domingo, 7 de fevereiro de 2010

Conversa de botequim na Vila de Noel

No Capelinha, sob os auspicios de Noel Rosa: Aluísio Machado, Marcos Uchôa, Martinho da Vila, Sérgio Cabral e Haroldo Costa
Com Martinho da Vila: cabeça feita e corpo fechado

Havia, no começo do século passado, um botequim em Vila Isabel conhecido como Ponto dos Cem Réis, quase na esquina do Boulevard (avenida 28 de setembro) com a rua Souza Franco, onde Noel Rosa compôs muitas de suas canções geniais. Assim se chamava porque, naquele lugar, o bonde fazia a troca de seção e se cobrava nova passagem de quem vinha do centro da cidade e prosseguia a viagem até o Engenho Novo. Quando o carro elétrico ali chegava, em frente ao café mais frequentado por Noel e pelos funcionários da fábrica Confiança de tecidos, o motorneiro avisava aos berros: "Ponto das passagens de cem réis!" Em 1938, um ano após a morte do feiticeiro da Vila, o café foi rebatizado e passou a se chamar Capelinha. Existe até hoje. E foi exatamente ali, na penúltima quarta-feira antes do carnaval, que se testemunhou um encontro histórico.


Martinho da Vila, sempre madrugador, foi um dos primeiros a chegar. Ele presidiria uma mesa-redonda informal sobre os sambas de enredo, entre tulipas de chope, bolinhos de bacalhau, pastéizinhos de carne e empadinhas de camarão. Acompanhado pela mulher, Cléo Ferreira, 33 anos mais jovem, Martinho, de 71, parecia uma criança:


- Olha aí, desbanquei a belíssima Renata Vasconcellos, e fui a capa da revista da Folha de S.Paulo - brincava com um exemplar da publicação, cuja capa trazia uma foto do sambista sem camisa, braços cruzados nos ombros e o título "Corpo fechado". Na mesma edição, a revista publicara, em páginas internas, uma entrevista e um ensaio fotográfico com a jornalista e apresentadora da TV Globo.


No Capelinha,com Martinho da Vila, reuniram-se Zuzuca (Salgueiro), Zé Catimba (Imperatriz Leopoldinense), Aluísio Machado (Império Serrano), Paulinho Mocidade, David Correia (Portela e União da Ilha), Sérgio Cabral, Haroldo Costa e mais um punhado de bambas para relembrarem os sambas de enredo que marcaram época. O documentário foi produzido e gravado pela equipe do Bom Dia Brasil, comandada pelos editores Miguel Athayde, Fátima Baptista, Gustavo Gomes e pelo repórter Marcos Uchoa, uma turma abusada que, há dois anos, surpreendeu o país, ao levar para o alto do Pão de Açúcar uma centena de sambistas que lá fizeram o Carnaval do Céu, considerado pelos jornalistas Sérgio Cabral e Haroldo Costa "um marco na história da televisão brasileira."


Logo no começo do encontro, cada sambista deu a "carteirada", puxando o samba que o consagrara. Martinho da Vila sugeriu, para início de conversa, que se cantasse o "maior de todos os sambas de enredo", Heróis da Liberdade, do Império Serrano (1969). Lembramos, em silêncio, de um texto do professor Luís Antônio Simas, segundo o qual nos próximos mil anos três acontecimentos farão o ano de 1969 ser lembrado: a chegada do homem à Lua, o milésimo gol de Pelé e o samba do Império, assinado por Silas de Oliveira, Mano Décio da Viola e Manoel Ferreira. Falou-se e se cantou muito de Silas, que ninguém se atreve a duvidar ter sido maior compositor do gênero em todos os tempos, autor de outras obras-primas, sempre pela verde e branca de Madureira, como Os Cinco Bailes da História do Rio (1965, com Ivone Lara e Bacalhau) e Aquarela Brasileira (1964).




Quando Zuzuca puxou a Festa para um Rei Negro - "olelê/olalá/pega no ganzê/pega no ganzá" - o salgueirense Haroldo Costa, sempre elegante, lembrou, que, naquele ano de 1971, o Salgueiro fez um desfile lamentável e aquele samba garantiu a vitória no carnaval. "É uma prova de como os sambas de enredo podem ser fundamentais para as conquistas de uma escola."

O clima de descontração era tamanho que, em determinado momento, se esqueceram das cinco câmeras, monitores, cabos, trilhos e operadores da emissora de TV. O bate-papo girava em torno da importância dos sambas de enredo no sentido de se nacionalizar o carnaval do Rio, quando um pé-inchado que conseguira penetrar no ambiente gritou:

- É isso aí, Sérgio Cabraaaal!!!!!!.


O jornalista não perdeu o prumo, muito menos o bom humor:


- Silêeencio no estúdiooooo!!!!!


A cantoria varou noite adentro até que uma multidão que se concentrava em frente ao Capelinha começou a gritar: "Martinho! Martinho! Martinho!"


Era a Vila Isabel que já se perfilava para o ensaio na 28 de Setembro. Martinho e os demais sambistas deixaram o Capelinha, atravessaram a avenida e, ovacionados pelo o povo, subiram na caminhonete do Feijão para se juntaram ao Tinga, intérprete oficial da escola. Do alto, puderam ver as bandeiras azuis e brancas desfraldadas nas sacadas dos apartamentos e nas calçadas musicais. A bateria do mestre Átila dava o sinal. E todos cantaram à exaustão o samba Presença de Noel, a obra-prima que Martinho da Vila fez em homenagem ao centenário do feiticeiro.

Calor infernal, alegria avassaladora. Os rostos felizes encharcavam-se de suor e lágrimas.


Na porta de casa, na Praça Barão de Drumond (Praça Sete, para os íntimos), ainda ouvimos um casal com a camisa do Bloco Quizomba, quase sem voz, a cantar o samba de Martinho. E a moça se aproximou para perguntar:


- Quando vai ao ar?


- Sexta-feira, antes do carnaval, às 7h15.


- Que bom! E vamos nos encontrar aqui, na Quarta-Feira de Cinzas, para a festa da vitória!


Que Oxalá os ouça e eleve ainda mais a autoestima do povo de Noel!


Cláudio Renato

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Quem não rezou a novena de dona Canô?

Dona Canô, entre Caetano e Maria Bethânia
Dona Canô, aniversário de 102 anos em Santo Amaro

"Lembro com muito gosto o modo como ela se referia a ele. Pelo menos ela o fez uma vez e isso ficou marcado muito fundo, dizendo: 'Caetano, venha ver o preto que você gosta'. Isso de dizer o preto, sorrindo ternamente como ela o fazia, o fez, tinha, teve, tem, um sabor esquisito, que intensificava o encanto da arte e da personalidade do moço no vídeo. Era como isso se somasse àquilo que eu via e ouvia, uma outra graça, ou como se a confirmação da realidade daquela pessoa, dando-se assim na forma de uma bênção, adensasse sua beleza. Eu sentia a alegria por Gil existir, por ele ser preto, por ele ser ele, e por minha mãe saudar tudo isso de forma tão direta e tão transcendente. Era evidentemente um grande acontecimento a aparição dessa pessoa, e minha mãe festejava comigo a descoberta."


Assim, Caetano Velloso brinda, no livro de memórias Verdades Tropicais, publicado em 1997, a sabedoria secular da mãe, que o acalentou ao som do rádio e o aproximou, ainda mais, de Gilberto Gil. "O Caetano era terrível, aprendia tudo, imitava e cantava igualzinho ao Francisco Alves, ao Vicente Celestino, ao Nélson Gonçalves, uma coisa impressionante", diz dona Canô, para quem Gil "é muito íntimo, um filho, um irmão que inspirou Caetano demais." Se Gilberto Gil tem como principal influência familiar o pai, o médico José Gil Moreira, que se intitulava o autêntico tropicalista, porque lidava com doenças tropicais, é possível dizer que Caetano Velloso herdou da mãe o influxo telúrico, presente nas mais belas canções de antes, durante e depois do movimento tropicalista.

É o tirocínio político de dona Canô que impressiona os visitantes de Santo Amaro, porque, centenária, ela luta pelas causas sociais no lugar onde vive. Santo Amaro conta com 51 escolas - uma para excepcionais - e uma faculdade de letras vernáculas da Universidade de Feura de Santana. A cidade a homenageou com um teatro - o Dona Canô. E ela, pessoalmente, se empenhou em instalar no lugar uma biblioteca ambulante.

Aos visitantes, Canô reclama das mudanças na cidade e do desemprego. "As usinas de açúcar e a cooperativa de álcool foram fechadas pelo Instituto do Açúcar e do Álcool, causando muito prejuízo", lamenta. "Também a fábrica Tarzan, de vergalhões de ferro, foi fechada e o povo não tem mais onde trabalhar. Só restou uma fábrica de papel toalha, a Bacraft."

Uma das mais longas e intensas lutas de dona Canô é pela despoluição do rio Subaé, que depende da conclusão de obras de saneamento, motivo pelo qual a cidade está ainda esburacada. A companhia de chumbo que poluía o rio foi fechada há anos, mas deixou rastro letal. "O Subaé ainda está poluído porque o chumbo entranha nas pedras."

No complexo hidrográfico de Santo Amaro, o Subaé e o Sergimirim são os rios principais. Encravada no fundo da Baía de Todos os Santos, Santo Amaro, no vale do Subaé, tem como ponto culminante o Alto do Camelo (254 metros de altitude), belíssimas cachoeiras, como as de Vitória, Urubu, Zé Regadas e Nanã, e as praias de Itapema e Baía Pesca.

Dona Canô não esconde o orgulho pela Igreja Matriz de Nossa Senhora da Purificação, a cerca de cem metros de casa. Na fachada da igreja, que completa 310 anos em 18 de outubro, há uma placa de agradecimento a ela pelas reformas. "Minha igreja é muito bonita e diferente, porque, ao contrário das outras, muito escuras, a minha é alegre e clara." A igreja de Nossa Senhora dos Humildes, fundada pelo padre Ignácio Teixeira dos Santos em 1793, às margens do Subaé, abriga o museu dos humildes, de arte sacra. É recomendada por dona Canô. "Lá, que era um convento, existe uma imagem de Nossa Senhora, a Divina Pastora, tão diminuta, com anjinhos, patinhos...um trabalho minucioso feito pelas freiras."

De braços com dona Canô, avança-se pelos tortuosos caminhos barrocos de Santo Amaro: a cadeia e o Paço Municipal (1727), a Santa Casa de Misericórdia (1778), as ruínas da Igreja do Rosário (do começo do século XVI), a Igreja do Nosso Senhor do Santo Amaro (1667), a Igreja Nossa Senhora do Rosário (1784), o Solar Paraíso e o Palácio do Lacerda (do século XVIII), a Igreja do Amparo (1818), a de Nosso Senhor do Bonfim (1870), o chafariz da praça (1872), além de outras construções preservadas dos séculos XVIII e XIX, como o Solar Araújo Pinho.

Sob a sombrinha de Canô, a conversa, como não poderia deixar de ser, desemboca em música popular. E ela vai logo dizendo que o maior de todos os compositores vivos é Chico Buarque de Hollanda. "Ele e Marieta, quando ainda eram casados, prometeram me visitar em Santo Amaro e vou esperar sempre." Ela entende como é difícil a vida dos artistas. "Caetano, sempre que vem a Salvador, normalmente no verão, separa um dia para almoçar comigo." Ela reclama do excesso de compromissos do filho. "Quando vai para Europa, ele fica 50 dias e acho que tem tempo para descansar, mas, aqui, sequer tem o direito de conversar." Nicinha sempre fica mais tempo quando vai a Santo Amaro. E Rodrigo separou até um quarto na casa para a mãe. "Já disse a eles que minha vida é aqui; não aguento ficar longe uma semana."

Dona Canô canta no coral Miguel Lima, com outras 35 pessoas. "Sempre adorei música, desde menina." Ela reconhece: "não tenho mais a voz da juventude, mas sempre canto em missas solenes, aniversários, ocasiões especiais." Ela é apaixonada pelas canções de Dorival Caymmi. "Conheci bem a Stella, mulher dele, e os filhos, Nana e Danilo, sempre tiveram muita coisa comigo."

Foi no colo de Canô, ouvindo rádio, que os meninos aprenderam músicas antigas. "Sempre tive bom gosto e compro minhas velharias na AKDiscos, em Salvador". Carinhosamente, ela chama de velharia Luiz Gonzaga, Vicente Celestino, Francisco Alves, Nélson Gonçalves, Renato Mussi e Catulo da Paixão Cearense, além dos mais "recentes" Tom Jobim e Vinícius de Moraes. "Acho esse negócio de axé, pagode, tudo um horror", reage. "Nas festas, só falta eu ficar surda com esse barulho. Deus que me perdoe!"

Por mais que tente manter distanciamento em relação aos filhos, dona Canô deixa escapar a ponta de corujice. "Dia desses, fui ao banco e o gerente comentou comigo que Ciúme, do Caetano, é uma música profunda." Ela reconhece, no entanto, que nem tudo do filho é obra-prima. "Tem muita coisa dele que quebra um pouco, não vou negar, mas os discos Prenda Minha e Fina Estampa são lindos." Canô cita a canção Cajá, do LP Muito, como uma das que não gosta. "Tem outra música que outro dia estava ouvindo e não reconheci o Caetano." Judiciosa, afirma. "Meu filho faz muita coisa boa, mas não pode ser perfeito.

Dona Canô diz ter um carinho especial por Milton Nascimento. "Já me visitou aqui, um doce de rapaz, um cantor extraordinário, que tem muita coisa comigo." Ela esteve na Europa três vezes e se encantou com Roma, mas garante que não gosta de sair de Santo Amaro nem para ir às cidades vizinhas. Chegou a morar com Bethânia no Rio por quatro meses. Gosta de Salvador e de São Paulo, onde mora o filho Roberto, o Bob, mas como esquecer a doce Santo Amaro, um elixir da longevidade, onde Canô é nome de teatro, bloco e timinho de futebol? Não há quem lhe ignore o endereço e o licor de jenipapo. Não há quem não ore por ela. E quem ali não rezou a novena de dona Canô?

Cláudio Renato