quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Buarques de Hollanda, os meninos da Rua Buri - Segundo Capítulo

A família Buarque de Hollanda, na Rua Buri, no aniversário de 72 anos de Sérgio Buarque
Maria Amélia, filhas e netas

O historiador Sérgio Buarque de Hollanda odiava ser interrompido enquanto lia os jornais. E foi em um desses momentos de concentração que, certa vez, um ladrão resolveu invadir a casa da família na Rua Buri 35, no Pacaembu, São Paulo. Ao ouvir o barulho importuno, Sérgio, sem tirar os olhos das notícias, vociferou improprérios. O ladrão, assustado, entrou no quarto da babá Benedita. Só deu para afanar um aparelho de televisão. Passou por um dos meninos, que o cumprimentou, pensando ser o técnico. Eis que no portão surgiu a super Maria Amélia, que, com um saco de compras, gritou, pôs o homem para correr e salvou a televisão. Ainda absorto nas leituras, Sérgio resmungou, xingou e ficou muito tempo sem compreender o que ocorrera. Quem conta o episódio, às gargalhadas, é a primogênita dos Buarques de Hollanda, Heloísa Helena, a Miúcha, 72 anos.

"Papai trabalhava com a porta aberta e enlouquecia quando a casa era invadida pela molecada que queria jogar pingue-pongue e pebolim (totó)", conta a mãe de Bebel Gilberto. O casarão da Rua Buri era uma zona franca. Houve ali festas que reuniram 500 pessoas e até comércio ambulante na porta. Vinícius de Moraes participava de todos os rega-bofes.

Mulher altiva, que recusa ajuda até para carregar pacotes de compra em supermercados, a centenária Maria Amélia jamais abandanou a fé religiosa, nem mesmo pelo marido, irreverente e ateu. Miúcha, aliás, adora falar sobre a união aparentemente improvável de Memélia e Papioto. "Papai era um intelectual boêmio; e mamãe, católica, de uma família mineira tradicional de Ubá." Eles se conheceram no carnaval de 1934, embalados pelos sambas e marchinhas de Noel Rosa e Braguinha, em frente à sede do Jockey Club do Rio. Foram apresentados por Afonso Arinos de Mello Franco, primo-irmão de Maria Amélia e amigo de Sérgio. Para Miúcha, "não fosse a admiração e a organização de minha mãe, papai não teria escrito Raízes do Brasil." A própria Memélia confirma que, "para bancar a noiva boazinha, datilografava o que Sérgio escrevia à mão."

A casa de 600 metros quadrados na Rua Buri, construída em 1929, foi a primeira que a família conseguiu comprar (a prestações). Sérgio e Maria Amélia recebiam nela os amigos Vinícius de Moraes, Antônio Candido, Caio Prado Jr, Manuel Bandeira, Prudente de Moraes Neto, Carybé, Jorge Amado, Paulo Vanzolini, Florestan Fernandes, Clóvis Graciano, Dorival Caymmi, Fernando Sabino e tantos outros que aportavam em São Paulo. Miúcha conta que Sérgio cantava samba em latim e tango em alemão, tocava berrante e sanfona, vestia-se de Nero em bailes a fantasia e, numa ocasião, andou com uma galinha verde sob o braço para sacanear os integralistas. Ana de Hollanda, a Baía, de 61 anos, sexta filha, pede, entretanto, cuidado com a imaginação fértil da irmã mais velha. "Papai detestava pegar em bichos."

Sérgio conheceu no Café Nice, no Rio, Pixinguinha, Donga, Aracy de Almeida e Ismael Silva. "No tempo em que João Gilberto era casado com Miúcha, fiz visitas cordiais à família, em São Paulo, e me encantei com a simplicidade, o despojamento e a ausência de vaidade em dona Maria Amélia", contou-nos Dorival Caymmi, em outubro de 2000. Na época da Rua Buri, Memélia já se notabilizava pelos dotes culinários. O doce de coco "amarelo Van Gogh" foi imortalizado por Fernando Sabino na crônica "Um pouco de doçura." Outras especialidades na cozinha eram vatapá e bobó de camarão.

O biólogo e compositor Paulo Vanzolini, 85 anos, lembra dos saraus na casa do Serjão, quando Maria Amélia, ao pé do piano, cantava músicas de Ismael Silva, e participava de todas as conversas sobre o destino do Brasil. "Ela não é uma pessoa de esquerda, apenas uma mulher de bom caráter e uma das pessoas de quem mais gosto na vida."

O casarão dos Buarques de Hollanda em São Paulo foi de festa na era de ouro, mas, também, de resistência, nos anos de chumbo. Nos períodos negros da ditadura, a casa da rua Buri se transformava em "aparelho." Sérgio pedira aposentadoria da universidade, a USP, em solidaridade a Florestan Fernandes e outros professores afastados. O telefone da família foi grampeado. Maria Améia conhecia as senhas. "Fulano no hospital" significava prisão de alguém. Nos confrontos de estudantes com a polícia na rua Maria Antônia, em São Paulo, levava comida para a meninada. E ajudava os proscritos, como o deputado cassado Márcio Moreira Alves, cujo discurso anódino contra os militares fora, em 1968, o pretexto para a decretação do AI-5, que restringiria todas as liberdades constitucionais dos cidadãos brasileiros.

Maria Amélia é uma católica esclarecida, que frequenta a igreja São Paulo Apóstolo, em Copacabana, bairro carioca onde mora. A simpatia contagia a vizinhança. Alfredo Jacinto Mello, o Alfredinho, de 66 anos, proprietário do botequim Bip Bip, é fã de carteirinha. "Memélia é a mãe e a avó que todos gostaríamos de ter; uma ativista da esquerda católica que jamais se entrega à depressão", conta Alfredo, que frequenta a mesma igreja da mãe de Chico. Além do Bip Bip, Maria Amélia, sempre que pode, faz uma propaganda subliminar do Carioca da Gema, uma das principais casas de espetáculo da Lapa, no centro do Rio, administrada por um dos sobrinhos, Carlos Thiago Cesário Alvim.

Filha do desembargador mineiro Francisco de Cesário Alvim e da paulista Maria do Carmo da Costa Carvalho, Maria Amélia nasceu em 25 de janeiro de 1910 - no mesmo ano de Noel Rosa, da passagem do cometa Harley e da Revolta da Chibata, na qual marinheiros se amotinaram contra a semiescravidão imposta pelos oficiais da Armada aos subalternos e quase bombardearam toda a cidade. Ela veio à luz no elegante bairro do Cosme Velho, no Rio. É a mais velha de dez irmãos. O avô paterno, José de Cesário Alvim, foi o primeiro presidente de Minas Gerais e o materno, Álvaro de Carvalho, senador e ministro. Quando Memélia tinha 6 anos, a família mudou-se para Copacabana. A menina estudou no Sacré Couer de Marie. Depois, fez curso de enfermagem. Aprendeu a falar francês, italiano e inglês. Para a educação dos filhos, exigiu colégios excelentes: o Des Oiseaux, o Santa Cruz e o Caetano de Campos.

Socialista de corpo e alma, Maria Amélia procura distribuir o afeto equitativamente por cada filho, neto, bisneto ou amigo. "Sucesso é palavra de consumo externo e o importante é o amor que sentimos por cada um deles, não que saiam ou deixem de sair na imprensa. Até porque o amor de verdade dificilmente é publicado nas páginas dos jornais."

No próximo e último capítulo: a carioquice radical de Memélia, que, praticamente, obrigava os filhos e netos a "falar chiado"; o depoimento de Mário Lago, de Antônio Candido e de todos os filhos; a reação da matriarca ao envolvimento de Chico Buarque com grupos de extrema direita que originariam a TFP e à prisão dele, por furto de carro em São Paulo, antes de se tornar o compositor mais competente e querido do Brasil.

Cláudio Renato, em texto baseado em apurações jornalísticas para as reportagens "A construção do clã" (no Caderno Fim de Semana, Gazeta Mercantil, em 2000), "Dossiê Sérgio Buarque de Hollanda" (na Revista Bravo, em 2002) e "Os 60 anos de Chico Buarque" (para os telejornais da TV Globo, em 2004).



17 comentários:

  1. caro CR,

    Tenho minhas querelas com o Raízes do Brasil desde a faculdade. Com ele e com o Gilberto Freyre, o outro tratado - supostamente - inquestionável sobre a formação da "brava gente brasileira".

    Talvez exatamente por isso, para mim, tenha sido fascinante a humanização do trabalho do Sérgio Buarque de Hollanda que esse capítulo da saga dos Buarque de Hollanda propicia.

    Tive um receio, obviamente infundado, de que você acabasse por deitar alguma falação sociológica. Mas o lead, como sempre, impecável, captura a atenção assim que se começa a ler, e daí pra frente, é mais uma aula de reportagem.

    O insight em aspectos pessoais do pensador – assim como ocorreu com o texto do Jorge Amado, do Vandré e outros –, pode provocar mudanças significativas na maneira como o enxergamos, acrescentando camadas e sutilezas que o senso comum ignora.

    Mais uma vez, parabéns !

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  2. Os acontecimentos recentes me impediram de ler na semana passada o primeiro capítulo. Mas sempre há tempo para mudar o rumo. Para me redimir, li hoje os dois de uma só vez!

    Que maravilha poder conhecer um pouco mais sobre Memélia. Essa figura que, claramente, teve grande influência na "construção" de um dos maiores cantores e compositores do país: Chico Buarque.

    Já tinha assistido a uma reportagem sobre ela, mas nunca com tantos detalhes curiosos. Sem dúvida, ela é um exemplo de mulher. Eles todos, um exemplo de família.

    Mais uma vez você alegrou minha madrugada gélida no estúdio da CBN...

    Beijo

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  3. Querido Cláudio,

    Sempre que ouço um barulho importuno durante qualquer leitura, a da vida ou a dos jornais, enfim, a das memórias, vocifero impropérios, mesmo sem tirar os olhos da notícia. Ponto pro Sérgio.

    Toda que vez que levanto para trabalhar ou sento para escrever, concordo que o sucesso é palavra de consumo externo e reitero, e assino embaixo, que o importante é o amor que sentimos por cada um deles, os filhos, ou textos, que também são filhos, mas das nossas palavras. E tiro – mais uma vez – o chapéu para o sábio raciocínio: o amor de verdade dificilmente é publicado nas páginas dos jornais. Ponto pra Memélia.

    E ao perceber que, por sua causa, aprendo mais a vociferar impropérios sem tirar os olhos da notícia e que o sucesso é palavra de consumo externo, vide o casal ao qual me referi, entendo que sua missão é informar sobre fatos antigos – para uns nem tanto – contando novas histórias.

    Ponto pra você.

    Parabéns, Crenato!

    Um abraço!

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  4. o caro cavaleiro terceiro da ordem da cruz do pascoal me pediu que postasse esta mensagem:

    "É bem verdade Meméia,amor de verdade dificilmente é publicado em jornais.Sorte nossa que existam hoje meios para gente como Cláudio para publicar textos tão amáveis, noticiados suspiros de prazer em nossas jornadas desiludidas.
    Sir Cláidio, tm sido uma imensa alegria a leitura do blog, as conngratulações são indispensáveis para um comunicador que bosqueja personagens tão preciosos para os rumos de nosso país, para nossa fome...
    São forma de portas abertas para um maravilhoso imaginário!"

    Daqui do regimento sede da Ordem Pasqualina,
    Sir Daniel Vilasboas

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  5. Maravilhoso artigo. Aliás, artigos. Conheço os sobrinhos de Maria Amélia e posso assegurar que são também herdeiros do caráter humanístico e fraterno, além, é claro, da sensibilidade musical. Parabéns mais uma vez, Cláudio, por trazer história tão bonita, simples e comovente ao nosso universo. A ambientação, tão ricamente manifesta nos textos, nos faz imaginar o quanto esse povo foi feliz em meio às turbulências das guerras contemporâneas que enfrentaram e que sabiamente souberam traduzir com humor, amor, literatura e notas musicais.

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  6. Caro Cláudio Renato,

    O mais importantes neste trabalho que você está desenvolvendo, com tanta competência, na minha opinião. é trazer à luz a personalidade modernista do intelectual Sérgio Buarque de Hollanda. A partir desses epsódios anedóticos, conseguimos compreender a exuberância e a riqueza do texto do Sérgio, que, a partir da forma e da observação, procura desocultar aspectos fundamentais da anima do Brasil. O epsódio do assalto, relatado no primeiro parágrafo, é hilário e muito importante para situar esse contexto. A história da galinha verde, que ele usava para sacanear os integralistas, é modernimo puro! Se ele inventou a história, é melhor ainda!

    Parabéns, sir.

    Abraço

    Graciano Filho - João Pessoa (PB)

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  7. Estou totalmente mergulhada nesta maravilhosa história . Na minha opinião, você tem que reunir todos estes dados e colocar em um livro. Faça Claudio, faça. É uma delícia ler você.
    As fotos estão lindas.
    Fico aguardando o terceiro capítulo. E é claro que começo já a reler tudinho.
    Boa semana!

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  8. Uma costura agradável, envolvente e inteligente alinhavando as histórias do clã dos Buarque de Hollanda com a inteligência brasileira e acontecimentos marcantes do século XX.
    Vou guardar e explorar esse como texto paradidático, com sua permissão Claudio Renato.
    Saudações...

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  9. Cláudio, mais um golaço.
    Mais uma história que encanta e revela. Você faz hoje o único jornalismo que me interessa ler.
    Abraço!

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  10. Realmente fascinante!
    O Passavante deveria virar livro!
    Seria fabuloso poder ler tudo isso no papel!

    Espero o próximo capítulo.

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  11. Muita coisa instigante neste segundo capítulo.

    Mas o que mais me motiva comentar é o casamento improvável entre Maria Amélia e Sérgio Buarque. A exemplo de outros tantos que existem por aí, em que "os opostos" se atraem para construir uma bela e/ou intensa história de vida, o casal do Pacaembu deve ter cumprido sua missão.

    Nem nos cabe tentar adivinhar o quanto Sérgio e Memélia foram felizes juntos, o quanto se realizaram conjugalmente. Cada um de nós é que sabe ou vai saber, no íntimo, no momento de balanço da existência, o quanto de plenitude conquistou; o quanto de arrependimento e irrealização porventura semeou com suas escolhas - ou com as possibilidades trazidas pelo Destino...

    Muitas mulheres poderiam arriscar que os dois se encontraram um dia, e se encantaram e apaixonaram um pelo outro (apesar das muitas diferenças), por um único motivo: para que o Príncipe de Olhos Verdes viesse ao mundo, com seu extraordinário talento musical e poético (ou literário, como prefere o Chico)... mas certamente foi por muito mais.

    Talvez a Lei do Carma, se impondo implacável, reaproximando espíritos que conviveram noutros tempos e que reencarnam para novamente se encontrar, aparar arestas, abrandar divergências e antipatias, construir riquíssimas histórias de afeto e amor, envolvendo pais e filhos, marido e mulher, clãs "obrigados" a seguir estrada de mãos dadas...

    No mais, embora daqui a 100 anos o palco da Terra esteja completamente renovado de atores, embora todos nós e nossos cônjuges, filhos, amigos estejamos condenados à extinção em breve, Cláudio Renato, do fundo do meu coração desejo Vida Longa ao surpreendente, denso, barroco, transcendental e imprescindível Passavante!

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  12. Concordo que as histórias dos Buarques dariam um livro, mais filmes, qualquer produção artística. Aqui leio uma ótima produção jornalística, com texto repleto de nuances...Só acho que o Chico Buarque apareceu pouco nos dois textos. Aguardarei o próximo para saber como esse gênio vadio de olhos verdes foi preso furtando carros e como ele se envolveu com o pessoal da TFP. Quanta ironia!

    Zé Guará

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  13. Comentário enviado pelo jornalista Gustavo Gomes, editor do telejornal Bom Dia Brasil.

    "Grande reportagem.
    É impressionante ver como um pequeno grupo de pessoas pode influenciar tantas outras através da expressão cultural.
    É impressionante ver como uma pessoa de força indelével pode formar gente que não se curva, produz unanimidades, e é aprovada cegamente pela "opinião pública".
    Pena que nem sempre isso seja positivo para a formação do caráter nacional, ou contribua para a tolerância entre os muitos países que moram neste pedação de terra.
    Pena que essa enxurrada de vontades que emanam centralmente das praias do Rio muitas vezes escondam outras histórias, igualmente importantes.
    Talvez seja eu o implicante, o chato, que sente falta das vozes do sul, do norte, do centro-oeste e do nordeste, que estão condenadas ao ostracismo pelo poder esmagador da zona sul que se enxerga no próprio umbigo.
    Talvez eu esteja atirando pedras no alvo errado.
    Mas será que a premissa, a tese, é incorreta?
    Abraços e parabéns."
    Gustavo

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  14. Dalton, da MPM Sapiens.Com


    "Obrigado Claudio
    Pelo mini conto. Essas informações valem muito, pode crer, principalmente quando dadas com um texto correto e limpo."

    Parabéns.

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  15. Maravilhoso!
    Lendo o texto, viajei. Sempre imaginei que as grandes obras fossem escritas em tempos de perplexidade e sombria concentração. E vejo hoje aqui, que o ensaio mais importante da historiografia (literatura, sociologia...) foi escrito também na sutileza de boa namorada de D. Memélia. Nele a pretensão de um grande ensaio, nela a pretensão de uma atenciosa namorada.
    Lindo!

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  16. Olá,

    Estou fazendo um trabalho de colocar numa mesma página as casas históricas da cidade. Li seu texto, pois as do Buarque de Hollanda entrarão neste ról. Ano passado eu tinha fotografado este imóvel em uma caminhada pelo Pacaembú e nem sabia que tinha tanto valor histórico. Parabéns pelo texto. Abs,

    www.casashistoricaspaulistanas.blogspot.com

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