"Deus criou os brancos e os negros, mas o diabo se incumbiu de fazer os mestiços". O pensamento do explorador escocês David Livingstone (1813-1873), além de ilustrar a ideologia racialista dominante no Ocidente do século 19, nos autorizaria a concluir que o Todo Poderoso fez do barro os povos nórdicos, anglo-saxões e pretos africanos. O resto, portanto, teria ficado por conta do diabo, para quem sobraram só as massinhas multicoloridas, aquelas com que as crianças brincam na escola. E o belzebu, então, abusou na mistura de cores, tamanhos e densidades díspares. Montou ateliê no Brasil e, nos últimos 500 anos, tem feito a mais extravagante experiência de miscigenação do mundo.
Livingstone é um herói entre os britânicos. Na trilha aberta pelo médico e missionário, que cruzou a África do oeste para o leste, o Reino Unido colonizou o continente. O filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), que não acreditava em raça pura mas na purificação das raças, cita Livingstone em um trecho de "Aurora" (1881) para exaltar os gregos que "nos oferecem o modelo de uma raça e de uma cultura assim depuradas". E o zoroastra conclui: "devemos esperar que a criação de uma raça e de uma cultura européias puras tenham igualmente êxito um dia." Eles, os brancos, que se entendam. E alemão nenhum fica perguntando o que é ser alemão. Mas, e os mestiços? Estamos condenados a ficar aí, procurando a identidade que nos foi sonegada embaixo da saia de nossas mães, avós, bisavós, tataravós?
Nos trópicos, a sociologia do inferno ganhou corpo e ânimo com o pensador pernambucano Gilberto Freyre, que abdicou dos estudos tradicionais baseados exclusivamente em atas, leis, decretos para, com texto primoroso, tentar desvendar quem somos na seiva, no sêmen e na saliva. Muitos séculos antes, o diabo acendera o fogo sexual dos pretos, brancos e índios que geraram mamelucos, cafuzos, mulatos, a brava gente brasileira, que até hoje não se sabe se fadada ao fracasso ou à redenção. É por isso que, além do autor de "Casa Grande & Senzala", tantos outros, como Sérgio Buarque de Hollanda, Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes e Darcy Ribeiro tentaram explicar o Brasil. São os exegetas do diabo.
Conhecemos Darcy Ribeiro pessoalmente, no começo da década de 80 e da improvável campanha de Leonel Brizola para o governo do Estado do Rio de Janeiro, que começou com um fusquinha emprestado, virou epidemia nas ruas, acabou vitoriosa e resultou na edificação, por todo o canto, de centenas de Cieps (escolas públicas em turno único).
Darcy adorava freqüentar a praia de Copacabana com uma namorada da época, bem mais jovem, muito bonita. Sentava na areia, reunia as pessoas em torno, e falava pelos cotovelos. Mente quem diz entender o que Darcy dizia. Ele sempre parecia ter cheirado dúzias de carreiras de cocaína de manhã, porque atropelava as palavras, abandonava um raciocínio no meio para só rebuscá-lo muito depois. O que nos seduzia no Darcy era o entusiasmo com as próprias idéias. E os textos originais, porque Darcy gostava de escrever e o fazia muito bem, motivo pelo qual, provavelmente, é tão discriminado no cenário acadêmico nacional. Vá explicar a sociologia da panelinha e a antropologia da inveja!
Darcy Ribeiro é autor de oito livros sobre etnologia, outros oito sobre educação, nove ensaios, quatro romances (com destaque para a obra-prima "Maíra") e sete tratados antropológicos. Chefe da casa civil do governo João Goulart, criou a Universidade de Brasília. Estava disposto a sacrificar a vida para evitar o golpe militar, um voto vencido. No exílio, ajudou a espalhar universidades pela América Latina e a África. De volta ao Brasil, criou os Cieps (uma concepção revolucionária para o ensino público no país) e a Universidade Estadual do Norte Fluminense, referência nacional nos estudos geológicos e outros estratégicos para a exploração do petróleo e do gás natural. Em 1995, dois anos antes de morrer, concluiu o clássico "O Povo Brasileiro". Doente, fugiu do hospital e se isolou em Maricá, na região dos Lagos, no Rio, para poder acabar de escrever a sua obra mais importante.
Em "O Povo Brasileiro", Darcy desenvolveu o conceito de ninguendade, ao sustentar que o Brasil é uma terra de ninguéns, de órfãos que, devido a vicissitudes históricas, perderam a identidade original. Não podemos, neste contexto, deixar de observar uma semelhança com a história de Lúcifer (Luz e Fé), o anjo preferido do Senhor que caiu e se perdeu. Tratava-se, voltando a Darcy, de uma nação de pretos desafricanizados, de brancos deseuropeizados e de índios destribalizados. E o caboclo, desprezando a mãe índia e desprezado pelo pai branco, abriu cruelmente as picadas para a interiorização do país. Nenhum momento histórico, nenhum movimento imigratório, nada fica fora da obra monumental do intelectual mineiro. Uns mais, outros menos, japoneses, alemães, italianos, polacos e portugueses tardios se perderam, ou se envolveram, no labirinto da Terra de Ninguém, do Império dos Órfãos, da República Federativa do Abandono.
E a esta altura, finalmente, chegamos a Roberto Carlos, que comemora 50 anos na profissão de intérprete e tradutor desse abandono tão radical. Quando Roberto canta, o Brasil canta com ele. Ele diz exatamente o que o nosso coração derramado, piegas, maltratado e abandonado quer dizer ou quer que alguém diga em seu lugar. Roberto Carlos não é cafona. Cafonas somos todos nós. Somos nós, que choramos com a propaganda do Gelol e acreditamos em Papai Noel, sim. Cafonas graças a deus ou a satanás. Custamos a acreditar que algum brasileiro sincero não tenha algum dia chorado ao ouvir "Detalhes", "Meu pequeno Cachoeiro", "Eu te amo" e tantas outras canções do capixaba. Roberto é carismático e avassalador, capaz de romper barreiras étnicas, sociais, financeiras, culturais, porque rico, pobre, criança, adulto, velho, preto, branco, pardo, índio, todos os habitantes desta terra de ninguém, somos carentes e queremos expressar o abandono. Quem é brasileiro e não gosta de Roberto Carlos, odeia a si mesmo. Recomendamos a esses infelizes um terapeuta do cinismo, um sociólogo da panelinha, um antropólogo da inveja ou um exegeta do mau-caratismo.
Cláudio Renato
Roberto Carlos e a Jovem Guarda
Darcy Ribeiro, intérprete do Brasil
Caramba, Cláudio! Antes de mais nada, preciso dizer que poucas vezes li textos tão bons quanto os que tenho encontrado aqui. Como disse no meu primeiro comentário a respeito de seu "furo digital" e, de certo modo, os bastidores da TV, vou bater ponto neste site onde, certamente, beberei de uma fonte de cultura super despretensiosa.
ResponderExcluirE já que o assunto é Roberto, estava mesmo pensando nele hoje pela manhã. É impressionante o alcance que ele tem. Em algum momento da vida TODOS nós já ouvimos ou cantarolamos algumas de suas canções. Tenho 25 anos e, normalmente, pessoas da minha idade não se interessam pelo gênero. Confesso não ser, exatamente, um fã de RC, mas é inevitável gostar dele. Atire a primeira pedra o brasileiro que sequer ouviu falar em Roberto Carlos ou conhece menos que dez músicas do rei. Como costumo dizer, música de Roberto, no Brasil, é "Parabéns pra você".
Luiz Eduardo
Rapaz eu chorei muito ouvindo Roberto Carlos. Aquela música "coisa bonita, coisa gostosa, quem foi que disse que tem que ser magra pra ser formosa...." me fez chorar de tanta raiva !! O Brasil não é cafona. Cafona é a Globo que nos empurra goela abaixo coisas como Xuxa, Roberto Carlos e Faustão. Fora Roberto Carlos !!!!
ResponderExcluirCláudio, salve - SEMPRE E PRA SEMPRE - Roberto Carlos, onde o Brasil, queira ou não, se encontra todo!
ResponderExcluirGrande texto.
Abraço!
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ResponderExcluirCR, finalmente consegui entrar no seu blog! E tô adorando! Vou passar aqui sempre!!! Bem, quanto ao Rei, sou suspeita para falar. Sou fã de carteirinha e choro toda vez que ouço Detalhes e Como é grande o meu amor por vc. Só não fui ao show do Maraca porque tava viajando a trabalho. Se é cafona ou não é, eu nem ligo. AMO!!!!! Beijo grande, Dani (a guria)
ResponderExcluirSó uma palavra: Brilhante! Tudo bem que sou muitíssimo suspeito para falar, mas achei o texto de um brilhantismo ímpar. A discussão étnica, transformada em etnográfica, ao analisar a obra do Rei é genial.
ResponderExcluirTalvez por um olhar bastante "canarinho" prefiro acreditar que a mestiçagem nos faz bem, nos mistura...nos traz um Vinícius cachaceiro e erudito; um Machado genial e debochado; Um Lima Barreto questionador e preto. Um historiador argentino do século passado (infelizmente me foge o nome) analisa o povo latino como a "raça cósmica", que por tantas misturas, representaria o ápice da humanidade. Não cheguemos a tanto, mas que essa etnogênese nos caiu bem...ah, como caiu! rs
Cláudio, amigo, fui ao show do Roberto Carlos. Gostei muito. Penso que ele nos faz recordar a "cafonice" do amor, do respeito, da gentileza que a maioria das pessoas esqueceu.
ResponderExcluirParabens, a voce, que consegue expressar em palavras, denunciar e divulgar o exagêro do egoísmo, da estupidez, do desrespeito que acaba com a dignidade de nosso país.
Um grande abraço da amiga Ana Pinho.
Qual a primeiro música que ouvi na minha vida? Roberto Carlos. Não poderia ser diferente nos anos 70,no subúrbio da Leopoldina, com os vizinhos nos bombardeando de Jovem Guarda por todos os lados.Depois veio o cinema, as festinhas e os especiais...Assim o Roberto foi ficando íntimo.Tudo meio cafona,romântico,ingênuo e autêntico demais.
ResponderExcluirConheço algumas histórias e idéias do Cláudio. Ouvi outras que merecem ser escritas com a mesma intensidade que são contadas. Estou aguardando...
Caríssimo Cláudio,
ResponderExcluirtomara que futuramente seus textos possam estar reunidos num livro de crônicas, para serem saboreados por muuuito mais gente.
Parabéns especialmente pelo texto do Darcy Ribeiro/Roberto Carlos. Acho apenas que, no caso do Rei, podíamos ficar no meio-termo entre a louvação predominante e a destruição completa, como a que foi feita pelo Bernardo Reinhardt... mas talvez seja mesmo uma característica inextricável (de parte) do povo brasileiro, sermos radicais e/ou passionais.
Abraços, Rogério Imbuzeiro.