórios/Estava sempre (e estarei) em Buenos Aires", resgistraria Borges, no poema Arrabal (1943).
Jorge Guillermo e o Georgie adoraram a viagem. Georgie, aliás, era o apelido de Borges, dado pela avó materna, a inglesa Fanny Haslam de Borges, que morreu aos 93 anos, também cega, sem ter querido aprender a falar espanhol. As três Leonores, enjoadas, recolheram-se ao camarote. Quando o navio aportou no Rio de Janeiro, Georgie ficou observando a cidade, que considerou encantadora. De repente, fixou o olhar em outro garoto, que declamava um poema popular, que Borges se recordaria com emoção na velhice. "Minha terra tem palmeiras/ onde canta o sabiá/ As aves que aqui gorjeiam/não gorjeiam como lá". O final do poema de Antônio Gonçalves Dias (1825-1864) provocaria lágrimas no pré-adolescente argentino. "Não permita Deus que eu morra/sem que volte para lá."
O episódio é contado por Maria Esther Vàzquez na biografia Jorge Luis Borges - Esplendor e Derrota (publicada no Brasil pela editora Record). Ela compara os destinos do portenho Borges e do maranhense Gonçalves Dias. Filho mestiço de um comerciante português e de uma cafuza, Dias estudou na Universidade de Coimbra, em Portugal. Voltou ao Brasil, mas, tuberculoso, foi obrigado a retornar à Europa. Ao perceber que não teria salvação, o poeta e dramaturgo brasileiro, aos 39 anos, quis morrer onde nascera. O navio que o trazia de volta naufragou perto da costa do Maranhão. "Borges também não teve sorte", diz Maria Esther. "Doente, morreu longe da cidade que tanto amara."

Borges gostava de percorrer sua cidade em longas caminhadas. Em El Tamaño de Mi Esperanza (1926), enfatiza que "é preciso encontrar-lhe a poesia, a música, a pintura, a religião e a metafísica que se coadunam com tamanha grandeza." Errante do centro e dos bairros pobres, considerava a cidade um labirinto de linhas retas e paralelas. "Buenos Aires é profunda e nunca, na desilusão ou no penar, me abandonei às suas ruas sem receber inesperado consolo." Já consagrado, divertia-se com o assédio dos fãs. "Eles me consideram um velho poeta cego, um Homero local."
Eterno candidato ao Prêmio Nobel, caminhava um dia qualquer de 1980 escorado pelo amigo Roberto Alifano pelo setor bancário da rua San Martín, quando, da boleia de um caminhão, um homem, entusiamado, berrou a plenos pulmões: "Borges e Maradona para todo mundo!" O escritor gargalhou. "Caramba! Vá gritar assim em Estocolmo; quem sabe não conseguiria convencer a Academia Sueca?" Conta a lenda que Borges, já cego, com o apoio da bengala, ao atravessar a avenida 9 de Julio, a mais larga do mundo, com 144 metros de pista, sentiu uma pressão em um dos braços. Alguém o acompanhava na longa travessia até a calçada oposta, onde Borges ficou surpreso ao ouvir a voz comovida. "Agradeço por ter guiado este cego."
Para Borges, o momento mais importante da vida "foi a volta de minha primeira viagem à Europa, em 1921." A partir de então, o escritor pôs-se a esquadrinhar Buenos Aires, principalmente os subúrbios das rinhas de galo, dos pampas, dos cuchilleros e compadritos, desordeiros que defendiam a honra na ponta do punhal. Dessa investigação, surgiram livros de poesia, como Fervor de Buenos Aires (1923), Luna de enfrente (1925) e Cuaderno San Martin (1929), além dos ensaios Inquisiciones (1925), El Tamaño de Mi Esperanza (1926) e Evaristo Carriego (1930).

Na Europa, Borges esteve envolvido com o ultraísmo (movimento de vanguarda). Em Buenos Aires, desenvolveu o que chamava de criollismo. Gostava do tango original, prostibulário, e chegou a menosprezar o sentimental Carlos Gardel (1890-1935), mas voltaria atrás. "Tenho notado que, em geral, os canalhas são sentimentais. Está comprovado no tango, música canalha e sentimental ao mesmo tempo."
Borges compôs letras de milongas musicadas por Astor Piazzola. Desprezava sistematicamente o bairro La Boca, onde fica o Caminito, uma das ruas mais conhecidas do mundo, com conventillos coloridos. Era talvez o único sítio popular que evitava, apesar de considerá-lo interessante. Colonizada por imigrantes genovezes, La Boca, às margens do rio Riachuelo, seria, para Borges, "menos argentino" que outros bairros do sul. Para o mexicano Carlos Fuentes, "o primeiro narrador totalmente centrado na cidade é Borges." Quando dirigiu a Biblioteca Nacional (1955-1973), Borges, completamente cego, não podia desfrutar do paraíso de 900 mil livros ao alcance das mãos. Ocupava-se então em brincar com um globo terrestre; fazendo-o girar, punha o dedo num ponto e torcia. "Tomara que seja em Buenos Aires." Diante do eventual insucesso, reagia: "Não se pode ter tudo na vida."
Cláudio Renato
OUÇAM EL TANGO, COM POEMA DE JORGE LUIS BORGES

12 comentários:

  1. Quase tão boa quanto a observação do sentimentalismo dos canalhas, é outra feita por Borges, de que a classe média é a classe superior, porque a aristocracia e os pobres se igualam no gosto pelo nacionalismo e pelos jogos de cavalo.

    ResponderExcluir
  2. Do jornalista Antônio Carlos Athayde, da Academia Brasileira de Letras, recebemos o comentário simpático e generoso que se segue:

    Cláudio Renato, Mestre e amigo certo,
    Que beleza de trabalho!
    PASSAVANTE- se você me permitir, eu
    passaria para um mailing meu, a fim de que
    as pessoas o possam desfrutar.
    Pode ser?
    Imprimi o material com o Zizinho. Minimizei
    o material do Youtube para ver/ouvir daqui a pouco (que
    a barra acadêmica não está mole!)
    Uma coisinha, a propósito do nosso
    holocausto de 16/7/1950: o Bigode era
    “half” esquerdo (hoje, se diz, “lateral”, ou
    “ala” (arrrgh!) esquerdo. )
    Não era “meia esquerda”, ok?
    Salvei o blog entre meus favoritos.
    Trata-se de coisa de Primeiríssimo Mundo!
    Abração

    Antonio Carlos Athayde
    Academia Brasileira de Letras (ABL)
    Assessor de Imprensa
    (21)3974-2552
    (21) 8622-2361
    acathayde@academia.org.br
    www.academia.org.br
    -----Mensagem original-----

    ResponderExcluir
  3. Querido Cláudio Renato,

    No excelente e oportuno texto sobre Borges, faltou explicar o porquê de, até hoje, os restos mortais do autor de "Aleph" estarem em Genebra. Trata-se de um desrespeito, um atentado contra a memória do escritor, que, agora, volta a ser discutido no Parlamento argentino, graças à iniciativa de uma deputada do Partido Justicialista.

    Borges morreu de câncer no fígado em 14 de junho em 1986 na Suiça. O corpo foi sepultado no cemitério de Plainpalais, menos de dois meses após ele ter casado, por procuração, com a ex-alunoa Maria Kodama, na época com 39 anos, no Paraguai.

    Como você bem assinalou no texto, Borges temia sair da Argentina, porque não queria morrer longe de Buenos Aires. Foi Maria Kodama quem insistiu que ele viajasse. Borges se sentia muito fragilizado desde 1975, com a morte da morte da mãe, Leonor, aos 90 anos. Ela o ajudava em tudo, até mesmo ditava-lhe os textos. Na velhice, Borges passou a ficar totalmente dependente da senhora Kodama.
    Como bruxa má, dona Kodama afastou Borges de todos os amigos - ele era obrigado a falar com Bioy de Casares às escondidas. Há muitos anos, o jornalista Juan Gasparini tenta a repatriação dos despojos de Borges, sob a alegação de que Kodama induziu Borges ao casamento, segundo uma figura do Código Penal, de "captação da vontade."
    Casando-se com Borges, Maria Kodama tornou-se herdeira universal do escritor e só ela pode autorizar a repatriação dos restos mortais para a Argentina. A "viúva" insiste em dizer que o sepultamento em Gebnebra teria sido a última vontade de Borges. Uma mentira deslavada. Para se vingar dos amigos de Borges, dos compatriotas de Borges, ela perpetra esse crime contra a história afetiva de uma nação!

    Mais uma vez, amigo, parabéns!

    Graciano Filho

    João Pessoa (PB)

    ResponderExcluir
  4. ... se escritor fosse, escreveria que meu lugar é aqui entre a baía de todos os santos e o vale das sete portas, o barbalho meu caro, meu pedaço de chão....parabéns por mais uma beleza, tenho um livrinho do borges chamado ficções que me tirou o sono umas noites e só não me causou pedras nos rins porque conseguia levá-lo ao banheiro comigo.....

    abraços

    ps.: continuo lavorando no seu presentinho, logo, logo sai....

    ResponderExcluir
  5. "quem não gosta de tango, bom sujeito não é". E já que és um milongueiro tb, segue a sugestão de um outro milongueiro: Alfredo Zitarrosa: http://adentro-folklore.blogspot.com/2008/08/alfredo-zitarrosa-discografia-1965-1989.html

    Abs

    Leo

    ResponderExcluir
  6. O jornalista Márcio Beck, do Jornal do Commercio, outro leitor que enfrentou problemas técnicos para enviar comentário, mandou por e-mail,o seguinte texto:

    "É, meu caro... agora vc pegou pesado no post. Passavante também é cultura latina...

    Até me deparar com o Aleph, me considerava bastante intelectualizado para um adolescente, verdadeiro rato de bibliotecas. Gostava até dos contos mais crípticos de Rubem Fonseca, na época meu ídolo. Ler Borges acabou com a minha fantasia, foi uma lição de humildade.

    Pode ser até que tenha provocado um trauma, já que passei a conhecer seu trabalho mais por meio de terceiros (análises, biografias, resenhas). O texto, é claro, tem o padrão CR 2009 de qualidade, e a história da travessia da Avenida 9 de Julio é hilária!!!

    abração !"

    ResponderExcluir
  7. O talente de sempre!!!
    Claudio Renato e Borges juntos.
    Abraço.
    Edu Geraque

    ResponderExcluir
  8. Que texto!!!!!
    A paixão pelas palavras de um canalha sentimental...
    Parabéns!!!!!!
    abs
    Gustavo

    ResponderExcluir
  9. Cláudio,
    fui longe agora - na Buenos Aires que adoro, em coisas que gostaria de ter lido (ainda dá, ainda dá), na velha nostalgia do não vivido.
    Que beleza, que beleza!
    Grande abraço, meu amigo!

    ResponderExcluir
  10. Cláudio,

    obrigado pela oportunidade da poesia, da transcendência, da epifania, no meio desse turbilhão cotidiano, atarantado com os compromissos familiares e o massacre do jornalismo diário. E parabéns também pelo círculo de "comentaristas do blog", que enriquecem ainda mais El Passavante! O que inclui as menções ao Aleph e a Ficções, livrinhos que não foram citados no seu texto mas marcaram minha caminhada literária e existencial. Abração!

    ResponderExcluir
  11. Mais um bug no computador obrigou a professora Daysi Nogueira a enviar um comentário por e-mail, que aqui postamos:

    Cláudio, aprendi que os gregos consideravam os cegos como aqueles que veem para dentro, que veem a alma. Borges, genial como era, não poderia limitar-se à Buenos Aires aquém do Olimpo, onde transitam pobres mortais. Claro que a ele foi dado do direito de ver a alma e de transcrevê-la para nós. E você, meu brilhante amigo, deu-me a chance de conhecer mais sobre esse mago das entrelinhas, esse escultor de mentalidades. Parabéns pelo texto emocionantemente bem escrito. Obrigada por brindar seus leitores com vinhos de tão raro buquê. Beijo grande.

    ResponderExcluir
  12. Não se pode falar em literatura latino-americana sem citar Borges. E seu amor por Buenos Aires é uma extensão da sua vida, já que teve que se afastar da cidade para viver em outros lugares. Mas, como bom argentino, é mais passional do que nunca na sua relação com a capital portenha. A cegueira progressiva, como acontece sempre, desenvolveu nele outros sentidos e outras formas de "olhar" o mundo e os argentinos. Bela introdução ao personagem.

    ResponderExcluir