quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Buarques de Hollanda, apenas uma família brasileira - Capítulo Final

Os Buarques de Hollanda na casa da Rua Buri
Maria Amélia Buarque de Hollanda
Quando João Gilberto gravou o álbum Chega de Saudade, marco inaugural da Bossa Nova, o menino Chico Buarque de Hollanda, então com 15 anos, não deu a mínima. Só queria saber de música clássica. O Brasil, campeão mundial de futebol com Pelé e Garrincha, a gloriosa pátria em chuteiras de Nélson Rodrigues, também parecia não sensibilizar mais o guri, que, subitamente, até parou de brincar com os botões de plástico, as tampinhas de relógio, as fichas de lotação (jogadores) e as caixinhas de fósforos (goleiros). Naquele 1959, enquanto as vedetes Carmem Verônica e Norma Tamar juntavam multidões na areia em frente ao Copacabana Palace, no Rio, para vê-las desfilar de biquini, Chico evitava olhar para meninas e repreendia as irmãs por andarem de short pela casa.

Maria Amélia reparou as atitudes estranhas do filho e decidiu intervir. Ela descobriu que o garoto estava sendo aliciado no tradicional colégio Santa Cruz, de padres canadenses, em São Paulo, por um grupo ultramontano, cujos integrantes se telefonavam para marcar reuniões secretas. Deste núcleo de extrema direita, surgiriam os corifeus da Tradição, Família e Propriedade (TFP), organização que, cinco anos mais tarde, apoiaria a ditadura militar. "Era um professor de História, depois expulso da escola; claro que não foi uma boa experiência", contou-nos o próprio Chico Buarque. "Mamãe tinha primos envolvidos nesse movimento religioso à direita de tudo, que, na França, era representado pelo arcebispo Marcel Lèfreve e originou no Brasil a TFP. Ela adivinhou o perigo naquilo tudo."

Chico Buarque contou como os pais ficaram indignados. "Eles trataram de me exilar num colégio interno em Cataguases, Minas Gerais. Foi uma boa ideia, gostei de lá." Depois do exílio, segundo as irmãs, Chico voltou a ser o "sem-vergonha" de antes. "Voltei a ser o campeão dos castigos", lembra o compositor. Ele e Maria do Carmo, a Pii, quinta filha - que, hoje, aos 63 anos, é fotógrafa - eram os mais bagunceiros dos irmãos. É impressionante a facilidade com que Pii, atualmente, ainda se recorda das escalações (titulares e reservas) dos times do Rio e de São Paulo nas décadas de 50 e 60. Eles chegaram a criar um time de futebol familiar, o CFFC, Carmo e Francisco Futebol Clube, muito antes de Chico Buarque fundar o Polytheama, com sede e "estádio" próprios em Jacarepaguá, zona oeste do Rio, uniforme e até um hino feito especialmente pelo compositor: "Polytheama/Polytheama/O povo clama por você..."

Fundamental para a consecução de Raízes do Brasil, a obra-prima de Sérgio Buarque de Hollanda, a intervenção de Memélia também foi decisiva para que Chico Buarque se tornasse um dos maiores gênios vivos do país. Memélia, na verdade, considerava o músico popular menor e acha mais elegante que o filho se apresente como escritor, mas respeitou e cultivou as amizades e o gosto musical de Sérgio. O historiador chegava a chamar o sambista Ismael Silva de Santo Ismael. Sem a influência dos ultramontanos, Chico aproximou-se para sempre dos artífices de Chega de Saudade, a começar pelo poeta Vinicius de Moraes, um dos mais frequentes amigos de Sérgio. João Gilberto casaria com Miúcha e se tornaria cunhado. Tom Jobim, parceiro em Sabiá e tantas outras canções memoráveis, viria a ser o ídolo, a inspiração maior e um dos melhores amigos.

O futebol e o samba passaram definitivamente a fazer parte do cotidiano de Chico Buarque, tricolor e mangueirense (como a mãe), entusiasta de todos os grandes craques e bambas, inventor de um jogo por ele batizado de Ludopédio e de um samba-enredo intitulado Vai Passar. Era Memélia quem, aficionada pelo Fluminense desde a época do legendário goal keeper Marcos Carneiro de Mendonça (1914-1922), apontava orgulhosa para o estádio do Maracanã, durante as viagens na ponte ferroviária Rio-São Paulo. "Olha lá o maior do mundo." Na estação seguinte, levava os filhos à janela do trem para mostrar o morro e cantar o samba-exaltação. "Mangueira, teu cenário é uma beleza/Que a natureza criou..."

Ironicamente, Chico Buarque se tornaria o principal alvo da censura imposta pelo regime militar e das agressões perpetradas por pessoas ligadas aos ultramontanos, à TFP e ao Comando de Caça aos Comunistas (CCC), que, em 1968, invadiram o Teatro Galpão, em São Paulo, para espancar os atores e destruir o cenário de Roda Viva, peça escrita por ele e dirigida por José Celso Martinez. As canções foram tão perseguidas pela censura, que ele foi obrigado a criar os heterônimos Julinho da Adelaide e Leonel Paiva.

Enquanto todos esses acontecimentos se guardavam para o futuro, Chico contribuía muito para o embranquecimento dos cabelos de Maria Amélia. Adolescente, dava calote em táxis, atravessando, às carreiras, o bar Riviera, na Consolação, na época com saída para a Rua Buri. Maria Amélia ficou furiosa quando o retrato de Francisco, aos 17 anos, foi estampado na primeira página do jornal Última Hora, com tarja no olhos e as iniciais F.B.H. Os pais estavam em Ouro Preto (MG) na época. "Realmente, mamãe não achou nada simpático eu ter sido preso fazendo ligação direta", conta Chico. O rapaz ficou em prisão domiciliar, impedido de sair sozinho à noite, até completar 18 anos.

Maria Amélia influenciava até no sotaque dos filhos. Ela tinha birras com o marido, paulista ferrenho. Resistia a tudo o que fosse de São Paulo. "Mamãe é carioquíssima, e houve certa disputa herdada por nós quatro mais velhos, os do Rio, e os mais novos, Maria do Carmo, Ana Maria e Maria Christina, que nasceram em São Paulo", conta Miúcha. "O Sérgio tinha essa mania de ser paulista, adorava São Paulo", confirma Maria Amélia, que, ultimamente, tem suavizado o tom. "A família da minha mãe era paulista, morei mais de 25 anos em São Paulo e tenho três filhas nascidas lá." A paulista Ana denuncia o patrulhamento. "Se escapasse um r ou um s paulistanos, mamãe caía de pau. Ainda é assim com os netos de São Paulo." No comando da casa, Maria Amélia, que adorava se bronzear na praia, impunha, segundo a filha, a norma de que "chique" era ser carioca, "bonito" era o Rio de Janeiro. "O pior é que era mesmo, porque as coisas boas, como férias, festas e feriados, a gente passava lá", reconhece Baía.

Oito meses depois da morte de Sérgio (ocorrida em 24 de abril de 1982), Maria Amélia se mudou para o Rio. É no terraço do edifício Alcazár, em Copacabana, que a família costuma se reunir para a queima de fogos no fim do ano. Memélia adorava caminhar pelo calçadão da orla. Vez em quando, vai a festivais de cinema e exposições de artes plásticas. Sem canais por assinaturas, assiste aos programas de entrevistas e noticiários na TV aberta. "Cinema é uma grande paixão; vi duas vezes seguidas e recomendo Assédio, de Bertolucci". Memélia é apaixonada também pela Itália, onde morou dois anos quando Sérgio lá lecionou. "Antes de La Dolce Vita explodir no Brasil, minha mãe já era fã de Fellini", confirma Álvaro, o terceiro filho, 67 anos.

Rigorosa na criação dos filhos e netos, Memélia se desmancha com os bisnetos. É um elo de gerações. "Eu nunca vi família andar como nós, em bando. Certo dia, fomos nove com a mamãe assistir ao filme O Jantar, de Ettore Scola", conta Ana. Maria Amélia se desdobra para reunir os sete filhos. Convida todos para passear, almoçar, jantar e visitar. A mesma alegria dos passatempos, Maria Amélia dedicou à reflexão. Sempre foi leitora dos clássicos estrangeiros (Marcel Proust, James Joyce e Leon Tolstói) e nacionais (Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos, Pedro Nava). Gosta muito dos intelectuais Antonio Candido, José Mindlin e Moacyr Werneck de Castro. "Ela e papai adoravam Guerra e Paz, de Tolstói: costumavam reler o romance juntos e comentavam seriíssimos a respeito dos personagens", lembra Ana. Após ser submetida a duas operações de catarata, Maria Amélia passou a usar óculos e bengala, mas nunca deixou de ler.

Os Buarques de Hollanda sabiam quão importante era o ambiente cultural para o futuro. Apesar de católica, Maria Amélia acompanhou o marido quando da visita do filósofo existencialista francês Jean-Paul Sartre e da escritora feminista Simone de Beauvior ao Brasil, na década de 60. Os filósofos, que defendiam o aborto e o divórcio, provocavam a ira dos católicos. Memélia provava pertencer à ala progressista da Igreja. Na despedida do casal, fez questão de levar os filhos ao aeroporto de Congonhas.

Quando na casa da rua Buri havia saraus, com a presença de Vinícius e Caymmi - que caprichava em Acalanto, a canção preferida de Sérgio -, a mãe convocava: "Venham todos", para a alegria das crianças escondidas no vão da escada. Sérgio incluía os filhos nas farras. "Mamãe cuidava de tudo para que fôssemos bem educados e para que papai trabalhasse sossegado", conta Ana. "Professor, ele recebia pouco; a universidade atrasava; às vezes, não dava para comer carne. Mamãe providenciava arroz, feijão, chuchu."

Enquanto Maria Amélia administrava a despesa e a educação da família, Sérgio ignorava até o período escolar das crianças. Ele também não dirigia automóvel, mais uma tarefa a cargo da mulher. "Ela é a própria Amélia", afirma o professor e crítico literário Antônio Candido, de 91 anos, que conheceu o casal no fim de 1943 durante um almoço oferecido pelo editor José de Barros Martins no restaurante Caverna de Santo Antônio, em São Paulo. Para Candido, "Maria Amélia é excelente exemplo de coerência e energia serena, tanto nas atitudes excepcionais quanto na vida cotidiana." Ele diz sempre ter admirado "a sabedoria com que ela coordenou os cuidados exigidos por uma família numerosa, a hospitalidade da casa cheia de amigos e a atividade intelectual de colaboradora do Sérgio." Candido conta ainda que "há muitos anos, quando nem todas as estradas eram fáceis, ela dirigiu daqui até Assunção, no Paraguai, um fusca no qual foi com Sérgio fazer pesquisas em arquivos." Para o professor, "não há pessoa mais digna de admiração do que Maria Amélia, em quem coexistem a força das convicções, a coragem alegre, a elegância moral e a solidariedade discreta."

Ainda chegamos a conversar com Mário Lago sobre Memélia antes da morte do ator e compositor (em 30 de maio de 2002, aos 91 anos). "Qual o problema de ser Amélia, dona Maria Amélia? A nossa canção não foi para a senhora, mas para mulheres tão maravilhosas quanto, o que é cada vez mais raro", provocou. As filhas entregam que, além de conservadora no comportamento, Memélia era um tanto machista. Em 1964, Chico participou de um show com as irmãs Ana e Maria do Carmo no colégio paulistano Rio Branco, o Primeira Audição. Um mês depois, a TV Record quis repetir a apresentação. "Mamãe teve um ataque", lembra Ana. "Por ela, o Chico podia cantar; nós, não." Como a emissora exigia a presença das meninas, Chico teve de convencer a mãe. A partir daí, elas foram proibidas até de ver o programa da TV em casa. Miúcha brigou com a mãe ao saber que Chico, sete anos mais moço, tinha a chave de casa e ela, não. Os namoros eram vigiados e a orientação sexual não entrava na conversa. "As meninas tinham que andar juntas e o ideal da mamãe é que todas casassem virgem", revela Ana.

No começo do casamento de Chico com Marieta Severo, a sogra via a nora com certa desconfiança. João Gilberto, no primeiro momento, não foi aceito. Depois, conquistou Memélia. Era casado quando começou o relacionamento com Miúcha. A mãe, que soube do romance pelo jornal, enviou um telegrama para a Europa, exigindo o desmentido de João. Com ela, a porca torcia o rabo. Já com o pai, valia quase tudo. Moderadamente, os meninos podiam fumar maconha na frente de Sérgio, que, de farra, até dava "umas puxadas", embora gostasse mesmo de uísque. Dificilmente ele se aborrecia com as traquinagens dos filhos.

Quando finalizávamos o primeiro artigo sobre Maria Amélia Buarque de Hollanda, em outubro de 2000, a assistente social Ruth Buarque, então com 26 anos e colaboradora do Comunidade Solidária, telefonou para a redação da Gazeta Mercantil, em São Paulo. "Você está fazendo uma reportagem sobre a minha avó, tenho adoração por ela e queria dar um depoimento." Ruth, filha de Ana de Hollanda, contara que fizera com Memélia a viagem mais emocionante da vida. "Fomos a Paris, eu, minha mãe, o Chico, a Silvia, a Pii e a Ana, filha da Cristina. Vovó nos mostrou cada detalhe de cada museu, as esculturas de Rodin, O Beijo e a Porta do Inferno". Ruth disse que, paulista, não conseguiria falar chiado para agradar a avó. "O problema é que eu falo entendeeendo, apartameeento, meu..." Na defesa de tese na PUC, a avó ligou para Ruth desejando boa sorte e se desculpando porque não poderia ir a São Paulo. "Quando cheguei na faculdade, vi a avó e vivi a maior emoção". Mais tarde, Ruth enviou um e-mail à redação. "Ih, esqueci de dizer que a Memélia faz a melhor mousse de chocolate do mundo!"


Cláudio Renato, em texto baseado em apurações jornalísticas para as reportagens "A construção do clã" (no Caderno Fim de Semana, Gazeta Mercantil, em 2000), "Dossiê Sérgio Buarque de Hollanda" (na Revista Bravo, em 2002) e "Os 60 anos de Chico Buarque" (para os telejornais da TV Globo, em 2004).

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Buarques de Hollanda, os meninos da Rua Buri - Segundo Capítulo

A família Buarque de Hollanda, na Rua Buri, no aniversário de 72 anos de Sérgio Buarque
Maria Amélia, filhas e netas

O historiador Sérgio Buarque de Hollanda odiava ser interrompido enquanto lia os jornais. E foi em um desses momentos de concentração que, certa vez, um ladrão resolveu invadir a casa da família na Rua Buri 35, no Pacaembu, São Paulo. Ao ouvir o barulho importuno, Sérgio, sem tirar os olhos das notícias, vociferou improprérios. O ladrão, assustado, entrou no quarto da babá Benedita. Só deu para afanar um aparelho de televisão. Passou por um dos meninos, que o cumprimentou, pensando ser o técnico. Eis que no portão surgiu a super Maria Amélia, que, com um saco de compras, gritou, pôs o homem para correr e salvou a televisão. Ainda absorto nas leituras, Sérgio resmungou, xingou e ficou muito tempo sem compreender o que ocorrera. Quem conta o episódio, às gargalhadas, é a primogênita dos Buarques de Hollanda, Heloísa Helena, a Miúcha, 72 anos.

"Papai trabalhava com a porta aberta e enlouquecia quando a casa era invadida pela molecada que queria jogar pingue-pongue e pebolim (totó)", conta a mãe de Bebel Gilberto. O casarão da Rua Buri era uma zona franca. Houve ali festas que reuniram 500 pessoas e até comércio ambulante na porta. Vinícius de Moraes participava de todos os rega-bofes.

Mulher altiva, que recusa ajuda até para carregar pacotes de compra em supermercados, a centenária Maria Amélia jamais abandanou a fé religiosa, nem mesmo pelo marido, irreverente e ateu. Miúcha, aliás, adora falar sobre a união aparentemente improvável de Memélia e Papioto. "Papai era um intelectual boêmio; e mamãe, católica, de uma família mineira tradicional de Ubá." Eles se conheceram no carnaval de 1934, embalados pelos sambas e marchinhas de Noel Rosa e Braguinha, em frente à sede do Jockey Club do Rio. Foram apresentados por Afonso Arinos de Mello Franco, primo-irmão de Maria Amélia e amigo de Sérgio. Para Miúcha, "não fosse a admiração e a organização de minha mãe, papai não teria escrito Raízes do Brasil." A própria Memélia confirma que, "para bancar a noiva boazinha, datilografava o que Sérgio escrevia à mão."

A casa de 600 metros quadrados na Rua Buri, construída em 1929, foi a primeira que a família conseguiu comprar (a prestações). Sérgio e Maria Amélia recebiam nela os amigos Vinícius de Moraes, Antônio Candido, Caio Prado Jr, Manuel Bandeira, Prudente de Moraes Neto, Carybé, Jorge Amado, Paulo Vanzolini, Florestan Fernandes, Clóvis Graciano, Dorival Caymmi, Fernando Sabino e tantos outros que aportavam em São Paulo. Miúcha conta que Sérgio cantava samba em latim e tango em alemão, tocava berrante e sanfona, vestia-se de Nero em bailes a fantasia e, numa ocasião, andou com uma galinha verde sob o braço para sacanear os integralistas. Ana de Hollanda, a Baía, de 61 anos, sexta filha, pede, entretanto, cuidado com a imaginação fértil da irmã mais velha. "Papai detestava pegar em bichos."

Sérgio conheceu no Café Nice, no Rio, Pixinguinha, Donga, Aracy de Almeida e Ismael Silva. "No tempo em que João Gilberto era casado com Miúcha, fiz visitas cordiais à família, em São Paulo, e me encantei com a simplicidade, o despojamento e a ausência de vaidade em dona Maria Amélia", contou-nos Dorival Caymmi, em outubro de 2000. Na época da Rua Buri, Memélia já se notabilizava pelos dotes culinários. O doce de coco "amarelo Van Gogh" foi imortalizado por Fernando Sabino na crônica "Um pouco de doçura." Outras especialidades na cozinha eram vatapá e bobó de camarão.

O biólogo e compositor Paulo Vanzolini, 85 anos, lembra dos saraus na casa do Serjão, quando Maria Amélia, ao pé do piano, cantava músicas de Ismael Silva, e participava de todas as conversas sobre o destino do Brasil. "Ela não é uma pessoa de esquerda, apenas uma mulher de bom caráter e uma das pessoas de quem mais gosto na vida."

O casarão dos Buarques de Hollanda em São Paulo foi de festa na era de ouro, mas, também, de resistência, nos anos de chumbo. Nos períodos negros da ditadura, a casa da rua Buri se transformava em "aparelho." Sérgio pedira aposentadoria da universidade, a USP, em solidaridade a Florestan Fernandes e outros professores afastados. O telefone da família foi grampeado. Maria Améia conhecia as senhas. "Fulano no hospital" significava prisão de alguém. Nos confrontos de estudantes com a polícia na rua Maria Antônia, em São Paulo, levava comida para a meninada. E ajudava os proscritos, como o deputado cassado Márcio Moreira Alves, cujo discurso anódino contra os militares fora, em 1968, o pretexto para a decretação do AI-5, que restringiria todas as liberdades constitucionais dos cidadãos brasileiros.

Maria Amélia é uma católica esclarecida, que frequenta a igreja São Paulo Apóstolo, em Copacabana, bairro carioca onde mora. A simpatia contagia a vizinhança. Alfredo Jacinto Mello, o Alfredinho, de 66 anos, proprietário do botequim Bip Bip, é fã de carteirinha. "Memélia é a mãe e a avó que todos gostaríamos de ter; uma ativista da esquerda católica que jamais se entrega à depressão", conta Alfredo, que frequenta a mesma igreja da mãe de Chico. Além do Bip Bip, Maria Amélia, sempre que pode, faz uma propaganda subliminar do Carioca da Gema, uma das principais casas de espetáculo da Lapa, no centro do Rio, administrada por um dos sobrinhos, Carlos Thiago Cesário Alvim.

Filha do desembargador mineiro Francisco de Cesário Alvim e da paulista Maria do Carmo da Costa Carvalho, Maria Amélia nasceu em 25 de janeiro de 1910 - no mesmo ano de Noel Rosa, da passagem do cometa Harley e da Revolta da Chibata, na qual marinheiros se amotinaram contra a semiescravidão imposta pelos oficiais da Armada aos subalternos e quase bombardearam toda a cidade. Ela veio à luz no elegante bairro do Cosme Velho, no Rio. É a mais velha de dez irmãos. O avô paterno, José de Cesário Alvim, foi o primeiro presidente de Minas Gerais e o materno, Álvaro de Carvalho, senador e ministro. Quando Memélia tinha 6 anos, a família mudou-se para Copacabana. A menina estudou no Sacré Couer de Marie. Depois, fez curso de enfermagem. Aprendeu a falar francês, italiano e inglês. Para a educação dos filhos, exigiu colégios excelentes: o Des Oiseaux, o Santa Cruz e o Caetano de Campos.

Socialista de corpo e alma, Maria Amélia procura distribuir o afeto equitativamente por cada filho, neto, bisneto ou amigo. "Sucesso é palavra de consumo externo e o importante é o amor que sentimos por cada um deles, não que saiam ou deixem de sair na imprensa. Até porque o amor de verdade dificilmente é publicado nas páginas dos jornais."

No próximo e último capítulo: a carioquice radical de Memélia, que, praticamente, obrigava os filhos e netos a "falar chiado"; o depoimento de Mário Lago, de Antônio Candido e de todos os filhos; a reação da matriarca ao envolvimento de Chico Buarque com grupos de extrema direita que originariam a TFP e à prisão dele, por furto de carro em São Paulo, antes de se tornar o compositor mais competente e querido do Brasil.

Cláudio Renato, em texto baseado em apurações jornalísticas para as reportagens "A construção do clã" (no Caderno Fim de Semana, Gazeta Mercantil, em 2000), "Dossiê Sérgio Buarque de Hollanda" (na Revista Bravo, em 2002) e "Os 60 anos de Chico Buarque" (para os telejornais da TV Globo, em 2004).



sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Os Buarques de Hollanda: cem anos de construção - Primeiro Capítulo

Os Buarques de Hollanda, no casarão da Rua Buri, em São Paulo.
Sérgio, ao berrante: o primeiro Buarque de Hollanda

O segredo está guardado, delicadamente, no sétimo andar do Edifício Alcazar, construído na década de 1930, na pequenina rua Almirante Gonçalves 4, em Copacabana, ao lado do botequim Bip Bip. Maria Amélia Cesário Alvim Buarque de Hollanda completará 100 anos em 25 de janeiro de 2010. Ela garantiu, com temperamento estoico e simplicidade franciscana, a união e a prosperidade intelectual da família Buarque de Hollanda, que, aliás, nem Buarque de Hollanda seria, se não fosse por um capricho do sogro, Cristóvão, que decidiu encurtar e modificar o sobrenome Paes Barreto Hollanda Cavalcante Buarque de Gusmão. O pernambucano Cristóvão Buarque de Hollanda é pai do paulista Sérgio Buarque de Hollanda e avô do carioca Chico Buarque de Hollanda. Na família, o único sobrenome registrado com apenas uma letra l é o da irmã caçula de Chico, Maria Christina, por um equívoco cartorário.



Austera e sensível, Maria Amélia trabalhou à moda antiga para perpetuar a família. Ajudou nas pesquisas e datilografou os originais do clássico Raízes do Brasil (1936). Viajava de trem com os filhos, na ponte ferroviária Rio-São Paulo, ensinava-lhes a cantar sambas, frequentava com eles o Maracanã e até participava de coros em gravações. Para quem não sabe, a voz de Maria Amélia está ao fundo de O Meu Guri, no registro de Cristina Buarque, anterior ao disco Almanaque, de Chico Buarque (1981). Raras vezes precisou pôr os pés fora de casa para receber o carinho incondicional dos sete filhos, 14 netos, 13 bisnetos, intelectuais, compositores, poetas e políticos. Em comum com a musa do saudoso amigo Mario Lago, a Amélia em questão desdenha luxo e riqueza. É um ser alegremente monástico em cujo templo se aceitam, eventualmente, uma cachacinha, um chope, e manifestações entusiasmadas a favor da Mangueira e do Fluminense.


É aconselhável, no entanto, que não se chame a viúva do historiador e crítico literário Sérgio Buarque de Hollanda (1902-1982) de dona Amélia. É gafe imperdoável. O telefone emudece, a conversa murcha, ela fica uma fera. Não se sabe bem a razão. Pelo o que diz a todos, é a sonoridade do nome que a incomoda. Ela jura que tal ojeriza nada tem a ver com Ai, que saudades da Amélia, a canção composta em 1941 por Mário Lago e Ataulfo Alves para Amélia dos Santos Ferreira, morta pela pneumonia, aos 91 anos, em 27 de julho de 2001. Amélia, a musa do clássico, fora empregada da cantora Aracy de Almeida (1914-1988).


Quando faz reservas em restaurantes, a mãe de Chico Buarque é lacônica. Ela pede "uma mesa para a dona Maria" ou, no máximo, "para dona Maria Buarque." Gosta mesmo é do apelido Memélia, inventado pela neta Bebel Gilberto, filha da primogênita Heloísa Maria, a Miúcha, com o cantor e compositor João Gilberto.


Bebel, nascida em Nova York, há 43 anos, viveu pedaço da infância - dos 5 aos 8 anos - com os avós na rua Buri 35, no Pacaembu, em São Paulo, no casarão em frente ao qual está hoje a praça Raízes do Brasil. Na época, os pais de Bebel viajavam pelos Estados Unidos e o México. Jamais os netos trataram Maria Amélia e Sérgio como "vovó" e "vovô." Foi Bebel, xodó da casa, quem também criou o apelido familiar de Sérgio: Papioto, corruptela de "papai outro", como ele preferia ser chamado por todos os netos.


Às vésperas do centenário de Sérgio Buarque de Hollanda, em 2002, telefonamos para Chico Buarque. Queríamos falar sobre a mãe dele, a cara-metade do autor de Visões do Paraíso. "Mamãe sabe? Você contou pra ela? Ih, ela não vai gostar nem um pouco dessa história," advertiu. Era bem possível. Dona Maria Amélia, metro e meio de altura, não tem a menor vaidade, nunca pintou o cabelo e só faz concessão a um batonzinho. Hesitante, Maria Amélia concordou em falar conosco, depois de muita insistência de uma das filhas, Ana de Hollanda, hoje vice-presidente do Museu da Imagem e do Som (MIS). "Acho meio ridículo uma mulher da minha idade ficar se exibindo", dizia, sem se deixar fotografar. "Milhões de mulheres anônimas, domésticas, escravas e faveladas contribuíram para construir o Brasil. Sou de uma geração em que as mulheres trabalhavam silenciosamente, mais recolhidas."


Aos 65 anos, Chico Buarque é o quarto filho da família. "Minha mãe sempre foi preocupada com o lado prático da casa, a disciplina, a educação dos filhos e netos; pelo meu pai, relaxadão, não rolava nada." O maior compositor do Brasil garantia que, por Maria Amélia, poderia abandonar a música popular para ser arquiteto imediatamente. "Minha mãe nunca gostou dessa história de palco, de artista.", contou. "Apesar de adorar música e shows como os de Milton Nascimento e Ney Matogrosso, ela queria outra vida para a gente", contou, à época (2002), a filha caçula e também cantora Christina, hoje com 59 anos, salva certa vez por Maria Amélia de ser esmagada por Vinícius de Moraes, que, mais pra lá do que pra cá, quase sentou sobre o bebê no sofá da casa do Pacaembu. A lenda se encarregou de divulgar Chico como o protagonista da história.


Chico Buarque abandonou a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP no terceiro ano, em 1965. "Mamãe foi à faculdade trancar a matrícula e está com a chave até hoje", brincava. Naquele ano, Chico lançaria o compacto de estreia, com Pedro Pedreiro e Sonho de Carnaval, primeira canção do compositor inscrita em um festival, o da TV Excelsior, defendida e depois gravada por Geraldo Vandré. "Minha mãe pensa que, a qualquer momento, posso voltar para a Arquitetura e, às vezes, imagina que eu seja arquiteto. Quando visita meu apartamento, no Leblon, pergunta se o projeto é meu e eu digo que sim", divertia-se. "Com certeza, exigiria que me tornasse um Niemeyer ou um Frank Ghery, nada menos."


Em meados da década de 90, o casarão dos Buarques de Hollanda, atrás do estádio do Pacaembu - endereço de efervescência cultural do Brasil, de 1956 a 1982 - foi posto à venda pelo valor de US$ 400 mil. Fernando Moraes, secretário de cultura no governo Quércia (1987-1990), tentara transformar a casa em centro cultural, o que não aconteceu. A família vendeu a biblioteca de Sérgio (cerca de 10 mil livros) para a Unicamp. Os documentos do historiador foram doados para a Universidade de Campinas. "Gostaríamos que a casa virasse um centro dirigido a professores e alunos de História do Brasil", sugeria Chico. "Seria muito mais interessante manter ali uma instituição cultural." O compositor temia "a demolição da casa para se construir no lugar um consultório ou coisa do gênero." Antes de se tornar presidente da República, Luiz Ignácio Lula da Silva, amigo de Maria Amélia e de Sérgio Buarque, nos garantiu que conversaria com a então prefeita Marta Suplicy a respeito. "Quantos Sérgios Buarques surgiram neste século?", perguntava Lula.

O casarão da Rua Buri, onde o cineasta e acadêmico Nélson Pereira dos Santos reuniu toda a família para filmar Raízes do Brasil, em 6 de abril de 2002, foi tombado, sobrevive com as mesmas características, mas é alvo de uma disputa judicial, que começou quando Emérita Aparecida, ex-babá dos filhos de Sérgio Buarque de Hollanda Filho, o Sergito, alegou que tinha direitos e não deixaria a casa. A prefeitura de São Paulo desapropriou o casarão e, no começo de 2007, depositou R$ 470 mil em juízo, em nome da família Buarque de Hollanda, que jamais deixou de pagar IPTU. Na época da decisão de adquirir o terreno, a prefeita ainda era Marta Suplicy e o secretário de Cultura, Marco Aurélio Garcia, atual assessor da Presidência da República para assuntos internacionais. A ideia é construir ali a Discoteca Sérgio Buarque de Hollanda e para lá transferir o acervo da Discoteca Pública Oneyda Alvarenga, idealizada pelo escritor modernista Mário de Andrade (1893-1945).

O Partido dos Trabalhadores é a paixão política de Maria Amélia. Quando vem ao Rio, o presidente Lula arruma um intervalo na agenda para visitar a velha amiga no Edifício Alcazar, embora Ana de Hollanda garanta que isso só ocorreu duas vezes em 27 anos de amizade. Sérgio Buarque de Hollanda assinou a ficha número 2 do PT em 1980. A número 1 é do crítico de arte pernambucano Mário Pedrosa (1900-1981). "Minha mãe sempre acompanhou o velho, mas não é muito entusiasmada com o PT do Rio", dizia Chico Buarque. "Meu marido atendeu a um convite do Mário Pedrosa e foi ao Colégio Sion para fundar o PT", lembra Maria Amélia. Para eleições proporcionais, sempre votou em amigos como Chico Alencar ou Elomar Coelho. Quando o partido do coração fazia algo que não concordava, como, por exemplo, rejeitar a candidatura de Vladimir Palmeira, ela votava em Leonel Brizola. Quando a esquerda não tem chances, nem sai de casa em dia de eleição.

Maria Amélia foi a primeira pessoa a contribuir com a campanha presidencial de Lula em 1989, com um cheque da pensão de viúva a que tem direito. Quem nos contou a história, em 2002, foi o próprio Lula. Ele disse que, no aniversário de 90 anos de Maria Amélia, tentou, com o escritor Frei Betto e o crítico literário Antônio Candido, fazer-lhe uma surpresa. Ela preferiu jantar com os filhos no Jardim Botânico, no Rio. "Um metalúrgico de São Bernardo filiar-se ao PT é quase obrigação, mas uma pessoa como dona Maria Amélia só faz isso por solidariedade.", dizia Lula. O ex-petista Chico Alencar, de 60 anos, amigo de Maria Amélia e atualmente deputado federal pelo PSOL, testemunha tamanha boa vontade. "Memélia, ativíssima, comparecia à sala alugada pelo PT no Rio para conversar com eleitores e envelopar cartas."

No próximo capítulo: o começo do namoro de Maria Amélia com Sérgio Buarque de Hollanda, no carnaval de 1934, ao som de Noel Rosa e Braguinha, e os depoimentos da primogênita Miúcha e de amigos, como Dorival Caymmi e Paulo Vanzollini.

Cláudio Renato, em texto baseado em apurações jornalísticas para as reportagens "A construção do clã" (no Caderno Fim de Semana, Gazeta Mercantil, em 2000), "Dossiê Sérgio Buarque de Hollanda" (na Revista Bravo, em 2002) e "Os 60 anos de Chico Buarque" (para os telejornais da TV Globo, em 2004).

Vídeo em que Maria Amélia Buarque de Hollanda fala ao cineasta Nélson Pereira dos Santos de "Raízes do Brasil" e da atuação dela como datilógrafa dos originais de um dos maiores clássicos da sociologia no País.


sexta-feira, 6 de novembro de 2009

A misteriosa estrela de Augusto Damineli

Eta Carinae, uma densa névoa de mistérios
Damineli: um capira de rio e um cientista renomado

Como um profeta atormentado, o astrônomo Augusto Damineli Neto refugiara-se, na segunda metade dos anos 90, nas Montanhas Rochosas, no Colorado, região central dos Estados Unidos. Angústias e incertezas volviam-lhe o pensamento para as margens do rio Jacutinga, em Ibiporã, norte do Paraná, onde, menino, com os pais e dez irmãos, trabalhara como lavrador e boia-fria. A profecia deveria se cumprir entre dezembro de 1997 e março de 1998 para tornar o tabaréu um dos mais respeitados cientistas do planeta.

Doze telescópios de solo - em diferentes países do Hemisfério Sul - e quatro satélites no espaço apontavam para a estrela Eta Carinae, a mais luminosa da Via Láctea, numa operação que custou, à época, US$ 1 milhão. Os aparelhos estavam assestados contra o mesmo lugar no céu para pôr à prova a teoria de Augusto Damineli. O cientista sustentava que um fenômeno cíclico de baixa excitação ("apagão") em determinados elementos químicos da estrela ocorreria a cada 5,52 anos. Era o argumento de que precisava para consolidar a teoria, a mais aceita após 157 anos de observação e estudos, de que a Eta Carinae, coberta de densa nuvem de poeira estelar, seria na verdade um sistema binário: duas estrelas com somatório de massas 200 vezes maior que a do Sol. "Dinossauros não dançam frevo", simplificava Damineli, para quem uma única estrela de tal dimensão não poderia funcionar como um relógio.

Com os estudos sobre Carinae, Damineli desafiava as teorias dos mais conceituados astrônomos do mundo, entre eles o maior rival, o americano Kris Davidson, principal observador da estrela desde a década de 60. Davidson foi o primeiro a comprovar a hipótese de que Carinae está se despedaçando e morrendo. O problema é que sempre sustentou se tratar de uma estrela isolada (single star). "Ele é o marido anterior da Carinae", brincava Damineli, a quem conhecemos, no ano 2000, no Instituto de Astronomia e Geofísica da USP, em São Paulo, onde atua como livre docente. Hoje, aos 62 anos, o cientista é representante do Brasil na International Astronomic Union (IAU), para as comemorações de 2009, o Ano Internacional da Astronomia.

Naquele fim de outono, no Colorado, Damineli esgrimia contra si dúvidas hamletianas. Tinha convicção de que seus cálculos estavam certos, mas físicos prestigiados faziam pouco. "Sou um cientista renomado ou um caipira de rio?", perguntava-se. Até então, Damineli se identificara com o trotskismo e o antiamericanismo, mas a metáfora que lhe ocorria se relacionava ao mercado financeiro. "Sentia-me como um corretor que aconselhara clientes importantes a um negócio de alto risco, e teria a reputação arruinada se perdessem tudo."

A agonia de Damineli só acabou em 12 de dezembro de 1997, quando Carinae começou a sofrer o "apagão", cujo ápice ocorreria no Réveillon. Foi uma dolorosa experiência em que o brasileiro teve de vencer preconceitos de origem. Em junho de 1992, ele observou, por acaso, que a estrela sofrera um "apagão" em comprimentos de ondas específicos relacionados a elementos químicos só excitados com fontes muito energéticas, como o hélio e o argônio. Não podia ser eclipse, porque outros elementos da estrela ficavam "acesos." "Avisei os meus colegas no exterior para que os satélites fossem apontados, mas ninguém levou a sério." Seis meses depois, alguns se convenceram de que o fenômeno poderia ter ocorrido. "Estudei os relatórios dos cem anos anteriores e concluí, a partir de cinco eventos ocorridos com elementos semelhantes, que o fenômeno se repetiria a cada 2.014 dias, com margem de erro de 2%", contava Damineli. "Claro que em alguns relatos não havia registro, mas o fato de um marinheiro ter deixado de descrever um dia no diário não significa que a jornada não tenha se sucedido". Assim, previu o "apagão" de 1997.

A partir de 1996, um satélite da Nasa, o RX-TE, começou a acompanhar Carinae pelo menos duas vezes por semana. "Esta estrela é única na galáxia, um dinossauro vivo, com 2,5 milhões de anos, que acabou de nascer e está morrendo", explicava. "Todas as irmãs de Carinae morreram há 12, 13 bilhões de anos." O astrônomo intuía que, para dispor de um mecanismo regular, a estrela teria de ser duas, na verdade. A teoria do eclipse envolvendo duas estrelas caía por terra, quando só o hélio "apagava" e o hidrogênio não, por exemplo. "As duas estrelas mais corpulentas da galáxia produziriam ventos que, ao se chocarem, esquentariam o conjunto de gases em temperatura calculada em 80 milhões de graus Kelvin."

Era preciso comprovar esta tese. Damineli e o amigo Peter Conti pediram à Nasa pare medir, em raio X, o plasma (gases ionizados) da estrela. O resultado aproximou-se do esperado. Em fevereiro de 2000, o satélite Chandra remediu a temperatura do plasma: 60 milhões de graus Kelvin. "A partir da teoria física consistente, houve um boom de telescópios apontados para a estrela." No espaço, além do RX-TE, os satélites Rosat, Hubble e Beppo foram mobilizados.
Embora invisível e estudada indiretamente, através da nuvem de poeira que a circunda, Carinae é reconhecida como a mais luminosa estrela da galáxia. Luminosidade, segundo a astronomia, pouco tem a ver com o brilho. É a potência intrínseca de luz de um corpo celeste. Já o brilho se refere à aparência e tem relação direta com a distância entre o observador e o observado. Daminelli exemplificava. "Se a Carinae for aproximada à mesma distância do Sol para a Terra, terá o brilho equivalente a 6 milhões de vezes o do astro rei."

Apesar de sustentar que Carinae são duas estrelas, Damineli concorda em tratá-la no singular. "A estrela maior comanda o movimento do sistema." Ele começou a se interessar por Carinae em 1989, após o curso de pós-doutorado no Instituto de Astrofísica Espacial de Roma, ao testar a técnica de observação astronômica com infravermelho na faixa de 1 mícron, que penetraria na poeira. Queria induzir a estrela a um "strip-tease."

Carinae já expeliu metade da matéria original. Poderá explodir em 10 mil anos. Ou, quem sabe, morrer à míngua. "Em caso de explosão, o Hemisfério Sul queimaria todo por causa da impulsão de raios gama", afirmava Damineli. No princípio denominada Eta Argos, por causa da constelação a que pertence, Carinae foi observada com atenção, pela primeira vez, em 1826, curiosamente em São Paulo, pelo astrônomo inglês Willian J. Burchell. Ele ficou intrigado com a oscilação do brilho daquela estrela e enviou uma carta a respeito ao maior astrônomo da época, o também inglês John Herschell, que montara um poderoso telescópio na África do Sul. Em 1843, a estrela sofreu uma erupção e atingiu tanto brilho que ficou visível à luz do dia. Parecia Sírius, a estrela mais brilhante do céu, a apenas 10 anos-luz da Terra. Carinae fica a 7,5 mil anos-luz, o que tornava misteriosa a intensidade do brilho.

Exatamente 20 anos depois da erupção de Carinae, os Damineli, lavradores italianos de Brescia, chegavam a Santa Catarina. Os imigrantes confrontaram-se com os botocudos. "Foi um massacre: os italianos e alemães passaram fogo nos índios", conta Damineli, o neto. Enquanto os "bugres" tinham o sangue derramado no sul do Brasil, os astrônomos europeus tentavam explicar os sinais de Carinae como explosão de uma supernova, mas, por esta hipótese, ela já teria morrido. "O mistério de Eta Carinae é que, após a detonação de 1843, ela não morreu; ao contrário, continou brilhando, o que motivou artigos nos últimos 150 anos", dizia Damineli. Carinae começou a se esconder sob uma nuvem de poeira cujo material daria para constituir 500 vezes a quantidade de planetas do sistema solar.

O pai de Damineli, o lavrador e carpinteiro Salvatino, adorava caça e migrou para o norte do Paraná, perto da cidade de Ibiporã, hoje com 48 mil habitantes. Da tapera de tábuas, coberta de telhas e folhas de palmito e com chão batido, no sítio à beira de um rio e de uma floresta, os meninos viam muitas estrelas. No casebre dos Damineli, nem banheiro havia. Os caminhos eram guiados por lamparinas. Lampião de querosene, só aos domingos. Para atravessar as pinguelas, o clarão da lua os orientava. "Quis estudar quando descobri que seria a maneira de me livrar da vida obtusa da enxada", contou Damineli, que, até os 10 anos, desconhecia as letras e os números.

Na ocasião em que o pequeno Damineli se divertia ao ver o pai conversando com plantas e animais, o americano Kris Davidson, futuro rival, já se dedicava a Carinae. Ele descartava que ela fosse um pulsar, como se supunha. Ao realizar exames químicos dos gases que a envolviam, descobriu uma grande quantidade de nitrogênio que estava sendo jogada para fora da estrela. O mistério de Carinae, no entando, permanecia. "Para tal potência de luz, era preciso que a estrela tivesse pelo menos 160 vezes a massa do Sol." Até o astrofísico inglês Fred Hoyle - oponente da teoria da explosão originária do universo e quem, ironicamente, a batizou de big bang - estudou Carinae.

Aos 4 anos, Damineli dava comida para as galinhas; aos 5, apascentava os bezerros; aos 6, buscava água e ganhava a primeira enxada. A partir dos 7, tinha altura ideal para colher algodão, arrancar feijão e fazer limpeza sob os pés de café. "Minha mãe embrulhava os bebês num paninho e os deixava no mato, enquanto capinava pés de milho." Na época da colheita do café, os seis meninos e cinco meninas tornavam-se boias-frias em sítios vizinhos ou distantes, aonde iam de caminhão. "Comecei a frequentar uma escola estadual a quatro quilômetros de subida, que a gente vencia de pés descalços; só na cidade calçávamos as alparcatas, mas lá não aprendi nada." Nos primeiros anos, Damineli queria ser caminhoneiro e ficar perto da cidade, onde havia escola, rádio, banheiro, luz elétrica e geladeira. "A gente falava caipira, 'nós vai' e 'nós fumo'; o falar português correto só na escola.", conta. "Em casa, se alguém conjugasse o verbo corretamente, todo mundo explodia de rir."

Lá em cima, a misteriosa Carinae esperava o menino que se especializaria no estudo de estrelas de grandes massas. Em Ibiporã, Damineli conseguiu matricular-se no colégio Maria Imaculada. Para pagar o material escolar, levava leite, melancia e peixe para as freiras. "Tenho o maior respeito pelo trabalho no campo e acho que os sem-terra estão certos quando exigem destino social para terras improdutivas.", dizia. "Mas a agricultura no mundo já produz mais de 4 quilos de alimentos diários por habitante; se a riqueza for bem distribuída, nos sobra tempo para aprender." Com o pensamento precocemente iluminista, a vida no campo ainda era mais dura para Damineli. Os irmãos o acusavam de frouxo. "Lá, eu não era ninguém."

Quem descobriu pendores intelectuais em Damineli foi uma certa irmã Benta, que o aconselhou a estudar para ser padre, formação que o menino desconhecia. "Jurava que nasciam homens, mulheres e seres intermediários, de barba e saiote: os padres." Aos 12 anos, foi cursar seminário em Assis, interior de São Paulo. Lá aprendeu humanidades, latim e idiomais neolatinos. "Só muito mais tarde passei a lidar com inglês." Damineli ficou no seminário até os 18 anos. Gostava de arte sacra e canto gregoriano, mas considerava a história bíblica da criação "conto de gibi." Aos 13, conheceu Manoel, seminarista mais velho que lhe contou sobre a teoria da evolução das espécies de Charles Darwin (1809-1882).

A exigência de provas científicas para os fenômenos e a repressão sexual no seminário afastaram Damineli da religião. "Decidi negar Deus depois de três anos de tormenta", conta. "Rompi com a Igreja Católica na época, por causa da exploração da culpa." Quando conversamos, Damineli se dizia indiferente à ideia de Deus. "Sou amigo do padre George Coyne (então diretor do observatório do Vaticano) e falamos muito em ciência, sem estabelecer vínculos com religião."

No seminário, as idéias políticas pareciam não existir e a filosofia moderna estacionara nos conceitos de Immanuel Kant (1724-1804). Damineli decidiu voltar para a casa da mãe, em Ibiporã. Foi caixeiro viajante e professor particular. Em 1968, aos 21 anos, embalado por Alegria, Alegria, de Caetano Veloso, e Disparada, de Geraldo Vandré, foi para São Paulo. Trabalhou como apontador de empreiteira, por um salário mínimo. Completou o colegial na Mooca, num período movimentado por greves. Morou em pensões na capital paulista. Obteve uma bolsa de estudos no cursinho Equipe, onde pagava 10% do salário que recebia.

Damineli trabalhou em almoxarifados e escritórios, em horários que lhe permitissem estudar. Dos primeiros anos em São Paulo, recorda-se dos embates entre estudantes e policiais na rua Maria Antônia. Admirava nos jovens da cidade a coragem. "Pobre do interior tinha mais medo da polícia do que de Deus." Contou-nos como passou a ter ojeriza ao Comando de Caça aos Comunistas (CCC) depois de ouvir a peroração de um de seus integrantes. "Um dia o secretário do curso morreu ao tentar pôr uma bomba no consulado americano; eu não tinha ideia do que acontecia." Consciência política só brotou em Damineli no fim do curso de física na USP, em 1973, com a repercussão do assassinato do presidente do Chile, Salvador Allende, e com as aulas de mestres de outros cursos, como o arquiteto Flávio Império e a professora de Filosofia Marilena Chauí.

Foi ao exterior pela primeira vez ao fim do curso de pós-graduação, quando pegou carona para assistir, em Buenos Aires, aos filmes de Costa-Gavras, proibidos no Brasil. Em 1977, cursou o mestrado e, em 1988, o doutorado na USP, com teses sobre estrelas de grandes massas. O pai Salvatino morreu em 1966, aos 64 anos; a mãe, Ida Viola, em 1990, aos 86, analfabeta.

Como professor da USP, Damineli recebia um terço do salário dos colegas americanos, mas o prestígio internacional só aumentava. Graças à teoria dele, foram organizados cinco times de astrônomos no mundo para observar Carinae. Só na Alemanha, até o começo da década, haviam sido produzidas cinco teses de doutorado inspiradas nos ensinamentos do cientista brasileiro, que, garante, jamais teve expectativas em relação ao Prêmio Nobel. "É necessário que, além da descoberta conceitual, o trabalho estimule o desenvolvimento de novas tecnologias." Eric Cornell, então vizinho de quarto de Damineli, no Colorado, acabara de descobrir o quinto estado da matéria, do qual suspeitaram, 75 anos antes, a dupla Albert Einstein e Satyendranath Bose. Cornell desenvolvera em laboratório a tecnologia de resfriamento de uma substância a 1 milionésimo do grau Kelvin - então, a mais baixa temperatura conhecida no universo.

Na tarde em que conversamos, Damineli apostava todos as fichas do Nobel no trabalho de Cornell. Na mosca. Em 2001, Eric Allin Cornell, de apenas 40 anos, receberia o Prêmio Nobel de Física pela criação experimental do condensado de Bose-Eisntein.

Damineli dizia se espelhar em Galileu Galilei (1564-1642), que enfrentou a intolerância da igreja em nome da razão. "Com Galileu, aprendi a lição de que a timidez é a morte para um cientista. Ele trouxe a astronomia para o cotidiano, fez a gente subir ao céu e o céu descer até nós, utilizando o universo como laboratório e mostrando que as estrelas eram formadas de matéria comum. Ao contrário do contemporâneo Johannes Kepler (1571-1630), que acreditava na matemática cósmica, "Galileu polia as lentes e se empenhava nos experimentos."

Cláudio Renato (texto baseado em entrevista feita em 2000, no Observatório Astrônomico da USP, para reportagem institulada "O tabaréu que ouvia estrelas", vencedora do prêmio de jornalismo da Gazeta Mercantil, em 2001)