sexta-feira, 3 de julho de 2009

Seu Dorival, não desliga não!


Quando ficavámos tristes, muito tristes mesmo, telefonávamos para o Dorival Caymmi. Cansamos de fazer isso, quando, em São Paulo, nuvens de depressão se formavam sobre nós. Não, nunca fomos amigos íntimos do Caymmi. Ele nem sabia quem éramos, na verdade. Mas atendia, conversava, brincava e às vezes até cantava ao telefone. E o céu azulava.

A idéia de ligar para o Caymmi surgiu no fim da década de 80 e não foi nossa, mas de um pipoqueiro, também cabeça-de-algodão, que fazia ponto na Rua Souza Lima, em Copacabana, onde namorava platonicamente o poeta velho, moreno e sensual. Vendia menos pipoca, mas podia ver o Caymmi a caminho do mar. "Liga, que ele antende e conversa", garantia. A primeira ligação nos custou cinco doses de coragem em um botequim da Cidade Nova.

Sempre nos identificávamos como jornalistas. Caymmi conversava, sem cerimônia, com o repórter de O Globo, de o Estado de S. Paulo, do caderno cultural da Gazeta Mercantil e até do Jornal do Brasil, diário onde jamais trabalhamos. Se nos disséssemos repórter da Folha de Coca, ele atendia, serelepe, da mesma maneira. Adorava falar ternamente dos amigos: da cantora Carmem Miranda, do pintor Clóvis Graciano, do artista plástico Carybé e, principalmente, do escritor Jorge Amado, além de dona Stela e da família. Jamais deixou de atender às ligações. Ele adorava falar!

Que entre neste texto o testemunho do jornalista Marlúcio Luna para atestar a história que se segue.

Marlúcio fora nos visitar, num sábado ensolarado em meados de 2006, em Vila Isabel. Macumbeiro e marrento inveterado, Marlúcio Luna - mar, luz e lua no mesmo nome - acabara de nos presentear com um CD de cantos do candomblé e a conversa tinha, em uma hora, que desaguar em Dorival Caymmi, ministro de Xangô. Levara a Andréia e o Gabriel, então com 3 anos, moleque simpático e personalíssimo, que desdenhava doces e adorava brócolis.

Bebíamos cerveja e cachaça, quando começamos a falar, levianamente, do gênio de João Gilberto. Um homem de esquisitices, o João Gilberto. Uma pessoa pública que jamais dava entrevistas, com uma biografia repleta de clarões, mas um gênio. Achávamos que João Gilberto poderia ser o homem mais triste do mundo, mas quem o conhece garante que não. Confessamos certa vez ao Mário Canivello que lhe invejávamos o emprego: assessor de imprensa de João e de Chico Buarque. Canivello é um administrador de silêncios. Só lhe faltava "assessorar" o Dalton Trevisan, que só fala, enviezadamente, pelos contos, cada vez mais curtos.

Mais exaltados e levianos, à medida que a taxa de álcool subia no sangue, começamos a argumentar que João Gilberto, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé - os baianos todos, os cariocas também - pouco ou nada seriam sem Dorival Caymmi. Contamos ao Marlúcio que já entrevistáramos e de vez em quando falávamos ao telefone com o autor de "Samba da minha terra" e pouco mais de cem canções celestiais. Secretamente, torcíamos para o Marlúcio duvidar. E ele duvidou. E então resolvemos começar o processo pelo princípio mesmo. Ao telefone, teclamos 102 e pedimos à atendente o número de Dorival Caymmi, em Copacabana. Ele nunca fizera segredo do telefone. Assim, quase 20 anos antes, o pipoqueiro conseguira o contato do ídolo, nas páginas amarelecidas da companhia telefônica.

Dois toques, uma moça atendeu. Perguntou quem era. Dessa vez, para espicaçar mais a emoção, dissemos apenas que Cláudio, de Vila Isabel, queria falar com ele. Caymmi, já adoentado, atendeu prontamente.

- Oi, quem está falando?
- Oi, seu Dorival, é o Cláudio, um fã seu, de Vila Isabel.
- Menino, como vai? Tá sol por aí? Rapaz, Vila Isabel, é? Você acredita que conheci o Noel? Sabe que sou fã dele?

Da nossa parte, foi uma tietagem desavergonhada. Contamos ter sido embalados ao som de "Acalanto" - a mais bela cantiga de ninar brasileira que lançou a jovem Dinair Tostes Caymmi, então com 19 anos, ao estrelato. Nana Caymmi entrou pela primeira vez em um estúdio para gravar a canção que o pai compusera para ela dormir. Ele riu, falou da gravação histórica pela Odeon, emendava um assunto no outro.

Marlúcio, olhos esbugalhados, parecia não acreditar. Dissemos que passaríamos o telefone para outro fã e desejamos ao mestre o restabelecimento da saúde. Caymmi não entendeu:

- Meu filho, não desliga não!

Marla tomou o telefone da minha mão, começou a falar com o Caymmi e desmoronou. Choramos. E até hoje a súplica nos remói.

- Meu filho, não desliga não!

Dorival Caymmi, o maior gênio popular do Brasil, morreu em 16 de agosto de 2008, aos 94 anos. Fomos informados da morte naquele sábado de manhã, pelo amigo e também jornalista Eduardo Carvalho. Nada falamos. Trocamos silêncios. Tempos depois, assistimos à reapresentação na TV de uma antiga entrevista de Paulinho da Viola, que ficara anos sem entoar uma canção de Cartola. "Agora, acho que posso". Ele acariciou o violão e cantou lindamente "As Rosas não falam". Silenciamos sobre Dorival. Embora ele jamais saísse do nosso pensamento, as palavras não saíam. Agora, talvez, possamos.

Claudio Renato
Uma cantiga que adormeceu gerações de brasileiros:


15 comentários:

  1. Cláudio este é certamente um dos relatos mais bem escritos que já vi sobre Dorival Caymmi. E também um dos mais emocionantes. De fato, é preciso espalhar esse tipo de sentimento para que cada vez mais brasieiros saibam como eram nossos músicos, o tamanho deles, de seu talento, de sua bondade, de seu coração. Precisamos sim, sempre que pudermos, mostrar o amor que temos por nossa música, por nossa cultura.
    E eles nem exigiam cinco mil copos de água gelada e três mil toalhas brancas para fazer show.
    Peço sua permissão para reproduzir o seu texto - com todos os devidos créditos - no site do Frazão, que trata modestamente sobre nossa música.

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  2. Ô, Cláudio, meu amigo...
    Você não sabe a emoção que senti agora, ao ler essa história tão bonita que você ainda não tinha me contado...
    É a história mais singela e mais bonita que li nos últimos anos.
    Um beijo!

    Dagoberto Souto Maior: meu amigo de outras batalhas, bom vê-lo por aqui. Outro dia me lembrava daqueles pastéis que lanchávamos, comprados em biroscas da Nova Holanda, favela de Bonsucesso, quando trabalhávamos na Ediouro...
    Aparece, rapaz!
    Grande abraço!

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  3. Claudinho, que lindo relato...
    Eu também tenho uma história com Caymmi, nosso vizinho de casa em Rio das Ostras. Uma vez, Artur, meu menino mais velho, ainda pequenino, estávamos na praia, à tardinha, um dia qualquer de semana, sentados na beirinha, vendo os caranguejos fugir das marolas.
    E comecei a cantar pra ele "O mar, quando quebra na praia, é bonito...". Olhei para o lado e lá estava Caymmi, de pé, braços cruzados, sorrindo, doido pra uma conversa.
    Mas eu, morta de vergonha, não tive coragem de continuar e tietar. Coisas de quem ainda não tinha 30 anos...

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  4. Porra !!!!!!!! Porque você não me chamou pra essa bebedeira ????? Isso é discriminação com a PMERJ !!!!!!!!!!!
    Parabéns pelo Blog, finalmente vc se rendeu à tecnologia !!!!!!!

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  5. Confesso que vivi!

    Domingo inesquecível no apartamento de Vila Isabel, tanto pelas visitas bacanas quanto pelo efeito Caymmi. Os dois marmanjos, marrentos e inteligentes até doer, sensibilizados pela doçura do mestre baiano.

    Um beijo!

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  6. Este comentário foi removido pelo autor.

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  7. Adorei o texto, a história e vivência! Quando 'crescer', quero ter muitas dessas para contar!!! Parabéns!

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  8. Que lindo, Claudio!
    Parabéns!!! bjs

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  9. Sérgio, querido, posto para você:

    Meu querido amigo
    Parabéns pelo blog! Comunicativo, bonito e elegante. Tive a oportunidade de ouvir de sua própria boca esse relato e me lembro que tanto eu como você ficamos emocionados... Talvez por essa genial e inesquecível figura, Dorival Caymmi, nos fazer lembrar que a grandeza do ser humano está na simplicidade e na humildade. Muitas vezes nos esquecemos disso. Que você continue nesse caminho da grandeza, amigo, pois essas duas virtudes sempre fizeram parte de sua vida. Eu testemunho. Um beijo no coração
    Sergio Dutra
    P.S. Tentei colocar esse comentário no seu blog, mas não consegui. Ainda não superei minhas dificuldades com certas tecnologias...rs. Se você puder colocar eu agradeço.

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  10. Lindo este texto. De uma doçura.... agora lerei o Vandré

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  11. O que mais dói, o que mais dói, meu caro Cláudio, da morte de Caymmi, é saber que nunca mais, nunca mesmo, teremos uma personalidade igual a ele! Ele é o maior brasileiro da história!!! O maior!!

    Graciano Filho

    João Pessoa (PB)

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  12. Se eu já era fã do Caymmi, imagine depois, Cláudio Renato, deste seu texto que prova ser a vida real — basta a gente querer — feita de poesia. Não dá pra ler sem derramar um bocado de lágrimas essa história, das mais gostosas de se derramar...

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  13. Pensei em quantas coisas maravilhosas como essa história não teriam rolado no mundo sem uma boa dose de entrega generosa à boemia...
    E o mundo ficaria mais pobre de poesia viva...
    Ando pensando na necessidade de uma campanha de resgate do valor cultural da boemia... Tá todo mundo saudável demais... argh!

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  14. Texto muito bonito, meu amigo. Escrito à lá Dorival, meio manso, cadenciado. Bom de ler - e de imaginar sua voz grave e doce conversando com as de vocês pelo orelhão...

    E no final, quando não queremos mais que o relato acabe, pensamos: "Rapaz, não desliga, não..."

    Abraço!!

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  15. Chorei, chorei, até ficar com dó de mim! Belíssimo texto, um dos melhores que já li, sobre Dorival e o legado por ele deixado para a cultura brasileira.

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