terça-feira, 4 de agosto de 2009

O feiticeiro do Boulevard

Só com muita ingenuidade ou caradurismo se pode ignorar o recado explícito deixado por Noel Rosa em "Feitiço da Vila", quando, ao quebrar o paralelismo geográfico e lógico, diz que "São Paulo dá café, Minas dá leite e a Vila Isabel dá samba." Aliás, a canção antológica, parceria com Vadico, de 1934, foi motivo de recentes remoques verborrágicos e politicamente corretos de Caetano Veloso, o mesmo que se diz melhor que Chico Buarque, Milton Nascimento e Gilberto Gil juntos. Para chocar uma plateia que ainda consegue ou finge se surpreender com as polemicazinhas por ele fabricadas, Caetano descarrega, entre tantos vitupérios, o argumento de que "Feitiço da Vila" é "basicamente uma canção racista", "afirmação da classe média letrada contra os sambas de morro, próximos ao candomblé", principalmente ao exaltar "o feitiço sem farofa, sem véu e sem vintém" e contrapor o bacharel ao bamba. Com didática capciosa, o antigo compositor baiano cantarola e debocha da obra de Noel, do começo ao fim, para um público aparentemente idiotizado..."Tendo o nome de princesa... Isabel? Entenderam? É a princesa Isabel...". Aplausos e risos patéticos, automáticos, obedientes.


Será que o senhor do Recôncavo sabe que, além de consagrar Noel, a Vila é um bairro cujos nomes das ruas são dedicados a datas e a personalidades relacionadas à Abolição da Escravatura? Será que pensa que o morro dos Macacos tem esse nome por maquinação racista? Será que sabe que naquele maciço, no princípio Mata Atlântica, viviam milhares de macaquinhos pretos, macacos-prego e grajaús? Caetano buscava pretexto para atacar o pesquisador José Ramos Tinhorão, inimigo dos tropicalistas, crítico da bossa nova, que condenava a apropriação indébita do samba dos favelados pela elite branca do Rio. E aproveitou o ensejo: "Ele passou anos atacando violentamente Antonio Carlos Jobim, Carlinhos Lyra e outros porque estariam se apropriando indevidamente do samba, a zona sul se apropriando do samba do negro favelado... e do Noel Rosa ele não fala nada." Um festival de baboseiras que Caetano desfila como se anunciasse a novidade antropológica do século. "Essa música sempre me deixou uma tremenda pulga atrás da orelha". Não diga!


Muita gente sabe que Noel Rosa, o meio-bacharel em Medicina - ele cursou três anos da faculdade - vivia em escaramuças, dizem que também forjadas, com Wilson Batista, negro malandro frequentador da Lapa que, afora os Arcos, nada tem a ver com a atual Vila Madalena carioca. Para sacanear o bairrismo de Noel, Wilson Batista fez "Conversa Fiada" e o compositor de Vila Isabel respondeu com o extraordinário "Palpite Infeliz." Tudo em 1935. As altercações duraram mais algumas canções e foram encerradas por uma grosseria histórica de Batista, o samba "Frankenstein da Vila" em alusão à feiúra do poeta, que tivera, ao nascer, o queixo afundado a fórceps. Diz a letra :"Boa impressão nunca se tem/ Quando se encontra um certo alguém/Que até parece um Frankenstein/ Mas como diz o rifão: por uma cara feia perde-se um bom coração/Entre os feios és o primeiro da fila/Todos reconhecem lá na Vila." Noel Rosa nunca reclamou, não respondeu, não revidou. Tal fato, em princípio, não merece comentário e não interessa aos própósitos de Caetano Veloso.


Traças que corroem quaisquer opiniões viris, encarnação de hipocrisias e ressentimentos, os politicamente corretos odeiam intimamente Noel Rosa, posto que genial demais, autêntico demais. E branco. Flanava armado pelo Boulevard 28 de Setembro, acompanhado por um séquito de aspirantes à poesia. Chegou a compor uma música inspirada nas pistolas e revólveres Smith & Wesson, porque as armas, argumentava, garantiam a paz ao igualarem fracotes e valentões. "No século do progresso o revólver teve ingresso pra acabar com a valentia." Compôs mais de 250 músicas inesquecíveis. Evitava conceitos para ele vazios, sem sentido, como o Rio de Janeiro ou o carioca. Alguém conhece letra de canção de Noel que fale disso? Do carioca? Do Rio? Noel Rosa, como Tinhorão, concorde-se ou não com as ideias deles, são pedras no sapato das “panelinhas” e das "conspirações" da Cidade Maravilhosa.


Morto pela tuberculose, aos 26 anos, Noel se encantava com a aldeota e com os bairros que frequentava. Cantava a Vila Isabel, um bairro diferente que devolve o carinho sempre, quando e como pode: um pequeno açougue batizado de Feitiço da Vila, um bar Palpite Infeliz, uma agência bancária Noel Rosa, um grupo de sexagenários Seresteiros de Noel e o Berço de Noel, na Praça Barão de Drummond, antiga Praça Sete, onde, há mais de cem anos, nasceu o protótipo do jogo do bicho. Orgulha-se de ser chamada a "terra de Noel". Um bairro cuja importância Noel Rosa comparou, na cara e na coragem, à dos dois estados economicamente predominantes na federação no começo do século, São Paulo e Minas Gerais. Só que a Vila concreta - nunca o Rio metafísico - concorre com produto muito mais rico e refinado que o café e o leite da República Velha.
Também falava, nos sambas, da Penha, do Estácio, do Salgueiro, da Mangueira, de Oswaldo Cruz, da Matriz (Engenho Novo). Deixava claro que o mundo era aquele em que vivia, amava, bebia, compunha e vomitava sangue. São Paulo dá café, Minas dá leite e a Vila Isabel...
Apesar de não falar ou se preocupar com "cariocas espertos, bacanas, sacanas", Noel Rosa, com talento e graça, descrevia em "Conversa de Botequim" (também de 1935) o mais finório e sedutor dos personagens da música popular..."Seu garçom, faça um favor de me trazer depressa/uma boa média que não seja requentada..." Quem seria? Um malandro de Barbacena, não. Muito menos o cafetão da Mooca. Também não seria o teu estimado MV Bill, Caetano. Talvez estaria hoje mais para Martinho da Vila, que não é carioca, mas fluminense da cidade serrana de Duas Barras.


Cláudio Renato

16 comentários:

  1. Mais uma vez Caetano dá uma "cagada". Não bastou gravar o novo DVD de Alexandre Pires (inclusive chamando-o de um das maiores vozes românticas do Brasil). Não bastou levar em seu show no Canecão, o grupo de funk "Faz gostoso". Neste dia, um público maduro que foi assistir "A luz de Tieta", deparou-se com um grupo de dançarinas semi-nuas canatando em português vergonhoso. Esse é o Caetano? Não, esse não é o Caetano de "Terra", de "Alegria, alegria".
    Realmente me perdoem o humor negro, mas talvez esse Caetano seria mais Caetano se morresse naquela época, como um herói, um marginal-herói. Para alguns, a velhice cai muito mal. O que veio depois? Um casamento com uma cafetina pseudo-sapatão e declarações de deixarem até o Pelé com inveja. Atitudes nada condinzentes com um herói que se fez na marginalidade. Hoje prefere adotar o discurso politicamente correto, pertencer ao "status quo", careta, burro e ridículo. Caetano cometeu suicídio.
    E que fique bem claro, que aqui faço meu tributo.

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  2. Muito bom o comentário. Ao expor o comportamento do Caetano, você caracteriza mais uma vez o pensamento da "elite carioca", que teima em diminuir o que é a real cultura brasileira em detrimento de valores europeus ou norte-americanos. Não é surpresa que Caetano Veloso, que sempre comete este tipo de fanfarronice, tenha esta postura. Me surpreende que não haja mais gente condenando as palavras dele. Infelizmente, e tenho pensado muito nisso, caminhamos para um mundo onde valores e pensamentos dissonantes e complementares perdem fôlego. Nesse mundo, apenas algumas poucas "verdades", aquelas que agradam multidões, serão ouvidas.

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  3. O jornalista Dagoberto Souto Maior pede que postemos o seguinte comentário:

    Cláudio, o Noel era gênio, o Wilson Batista era gênio e o Caetano é gênio também, cada um no seu estilo. Mas acho que o Caetano polemiza à toa, sem acrescentar nenhuma informação legal. Não acompanhei esta polêmica em questão, mas sei que ele conhece muito de história da música brasileira. Seria melhor que a gente contasse histórias boas da música, como essas que você conta do Noel, assim a gente descobre a riqueza.

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  4. Cláudio, permita-me:

    grande filósofo da Vila da Penha, Romário certa vez disse que "Pelé, calado, é um poeta". Diante dos absurdos verborrágicos de Caetano (aliás, chato que só ele quando fala), cada vez mais comuns, eu até poderia tomar emprestada a frase do Peixe e adequá-la. Mas não dá para fazê-lo.

    Porque Pelé, "ao menos", foi um gênio absoluto na sua profissão-arte (como Noel). Caetano, nem isso...

    Grande abraço.

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  5. POSTAGEM FEITA A PEDIDO DE MÁRCIO BECK

    Prezado, por motivos técnicos não consegui postar de novo. Segue o comentário:


    São poucos os que tem a coragem de se insurgir contra as asneiras pseudo-intelectuais disseminadas pelo que o sábio Lobão alcunhou de Máfia do Dendê. A 'inteligentzia bahiana' chegou ao cúmulo com essas declarações do sr. Veloso, que apesar desses e outros tropeços graves é tratado com todo carinho pelos Segundo-cadernistas de plantão, como se fosse um oráculo, profeta ou coisa que o valha da 'cultura brasileira'. O ataque gratuito à obra de Noel (não que eu seja particularmente admirador, mas merece todo respeito) não podia passar em brancas nuvens. O Eduardo, no comentário acima, acertou na mosca ao lembrar a frase do Romário, extremamente pertinente. Parafraseando o rei Juan Carlos em suas palavras ao ditadorzinho Hugo Chávez, acrescento ... "Caetano, por qué no te callas?". Mais um graaaaaande texto, Claudio. Abração !

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  6. Caro Cláudio,

    Como conversamos na troca por e-mails, Caetano Veloso mais uma vez foi infeliz. E você tirou da minha boca a expressão de que Caetano tem "a síndrome do Castro Alves do século 21", sem a sicenridade do poeta condoreiro. Explica-se: ele se esforça para ser um baluarte na luta conta o racismo. Lembro que ai no Rio de Janeiro há alguns anos um amigo do filho dele negro foi expulso de um shopping por um segurança também negro e o Caetano foi para os jornais dizer que o filho dele tinha sofrido discriminação. Depois, os jornais publicaram que o filho de Caetano tinha sofrido racismo. Não foi nada disso. E o mais grave é que o menino não era filho dele. E a imprensa engole esse tipo de coisa. Ele sempre foi assim. Uma vez humilhou um porteiro porque acho que ele era racista. Lamentável. Pena que a gente acabe tendo que falar desse moço, em vez de falar do Noel Rosa, que, aqui na Paraíba, é um ídolo...Um abraço

    Graciano Filho

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  7. COMENTÁRIO ENVIADO POR DANIELLA BOTTINO:


    CR, eu vou morrer achando o Caetano um babaca.
    Agora uma pergunta: quem foi que disse que o Caetano pode dar opinião
    de tudo? Quem falou, em qualquer momento de sua vida, que ele pode
    falar de todos os assuntos? Eu, realmente, não sei essas respostas.
    Mas sabe de quem é culpa de todo essa falatório desse mala? Da
    imprensa que dá ouvidos e publica tudo relacionado a esse mala.

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  8. Pois é, infelizmente nem tudo é exatamente como a gente quer.
    Exemplos: Noel não tem "250 canções inesquecíveis", como o Cláudio gostaria - se fizermos uma enquete nacional, em média (com otimismo) cada brasileiro cantaria uma ou duas canções do "feiticeiro do boulevard", e olhe lá! Já de Caetano talvez cantassem umas quatro ou cinco, por motivos diversos.
    Enfim, tem uma máxima de alguma religião ou ciência religiosa que prega: "o mal não merece comentário". Acho que isso vale para o baiano indigesto. Talvez, como disse a Daniella Bottino, ele seja adepto fervoroso do "falem mal mas falem de mim"... daí, diante de todo esse rebuliço em torno dele, aqui neste blog de alto nível técnico, certamente aquele ego gigantesco estaria se sentindo muito bem nutrido, pelo críticos cúmplices...
    Melhor evitar menção, porque ali é caso perdido, que talvez só tenha conserto após algumas reencarnações, "como escrava sexual bem gorda na Etiópia ou limpador de banheiro público em Bombaim", citando o poeta.

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  9. Querido Cláudio,

    Caetano fez de si vítima. Coitadinho. Ele se valeu levianamente de um complexo de inferioridade social e racial imaginário - para não dizer paranóico. Vestiu uma carapuça que já lhe serviu algum dia?

    Caetano ainda se contradiz, porque em uma de suas músicas, "Uns", linda por sinal, a ideia é essa: para o homem não há outros, existem uns. É justamente aí que o autor da referida letra tropeça: não entendeu o outro, interpretou como bem quis e, pior, não respeitou a relação entre um poeta e o lugar de onde pertence.

    Faltou poesia, Caetano...

    Abraço!

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  10. Calma, gente! Tb não vms esquecer o legítimo serviço prestado por Caetano à música brasileira... Não joguemos no lixo "Ouro de tolo" e "Anjo 45", para citar 2 exemplos. Foi só um palpite infeliz... hehe
    Parabéns, Cláudio, pelo blog!

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  11. Graças ao meu Bom Deus, perdi essa "polêmica" do Caetano com o Noel Rosa. Lendo ontem uma entrevista de um especialista em educação americano que lançou um livro mostrando como o ension brasileiros, público e privado, é uma porcaria, lembrei de Caetano. O pesquisador critica o fato de os professores de escolas municipais muito serem trocados no Brasil. E lembrei que no ano retrasado conversei com uma especialista em educaçao que falava que das dificuldades de instrução no interior da Bahia, porque até o cargo de professor de colegiozinho do interior era político - mudou o prefeito, muda o professor, a metodologia e os alunos que se danem. Isso por obra e graça do ACM, herança das práticas do carlismo. O ACM que era "charmoso e bonito", segundo elogio de Caetano que não gostamos de lembrar - como gostamos de esquecer de Foucault elogiando o Aiatolá Khomeini e de Noam Chomsky elogiando Pol Pot: se você quer REALMENTE conhecer um "intelectual militante", preste menos atenção em quem ele critica, porque esse é o ganha pão dele, vive disso. Preste mais atenção em quem ele elogia.

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  12. O Mário Lago definia o Wilson Batista como "uma verdadeira alma do cão misturada a um compositor de gênio". Já o Caetano fez questão de definir o Noel como um racista dissimulado da classe média(se o Cartola escuta isso?). Naquele tempo vadiagem era motivo de orgulho(W. Batista), a mulata era assanhada(A. Alves),a nega tinha cabelo duro(D. Nasser e R. Soares) e ninguém ficava com a pulga atrás da orelha por isso. As bobagens do Caetano merecem resposta porque anacronismo é ao mesmo tempo uma burrice e uma ameaça.
    Viva Caetano! (cantando)

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  13. Grande Anezio!!
    É isso aí. Rapaz, vou te ligar, preciso te ligar.
    Abraço.

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  14. Da comunidade Noel Rosa, no Orkut, chega o seguinte comentáro


    Tem horas que a melhor coisa que um homem faz é calar e essa foi a hora que o Caetano perdeu a chance de ficar calado.
    Bom compositor mas pra falar do Noel precisa nascer de novo

    Pablo

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  15. Não tem nada a ver este comentário do Caetano. Todo mundo sabe que na Vila está cheio de ladrão!

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  16. Claudio, eu concordo com a Dani lá em cima. Não no quesito "babaquice". Não acho Caetano babaca. Agora quem falou " que ele pode dar pitacos em tudo e todos os assuntos?"
    Aliás, ele não é único. O que tem de arrogantes por aí...
    Boa semana para todos deste blog com textos especialíssimos.

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