Ao passar dia desses pelo portal do cemitério do Caju, lembrei de alguém muito querido. José Côrtes dos Santos, o Zé Grande, tornou-se legenda da reportagem policial carioca numa época em que não existiam laptops, celulares, computadores. Era um tempo em que valia furtar o boneco (fotografia) das vítimas e até derramar vinho tinto no presunto - simulação de muito sangue, para alegria dos fotógrafos e desespero dos legistas. O estilo profissional, convenhamos, era mais envolvente e romântico, quando ainda se podia pontuar as notícias com exclamações! Textos sangüíneos, apaixonados, do jeito que o Nélson Rodrigues gostava!
De um orelhão descascado, na Rua Gomes Freire, perto da Secretaria de Segurança Pública, Zé ligava a cobrar para a redação e dava o retorno do dia, no meio da tarde. Contava o enredo, ditava nomes e idades, para o redator "preencher a folha de zinco", a manchete do jornal. Sem exagero, Zé Grande conhecia todas as gerações de policiais e bandidos da cidade. Não tinha texto final, mas foi responsável por muitas das boas histórias exclusivas da crônica criminal do Rio de Janeiro, que lhe renderam galhardões da Polícia Militar, do Corpo de Bombeiros, do Juizado de Menores e até um Prêmio Esso. Sua especialidade, dizia, era investigar, encontrar e devolver crianças desaparecidas.
Desengonçado, simpatissíssimo, realmente querido pelos colegas, dromedários (velhos) e focas (jovens), Zé Grande, dois metros de altura, foi assim alcunhado pelo governador Chagas Freitas. Alimentava um mundo de histórias curiosas, ingênuas e inacreditáveis, como as que passo a relatar:Sete horas da manhã, a escuta da redação dos jornais populares estão em polvorosa, despejando cadáveres, estupros e suspeitos que pululavam na madrugada. Zé Grande chegava devagarinho, bebia café sem açúcar, fumava um cigarro, apanhava as pautas, lia, convocava o lambe-lambe, o piloto e seguia célere para o local do crime.
Naquela tarde, em especial, o novo chefe, Manoel Abrantes, sobrecarregara o Zé de pautas. Zé achava que o chefe não gostava dele e a recíproca não poderia deixar de ser verdadeira.
Ao dar o retorno, quase às três da tarde, quando já devia estar em casa tirando uma merecida soneca, Zé ouviu a ordem do chefe:
- Pega um táxi e voa para a Dias da Cruz, porque acabaram de assaltar um banco...E vê se não exagera na nota!
Contrariado, Zé chamou o lambe-lambe, como tratava carinhosamente o fotógrafo que o acompanhava, e sinalizou para o primeiro táxi.
- Segue para o Méier, Dias da Cruz!
No banco traseiro, Zé Grande pôs-se a desabafar com o companheiro de jornada. Quando nervoso, a voz do repórter tonitroava:
- É uma falta de respeito, a gente nem teve tempo para almoçar! Já fiz um estelionato, um homicídio, um estupro e agora esse cara manda a gente fazer um assalto na Dias da Cruz!
- E tá virando rotina - provocou o fotógrafo
Apavorado, o motorista acompanhava o diálogo pelo retrovisor, já suando em bicas!
- Quarta-feira, foi a mesma coisa. A gente fez aquele assalto à joalheria na Conde Bonfim, complicado, com reféns, e o cara ainda manda a gente fazer uma chacina em Campinho, quatro presuntos de uma vez só! - bradava Zé Grande, voz de trovão - Eu não sou cupincha dele, não sou! - repetia, indignado.
Bagas de suor escorrendo pela testa, o motorista só respirou aliviado quando percebeu que se aproximava de um quartel na Polícia Militar . Ali, não conversou. Cantou pneu e embicou com tudo para cima dos sentinelas, que, por pouco, não abriram fogo.
- Calma, calma! Estou aqui com dois ladrões, estupradores, assassinos!Foram todos rendidos, fichados e guardados na sala do oficial de dia, sob a mira de duas carabinas.
O mal-estar só foi dissipado com a chegada do comandante do batalhão, amigo de Zé Grande desde a época em que servira com o ajudante-de-ordens do Palácio Guanabara.
Ainda estava eu nos cueiros, quando Zé Grande protagonizou outra história memorável na crônica da reportagem policial. Ele costumava vender plantões aos colegas, para complementar o ordenado tísico. Trabalhava de manhã, de tarde, de noite. Dormia muito pouco.
Certa vez, no plantão noturno, Zé recebeu o telefonema do próprio chefe da polícia. Tragédia em Copacabana, na Rua Barata Ribeiro 200, conhecido ponto do submundo. Voou para o local e lá encontrou dois corpos. O policial militar, de plantão, deixou Zé entrar no conjugado onde ocorrera o crime. Cansado, Zé aboletou-se na poltrona, ao lado dos cadáveres, e se entregou aos braços de Morfeu. O sono pesado arrastou-o para o chão.
Quando chegou à cena da tragédia, o perito levou um susto: "Disseram que era duplo homicídio, mas é um triplo!". A notícia correu pelo calçadão de Copacabana, e os jornais trataram de mudar o clichê. "Três mortos em tragédia na Zona Sul".
Na época, os legistas se valiam uma varinha, com a qual cutucavam as perfurações dos cadáveres, para identificar o calibre dos projéteis. Quando espetaram-lhe o suvaco, com o tal artefato, Zé estrebuchou violentamente.
- Ressuscitou!!! - berrou o legista apavorado.
Zé estremunhou, olhou ao redor e só foi perceber a confusão quando comprou um exemplar do concorrente.
Quem quiser conhecer o Zé Grande, sugiro que vá ao Caju, no Dia de Finados. Ele é o locutor oficial do cemitério há 30 anos. Foi por isso que me lembrei dele outro dia, quando passava por ali. Seu ofício consiste em orientar, pelo alto-falante, as famílias que visitam o campo santo. No fim do dia, com aquele vozeirão, entoa a Oração da Saudade.
José Côrtes dos Santos, de 78 anos, aposentou-se, depois de mais de meio século de labuta em redação. Hoje vive saudável, tranqüilo e alegre na aprazível cidade serrana de Miguel Pereira.
De um orelhão descascado, na Rua Gomes Freire, perto da Secretaria de Segurança Pública, Zé ligava a cobrar para a redação e dava o retorno do dia, no meio da tarde. Contava o enredo, ditava nomes e idades, para o redator "preencher a folha de zinco", a manchete do jornal. Sem exagero, Zé Grande conhecia todas as gerações de policiais e bandidos da cidade. Não tinha texto final, mas foi responsável por muitas das boas histórias exclusivas da crônica criminal do Rio de Janeiro, que lhe renderam galhardões da Polícia Militar, do Corpo de Bombeiros, do Juizado de Menores e até um Prêmio Esso. Sua especialidade, dizia, era investigar, encontrar e devolver crianças desaparecidas.
Desengonçado, simpatissíssimo, realmente querido pelos colegas, dromedários (velhos) e focas (jovens), Zé Grande, dois metros de altura, foi assim alcunhado pelo governador Chagas Freitas. Alimentava um mundo de histórias curiosas, ingênuas e inacreditáveis, como as que passo a relatar:Sete horas da manhã, a escuta da redação dos jornais populares estão em polvorosa, despejando cadáveres, estupros e suspeitos que pululavam na madrugada. Zé Grande chegava devagarinho, bebia café sem açúcar, fumava um cigarro, apanhava as pautas, lia, convocava o lambe-lambe, o piloto e seguia célere para o local do crime.
Naquela tarde, em especial, o novo chefe, Manoel Abrantes, sobrecarregara o Zé de pautas. Zé achava que o chefe não gostava dele e a recíproca não poderia deixar de ser verdadeira.
Ao dar o retorno, quase às três da tarde, quando já devia estar em casa tirando uma merecida soneca, Zé ouviu a ordem do chefe:
- Pega um táxi e voa para a Dias da Cruz, porque acabaram de assaltar um banco...E vê se não exagera na nota!
Contrariado, Zé chamou o lambe-lambe, como tratava carinhosamente o fotógrafo que o acompanhava, e sinalizou para o primeiro táxi.
- Segue para o Méier, Dias da Cruz!
No banco traseiro, Zé Grande pôs-se a desabafar com o companheiro de jornada. Quando nervoso, a voz do repórter tonitroava:
- É uma falta de respeito, a gente nem teve tempo para almoçar! Já fiz um estelionato, um homicídio, um estupro e agora esse cara manda a gente fazer um assalto na Dias da Cruz!
- E tá virando rotina - provocou o fotógrafo
Apavorado, o motorista acompanhava o diálogo pelo retrovisor, já suando em bicas!
- Quarta-feira, foi a mesma coisa. A gente fez aquele assalto à joalheria na Conde Bonfim, complicado, com reféns, e o cara ainda manda a gente fazer uma chacina em Campinho, quatro presuntos de uma vez só! - bradava Zé Grande, voz de trovão - Eu não sou cupincha dele, não sou! - repetia, indignado.
Bagas de suor escorrendo pela testa, o motorista só respirou aliviado quando percebeu que se aproximava de um quartel na Polícia Militar . Ali, não conversou. Cantou pneu e embicou com tudo para cima dos sentinelas, que, por pouco, não abriram fogo.
- Calma, calma! Estou aqui com dois ladrões, estupradores, assassinos!Foram todos rendidos, fichados e guardados na sala do oficial de dia, sob a mira de duas carabinas.
O mal-estar só foi dissipado com a chegada do comandante do batalhão, amigo de Zé Grande desde a época em que servira com o ajudante-de-ordens do Palácio Guanabara.
Ainda estava eu nos cueiros, quando Zé Grande protagonizou outra história memorável na crônica da reportagem policial. Ele costumava vender plantões aos colegas, para complementar o ordenado tísico. Trabalhava de manhã, de tarde, de noite. Dormia muito pouco.
Certa vez, no plantão noturno, Zé recebeu o telefonema do próprio chefe da polícia. Tragédia em Copacabana, na Rua Barata Ribeiro 200, conhecido ponto do submundo. Voou para o local e lá encontrou dois corpos. O policial militar, de plantão, deixou Zé entrar no conjugado onde ocorrera o crime. Cansado, Zé aboletou-se na poltrona, ao lado dos cadáveres, e se entregou aos braços de Morfeu. O sono pesado arrastou-o para o chão.
Quando chegou à cena da tragédia, o perito levou um susto: "Disseram que era duplo homicídio, mas é um triplo!". A notícia correu pelo calçadão de Copacabana, e os jornais trataram de mudar o clichê. "Três mortos em tragédia na Zona Sul".
Na época, os legistas se valiam uma varinha, com a qual cutucavam as perfurações dos cadáveres, para identificar o calibre dos projéteis. Quando espetaram-lhe o suvaco, com o tal artefato, Zé estrebuchou violentamente.
- Ressuscitou!!! - berrou o legista apavorado.
Zé estremunhou, olhou ao redor e só foi perceber a confusão quando comprou um exemplar do concorrente.
Quem quiser conhecer o Zé Grande, sugiro que vá ao Caju, no Dia de Finados. Ele é o locutor oficial do cemitério há 30 anos. Foi por isso que me lembrei dele outro dia, quando passava por ali. Seu ofício consiste em orientar, pelo alto-falante, as famílias que visitam o campo santo. No fim do dia, com aquele vozeirão, entoa a Oração da Saudade.
José Côrtes dos Santos, de 78 anos, aposentou-se, depois de mais de meio século de labuta em redação. Hoje vive saudável, tranqüilo e alegre na aprazível cidade serrana de Miguel Pereira.
Claudio Renato
Esse eu já conhecia. Maravilhoso!!
ResponderExcluirGrande Zé Grande! Vai me dizer que não precisa de faculdade???
Obrigado. Flávio Morgado, 20 anos, para quem ainda não sabe, é meu filho e presta uma ajuda inestimável no nascimento deste "Passavante"
ResponderExcluirCláudio Renato: estava faltando você na blogesfera que vale a pena. Bem-vindo, meu amigo! Showzaço de bola! Já está entre os recomendados no meu humilde blog.
ResponderExcluirUm grande abraço!
Maravilhoso texto, ainda que eu já tenha ouvido a primeira história como sendo de um fotógrafo de O POVO - não tem jeito, é como aquela do Adionel, que ninguém sabe ao certo quem perguntou. Maurício Menezes diz que foi ele.
ResponderExcluirO Zé é uma figura extraordinária. Adorado por todos porque trata a todos com uma educação extrema. É um cavalheiro, o Zé, com aquele perfume fortíssimo à base de lavanda. Me lembro que para a gente lá em O DIA/A Notícia, cumprimentar o Zé era arrumar problema com namoradas e esposas, já que o perfume ficava por dois ou três dias na sua mão, mesmo tomando banho.
Me lembro de uma noite de Natal, dia 24 para 25, eu voltando da madrugada lá em Campo Grande, cansado de cobrir violência, de repente eis que entra a voz do Zé Grande no rádio, gutural, sombria e empostada:
- Homicídio....Homicídio....Homicídio em Vila Kosmos...atenção equipe...
É sem dúvida um sujeito que merecia um documentário. Faz parte do Buena Vista Social Club.
Rapaziada, um blog do Cláudio Renato!
ResponderExcluirEste blog do Cláudio Renato tem mil e uma utilidades. Uma das melhores é encontrar todos os companheiros mais bacanas com quem trabalhei em redações. Vide: Eduardo e Gustavo. Será um ponto de encontro nosso, que todo mundo lê, todo mundo fala. Não tem nada melhor.
Cláudio Renato é muito bom nisso de contar história. Essa do Zé Grande é ótima. Quem não conhece uma história dele, digo, deles, do Cláudio e do Zé Grande?
Agora, tem o seguinte: o que é passavante? Desculpem a ignorância, mas é preciso dar uma explicação, Cláudio. Tenho certeza que será algo cultural, interessante, todo mundo - pelo menos os ignorantes como eu - vai aprender o que é, e seu blog também é cultura, você mesmo disse.
Então, por favor, a explicação sobre o que é passavante e por qual motivo você escolheu o nome valem outra nota. Ao trabalho, Claudinho.
De seu aluno
Dagoberto Souto Maior
(e deixe de preguiça e escreva logo um livro!)
Faço coro ao amigo Dagoberto. Qual é o mistério de passavante??
ResponderExcluirBela história do Zé Grande. Pena, não o conheci. Mas conheci um outro "zé grande", rato de câmara dos vereadores, alerj etc. Responde pelo nome de José Pereira, mas é como Pereirinha que ficou conhecido nas redações e gabinetes. Não havia fofoca e café frio que lhe escapassem. Fanho toda-vida, Pereirinha tb colecionou histórias hilárias. Quem tiver notícias, por favor, me diga.
Vida longa ao blog, Cláudio Renato! Parabéns. Mariana
Muito bacanas o texto e blog, Cláudio. Vou ficar freguês. Abração!
ResponderExcluirEssa coisa que os muderninhos chamam de blogosfera carecia mesmo de mais vida inteligente.
ResponderExcluirFelizmente, o Claudio decidiu ser menos egoísta com seu talento para apurar e escrever – menos preguiçoso, também, que o bicho é difícil de se mexer que só. E finalmente compartilha conosco pérolas como essa do Zé Grande. Aguardemos as próximas.
Repito as palavras do Gustavo lá em cima, vale um documentário.
Grande CR: abração e parabéns!
Excelente.relato. Eu o conheci.
ResponderExcluir