quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Exclusivo e alvissareiro: a nova marchinha carnavalesca de João Roberto Kelly!

id="BLOGGER_PHOTO_ID_5522175655890936626"
Do Jardim Botânico ao Rio Comprido, o chacoalhar do 438 nos embalava o
sono profundo, naquele fim de tarde de São Cosme e Damião, quando, no
meio da na avenida Paulo de Frontin, o celular estrilou uma surpresa
tão deliciosa quanto suspiro, peitinho de moça, pé de moleque e maria
mole:

- Alô, Cláudio Renato!

- Sim! Ele mesmo!

- É o Kelly, meu filho! Quanto tempo, caramba! Estou explodindo de
alegria, queria dividi-la com você! - dizia a voz exultante do maior
compositor de marchas carnavalescas do Brasil, ao lado dos saudosos
João de Barro, o Braguinha, Lamartine Babo e Oswaldo Nunes.

Colombina onde vai você? Eu vou dançar o iê, iê, iê....

Olha a cabeleira do Zezé, será que ele é?...

Mulata Bossa Nova, saiu no huly guly...e só dá ela...

A cabeça viaja para outros carnavais com João Roberto Kelly.

- Kelly, que prazer, por onde...?

- Seguinte: no próximo dia 14 de outubro, anota aí, 14 de outubro, às
19h, no Bola Preta, vou lançar a minha nova marchinha de carnaval,
depois de muitos e muitos anos! Sabe onde é o Bola Preta agora, né? Na
Rua da Relação com a Lavradio. Quero o amigo lá pra uma cervejinha! Tô
dando essa notícia a você, em primeira mão! Vamos colocar
um clipe no You Tube. Eu não sei nem direito o que é e-mail, mas a
minha mulher (Maria Helena Arduini) sabe tudo de computador, Internet,
Orkut!

- Claro, Kelly! Claro! Há quanto tempo você não fazia
marchinha?...Desde a Cabeleira do Zezé!

- Também não é assim, Renato! (risos).

- Vou, mestre! Vou sim!

- Quer ouvir? Olha só... - a marcha é introduzida pelo menino de 72
anos, imitando, com a boca, os instrumentos imaginários de sopro e
percussão - Tumtururutumtum....Paparararatá..."Tá com vontade de fazer
xixi/Não faz aqui/Não faz aqui/Nosso bloco, a gente vê/É cheiroso, é
maneiro/Lugar de mijão é no banheiro!" Tumturururumrum...

- Kelly, vamos fazer o seguinte... Estou chegando em casa. Vamos nos
falar, ainda hoje, porque tenho perguntas a lhe fazer. Posso mandar
e-mail?

- Manda pra minha mulher. Vou ficar do lado dela, respondo o que você quiser.

As respostas e um novo telefonema chegaram na tarde seguinte. Com o clipe junto para que pudéssemos conhecer, em primeira mão, o que se espera ser sucesso no carnaval de 2011

Passavante - Quer dizer que você volta a compor marchinha de carnaval
e vai apresentá-la, pela primeira vez, no Bola Preta, na sede do bloco
de carnaval mais animado e tradicional do Rio?


João Roberto Kelly - Exatamente. O Bola Preta está oferecendo me uma
festa, o que muito me honra!

P - O que lhe inspirou a compor a nova marchinha? É possível antecipar que será um
sucesso com a marca registrada de João Roberto Kelly?


JRK - Foram os "mijões" do último carnaval. Eles não tinham paciência,
nem lugar e descarregavam o "combustível" nas paredes, nas calçada, em
qualquer canto. O nome é Marcha do Xixi. Sucesso não tem garantia. A
gente faz a marchinha e tem fé que vai colar.

P - Ora,
Kelly, seja sincero. Vai dizer que, apertado, nunca fez xixi na rua?

JRF - É pra ser sincero, né? Eu fiz sim. Mas não nesse carnaval que passou...

P - Você é considerado um dos maiores autores de marchinhas
carnavalescas, ao lado do Braguinha e Lamartine Babo. Quantas foram?

JRK - Mais de 50. Mas nem todas tiveram o êxito de Cabeleira do Zezé,
de Mulata Bossa Nova, de Maria Sapatão, de Bota a Camisinha, de Paz e
Amor
, de Colombina e tantos outros sucessos que fiz. No total, foram
cerca de 300 músicas populares, entre as quais trilhas de programas de TV e
peças de teatro.

P - Braguinha é a sua maior inspiração?

JRK - Braguinha é um dos maiores autores da música popular brasileira.
Ao lado de Lamartine e Haroldo Lobo, exerceu certa influência no meu
jeito de compor. Mais do que um amigo, fui um admirador de Braguinha.

P - Você, além de compositor, é pianista, com formação clássica. Por
que decidiu fazer marchinhas de carnaval?


JRK - Não decidi nada. Eu musicava grandes shows de televisão (Times
Square
, My Fair Show, Praça Onze). Certa madrugada, tomando chope num
bar em Copacabana vi um garçom cabeludo, todo moderninho para a época
(1963). Falei pra ele: se eu fosse desenhista, faria agora uma
caricatura sua; como sou compositor, vou fazer uma música. O ritmo
escolhido foi a marchinha. Nascia a Cabeleira do Zezé. Dali pra
frente...

P - O que você gosta de ouvir?

JRK - Gosto de música romântica, samba, bossa nova e jazz. Gosto muito
de tocar jazz no piano com amigos músicos. Fundamental, para mim, mais
do que duas ou três canções, é a obra inteira de Noel, Ary e Tom.

P - Quem é o (a) melhor intérprete de João Roberto Kelly?

JRK - Cantando os meus sambas, gosto muito da Elza Soares (Boato), da
Alcione (Mormaço) e do Emílio Santiago (Mistura). Nas marchinhas,
sempre fui premiado com as vozes de Emilinha Borba, João Goulart,
Dalva de Oliveira e com a genial irreverência do Chacrinha.

P - A marchinha é uma espécie em extinção na música popular?

JRK - Não. A marchinha está se renovando. Ao lado dos nossos eternos
sucessos de carnaval, surgiu uma garotada nova, buscando outros
caminhos para a marcha carnavalesca, o que acho muito saudável.

P - Quem é o seu herdeiro?

JRK - O meu herdeiro está no meio dessa garotada, dessa galera, muitos dos quais frequentam a Lapa.

P - Você é apaixonado por Copacabana.

JRK - Quando criança e adolescente, morei na Gamboa. Depois, vim para
Copacabana e não saí mais. Conheci aqui Dorival Caymmi, um gênio.
Conheci Valter Alfaiate. Que honra! A mesma honra que tenho em
continuar convivendo com Billy Blanco, Doris (Monteiro), Berta Loran e
Tito Madi, aqui no bairro.

P - Quantos discos você gravou na carreira?

JRK - Gravei mais de 30 LPs e CDs como pianista e cantor. Meu trabalho
atual está sendo lançado na festa do Bola Preta: um CD e um clipe com
a marchinha de 2011. São 46 anos de carnaval, 52 de carreira. Mas o
entusiasmo com este lançamento é o mesmo de antigamente.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Geraldo Vandré, 40 anos depois: "Sou um criminoso, um exilado, ainda não voltei"

Geraldo Vandré: protesta quem não tem poder!
Geraldo Vandré e Geneton Moraes Neto, no Clube da Aeronática

Coube a Chico Buarque e a Tom Jobim enfrentarem a maior vaia da história dos festivais da canção. Durante dez minutos, mais da metade das 30 mil pessoas que lotavam o Maracanãzinho, na madrugada de 29 de setembro de 1968, protestaram, furiosamente, contra a decisão do júri do III Festival Internacional da Canção, que escolhera como vencedora a elegia Sabiá, dos compositores cariocas, interpretada pelas irmãs Cynara e Cybele. O público preferia o hino Para não dizer que não falei das flores (Caminhando), de Geraldo Vandré, uma provocação direta ao regime militar, a Marselhesa brasileira, na pena sarcástica de Nélson Rodrigues. E de nada adiantou a tentativa de contemporização de Vandré.

- Sabe o que eu acho? Uma coisa só mais... Antônio Carlos Jobim e Chico Buarque de Hollanda merecem nosso respeito. A nossa função é a de fazer canções. A função de julgar é do júri que ali está (vaias)...Por favor, tem mais uma coisa só...Para vocês que continuam pensando que me apoiam vaiando (é marmelada! é marmelada!)...Gente, por favor!...Olha, tem uma coisa só: a vida não se resume em festivais! (aplausos)


Dois meses mais tarde, a ditadura calaria o Brasil com o Ato Institucional 5 e o valente Geraldo Vandré nunca mais seria o mesmo. Exilado na Europa e no Chile de Salvador Allende, retornaria em 1973, quando foi obrigado a gravar uma depoimento, em que garantia que, a partir de então, só faria canções de amor. O auto-exílio do compositor só aumentou as especulações de que ele teria sido torturado, lobotomizado, emasculado, o que o próprio nega veementemente. O fato é que Geraldo Vandré morreu. O compositor que assombrara o país com canções belas e corajosas como Disparada e Aroreira não existe mais, conforme se depreende da entrevista que ele concedeu ao repórter Geneton Moraes Neto, que vai ao neste sábado, 25 de setembro, às 21h05, na Globonews (com repetição no domingo, às 12h30).


A tarde é melancolicamente azul, às margens da Baía de Guanabara, em 12 de setembro de 2010. Ansiosos, chegamos ao Aerorto Santos Dumont às 15h30min e monitoramos, por telefone, o repórter Geneton Moraes Neto. "Estamos a caminho!" Na noite anterior, Geneton telefonara para, generosamente, nos convidar a acompanhar um trabalho histórico. Ele entrevistaria para o programa Dossiê Globonews, o lendário paraibano Geraldo Pedrosa de Araújo Dias, que decidira, após quatro meses de negociação empreendida pela produtora Mariana Filgueiras, com a intermediação de um brigadeiro, quebrar um silêncio de 40 anos. Geraldo Vandré, que incendiara o Brasil na segunda metade dos anos 60, cumpria, solitário, naquela data, 75 anos, em um alojamento do Clube da Aeronáutica, anexo ao III Comando Aéreo Regional, na Praça XV de Novembro, centro do Rio.

Ainda não se sabia, ao certo, se Geraldo Vandré concordaria em gravar para um programa de televisão, depois de quatro décadas, mas, quando a equipe da Globonews chegou, o ermitão já aguardava, pontualmente, sentado em um banco de madeira, na portaria. Para a surpresa de quem testemunhou o encontro, Vandré esperou, pacientemente, que toda a parafernália eletrônica fosse ligada e que o microfone de lapela fosse instalado sob a camisa branca do Clube da Aeronáutica que vestia. Enquanto o cinegrafista e os operadores de áudio e luz não davam o sinal para o começo da entrevista, Vandré e Geneton conversavam sobre o que os une intimamente: o Nordeste. Geneton nasceu há 54 anos numa sexta-feira, 13 de julho, em Recife. Ao modo dele, Vandré respondeu a todas as perguntas, às vezes encarando a câmera; foi solícito na hora de posar para imagens de apoio, tirou fotos e até concordou em dar autógrafos.


Na primeira pergunta, Geneton foi direto. "O que aconteceu com Geraldo Vandré?"


- Ele ficou fora dos acontecimentos, foi melhor assim - sussurrou o autor de Disparada. Tenho muito o que fazer. Quando conclui o curso de Direito no Rio, em 1961, fui para São Paulo sabendo que a arte é cultura inútil. Retomei a minha profissão original e descubro que é mais inútil ainda. Sou um advogado em um tempo sem leis.


Geraldo Vandré diz não ter planos de voltar a cantar comercialmente para o público brasileiro. Compôs cerca de 30 canções populares inéditas, em espanhol, que pretende apresentar em um espetáculo em qualquer país da América Latina, menos no Brasil. Domesticamente, desenvolve um poema sinfônico que terá como intróito a música Fabiana, em louvor à FAB, Força Aérea Brasileira. A letra de Fabiana é distribuída como um cartão de visitas a quem se aproxima. O compositor, exilado por causa das canções consideradas ofensivas ao regime militar. encerra uma série de estudos para piano e provoca, ao dizer que se considera mais subversivo do que nunca.

- Nada é mais subversivo que um subdesenvolvido erudito.

Para não dizer que não falei das flores (Caminhando), segundo Vandré, foi uma música importante para a época (1968), feita para todos, até para os soldados e ainda é, acredita, muito atual num país de boias frias, em que as cidades são cada vez mais superpovoadas por "indecisos cordões" (como diz a letra da canção).


- Protesto é coisa de quem não tem poder. Eu fazia música popular brasileira. E tenho muito orgulho de tudo que fiz!


Vandré conta que está compondo peças sinfônicas com o apoio de uma pianista em São Paulo, onde vive, no bairro Bela Vista, o Bexiga, no centro velho da cidade. Só vem ao Rio para visitar a mãe, que mora na cidade serrana de Teresópolis. Quando fica na capital, se instala em alojamentos da Aeronáutica, onde fez amigos, graças, segundo conta, à paixão de infância pela aviação.

- A música ganhou nova dimensão para mim, como a física e a matemática.

Geneton pergunta sobre a divergência histórica que Vandré teve com os tropicalistas Caetano Veloso e Gilberto Gil.

- Uma vez o Gil me disse que fazia qualquer coisa, algo tinha que dar certo. Eu respondi a ele que eu não fazia isso. Estou longe de tudo, mas parece que os tropicalistas continuam na mesma.

Ao ser perguntado em que país Geraldo Vandré vivia, o compositor paraibano assegurou que vive no Brasil que não existe mais.

- O problema é que a maioria dos brasileiros não vive mais no Brasil. O meu Brasil é de 40 anos atrás, quando fazia música para ele. Profissionalmente, a minha carreira mudou no Maracanãzinho. Estava acostumado a fazer espetáculos para 700 pessoas, mil pessoas no teatro e, de repente, estava em um ginásio lotado, cantando para 30 mil, com a televisão transmitindo ao vivo. Era a massificação total.

Para Geraldo Vandré, foi a tal massificação cultural que o afastou dos palcos, porque descaracterizou o que chama de manifestação artística brasileira.

- O Chico Buarque e o Edu Lobo fazem, atualmente, algo segmentado, de vez em quando. Quanto a mim, estou exilado até hoje. Estou afastado do que fazia até 1968. E não retornei.

Geraldo Vandré recusa, contundentemente, o rótulo de compositor antimilitarista, até porque não esconde a adoração pela FAB. Ele conta já ter feito, com um coral de meninos, uma bonita homenagem à Força Aérea, na Semana da Asa, em São Paulo. Planejava repetir o concerto no Clube da Aeronáutica, mas o edifício, em obras, está sendo preparado para as Olimpíadas Militares de 2011, o que deverá adiar o projeto.

- Todos os países soberanos do mundo têm as próprias forças armadas. Vamos entregar as nossas? Por que? Eu tenho loucura por aviação. A maior loucura do homem é voar!

Ao lembrar da apresentação de Caminhando no Maracanãzinho, Vandré diz que foi tudo muito bonito.


- Queria rever as imagens. E dizem que elas desapareceram. Estão lá as imagens do Tom, do Chico, das meninas do Quarteto em Cy, que defenderam Sabiá. E por que as minhas não estão? Devem estar muito bem guardadas.


Para Vandré, cada canção tem um valor próprio. "Gosto igualmente de todas." Das mais famosas, diz que Disparada é mais brasileira, afinada com a tradição de modas de viola, e Caminhando é a primeira crônica urbana que fez.


- Não existe obra-prima. Esta é questão de predileção do público, dos meios de comunicação e dos formadores de opinião.


Geneton pergunta ao compositor se, caso escrevesse um verbete sobre Geraldo Vandré, qual seria a primeira frase. Ele ri e dispara:


- Criminoso! O governo me anistiou por causa das canções que cantei! Fui demitido do serviço público por isso. O que vocês chamam de governo cobra impostos sobre o "corpo de delito" que são as canções que fiz. Voltei ao funcionalismo, depois de muita briga, e me aposentei graças a um despacho fundamentado na Lei de Anistia. Anistia é para criminoso, condenado por sentença transitada em julgado, se ele aceitar. Aceitar a anistia é aceitar-se criminoso.

Vandré admite que, na época, sob certos aspectos, as canções eram mesmo subversivas, mas, no caso dele, "as Forças Armadas entenderam muito melhor a situação do que a sociedade civil. "Sempre houve respeito entre nós." O compositor diz que a ligação que tem com o Brasil se faz, diretamente, por intermédio da FAB.

- Houve um reconhecimento de uma parte da sociedade (os militares) que não tivera oportunidade de saber realmente quais as minhas posições.

A pecha de compositor antimilitarista, segundo Vandré, não passa de manipulação.

- Quanto mais proibidas as canções, mais se vendiam, menos se prestavam contas aos autores. É o processo de massificação, que destruiu a cultura brasileira.

Geneton pergunta sobre a última manifestação artística que chamou a atenção de Vandré, depois do afastamento.

- Quatro anos e meio fora do Brasil, quando voltei havia algo importante, o movimento armorial (iniciativa inspirada pelo escritor pernambucano Ariano Suassuna que tinha como objetivo criar uma arte erudita a partir de elementos da cultura popular do Nordeste), com o quinteto e a orquestra armorial. Não me lembro de nada mais relevante.

Alguma coisa mais chama hoje a atenção de Geraldo Vandré?

- O Tirica (risos). Dizem que vai ser o deputado mais votado em São Paulo.

Geraldo Vandré elogia o talento de Chico Buarque. Diz que, enquanto estava fora, o compositor carioca continou produzindo uma obra importante.

- Quando voltei, ainda tentei me apresentar em um programa de televisão, não importa qual, mas não gostei daquilo. Recuei. A própria TV Globo me chamou para participar de um festival, mas já não me interessava mais.

Segundo Vandré, ele não perdeu contato com os cantores e compositores da geração dos festivais, simplesmente porque nunca estabeleceu qualquer ligação com eles.

- Nunca fui enfronhado no meio artístico. Fazia minhas coisas e me despedia.

Vandré disse que, em 1968, tinha um contrato com uma TV alemã para fazer um documentário. Um ano e meio na Europa, voltou para o Chile, onde havia muitos brasileiros abrigados sob o governo socialista de Salvador Allende. Depois, foi para o Peru, onde, em 1972, ganhou um festival com a única música não cantada em espanhol, intitulada Pátria Amada, Idolatrada, Salve, Salve.


Em 1973, Geraldo Vandré foi obrigado a gravar um vídeo no Aeroporto de Brasília, em que negava qualquer militância política e jurava, a partir de então, só compor canções de amor.


- Não fui constrangido. Nunca tive mesmo militância política e patidária.


As imagens desse depoimento de Vandré também desapareceram. É o mais misterioso vácuo na memória do compositor.


- Gostaria de rever as imagens. Houve a gravação. O que foi para o ar, não sei. Queriam que fizesse uma declaração. Não lembro mais. Mas nada disse que não tenha querido dizer. Aquele depoimento foi feito a pedido de alguém que se apresentou como policial federal. Foi aqui, no Rio. Depois disseram que eu tinha que ir para Brasília. Cheguei ao Brasil em 14 de julho. Em 11 de setembro de 1973, apareço como se estivesse chegando em Brasília. O depoimento foi gravado antes. Gravaram minha imagem descendo do avião em Brasília. Tudo muito manipulado. Tive que passar por um processo de readaptaçao ao voltar.


- A decisão de interromper a carreira foi um protesto contra a "massificação da sociedade brasileira"?

- Foi falta de motivação. Estou fazendo o que acho que deveria fazer.

Geraldo Vandré garante que de nada se arrepende e não reclama da falta de reconhecimento no Brasil.

- Obtive o reconhecimento que procurei e quis. Raramente me arrependo. Calculo, reflito. Quando faço é para ficar feito mesmo.

É o momento em que um poema de Gonçalves Dias, que aprendeu com o pai, José Vandregísilo, acode o compositor paraibano: "Não chores, meu filho, não chores!/ Viver é lutar!/ A vida, meu filho, é um combate! Luta renhida/que aos fracos abate e aos bravos só pode exaltar!"

Sobre a temporária clandestinidade no Brasil, em 1968, Geraldo Vandré admitiu ter ficado, no Rio, na casa de dona Aracy, viúva do escritor Guimarães Rosa:

- Quando fecharam o Congresso, em 13 de dezembro de 1968, estava indo para Brasília apresentar um espetáculo, que, lógico, foi suspenso. Voltei a São Paulo, dirigindo. Ao andar à toa na rua, poderia aparecer uma guarda de trânsito para fazer média. Decidi sair de circulação e, no Rio, fiquei na casa de dona Aracy.


- Vandré, para registro histórico, você foi maltradado físicamente durante o regime militar? - pergunta Geneton.

-Não, nunca!

- Você toca Disparada em casa?

- Não. Faz tempo que não pego no violão. Tenho que voltar a estudar.

Já é noite. Aproveitamos para abraçar e parabenizar Geraldo Vandré pelo aniversário. Ele sorri. Sobe as escadas do alojamento. Geneton, como uma câmera MiniDV, acompanha o eremita até o meio do caminho. Ele olha para trás e se despede, com um sorriso.


Os meninos de rua se dispersam na Praça XV, naquele domingo vazio. A noite encerra uma angústia. Cantarolando a épica Disparada, imaginamos o quanto mudou o Brasil, para o bem e para mal. Seria Geraldo Vandré um cadáver insepulto na cultura popular brasileira? Ou ainda não aprendemos a ver a morte sem chorar?


sexta-feira, 28 de maio de 2010

Memórias proibidas de D.J. Trevisan

Dalton Trevisan, o contista quando jovem
Christopher Lee, o Príncipe das Trevas

Quando Dalton Trevisan decidiu afastar do convívio, em 2001, o escritor Miguel Sanches Neto, então com 35 anos, cometeu uma injustiça histórica. Assumimos a missão de perscrutar a vida do sombrio ermitão de Curitiba. Durante quase 30 dias, foram entrevistadas dezenas de pessoas, mas o pupilo emudeceu. Fiel à amizade de Dalton, revelou quase nada. O vampiro, no entanto, não tolerou as fotografias roubadas e o perfil indiscreto estampados nas páginas de uma gazeta de circulação nacional. Alguém teria que pagar por aquilo. O rapaz tornou-se, para Dalton, um Cristo ou Judas às avessas. A amizade foi rompida definitivamente quando Sanches Neto começou, em 2004, a escrever o romance à clef (com os situações e nomes cifrados) Chá das Cinco com o Vampiro, publicado há dois meses pela editora Objetiva.



Para quem quiser se aventurar a escrever a biografia (não autorizada, obviamente) de Dalton Trevisan e, assim, matar definivamente o vampiro, à luz do sol tímido de Curitiba, o caminho é outro. A estaca certeira está no acervo mantido pela pesquisadora Cassiana Lacerda Carollo, que resgatou novela, críticas, aforismos e sonetos de adolescência renegados pelo autor de A Polaquinha. Professora do curso de pós-graduação da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Cassiana Lacerda pretendia divulgar os textos antigos e ainda ousava propor a criação de uma Casa do Vampiro, para exibir o acervo proibido na rua Emiliano Perneta, onde o contista nasceu. "É importante deixar para as futuras gerações referências históricas sobre o gênio de Dalton Trevisan", alegava. O contista a ameaçou com uma ação judicial.


Cassiana conheceu Dalton quando frequentava, como aluna, a universidade, nos anos 60. Vivia na Lapa, a 60 quilômetros de Curitiba, onde o autor passava férias. Dalton era colega, na Faculdade de Direito da UFPR, de Francisco Lacerda, tio de Cassiana. A jovem começara a se interessar cedo por literatura graças ao crítico Temístocles Linhares, sócio do pai dela, Jair Lacerda Jr. na fábrica de chá-mate da família. Linhares foi um dos primeiros colaboradores da Joaquim, revista dirigida por Dalton Trevisan. Ali, o contista redigiu textos entre abril de 1946 e dezembro de 1948.



Dalton visitava muito a Lapa, quando a Cassiana Lacerda tinha 22 anos. A pesquisadora foi amiga do escritor até o dia em que ousou questionar a suposta traição de Capitu a Bentinho, personagens do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. O escritor carioca é, entre os brasileiros, a maior paixão literária de Dalton Trevisan. "Ele rompeu comigo alegando o que sempre escreveu: se Capitu não traiu Bentinho, Machado se chamaria José de Alencar." Cassiana diz que admira muito a obra de Dalton, mas, "ao contrário de outras de pessoas da inteligência curitibana", não quer "alimentar com ele uma relação de subserviência." Para o crítico literário Wilson Martins, morto em Curitiba em 30 de janeiro passado, aos 89 anos, o resgate dos primeiros textos de Dalton Trevisan fora importante e, sobretudo, surpreendente. "Eu mesmo não sabia das crônicas esportivas", disse Martins, que trabalhou com o contista na década de 40.

Os escritos desprezados pararam nas mãos de Cassiana graças a um descuido do próprio Dalton, que, aos 16 anos, doou a coleção completa dos textos redigidos no jornal Tingüi ao Instituto Neopitagórico, sociedade literária fundada pelo poeta Dario Veloso (1869-1937). Lá estavam, entre outros, os Sonetos Tristes e Visos. O jornalzinho era vendido numa banca da Rua XV, de Jorge dall'Ignna. O Tingüi e, mais tarde, a Joaquim funcionaram na mesma casa, onde Dalton Trevisan nasceu, também sede administrativa da fábrica de cerâmicas e vidros Trevisan, ironicamente na rua Emiliano Perneta. O poeta simbolista Perneta (1866-1921), ícone do beletrismo na cidade, foi a maior vítima post mortem das críticas de Dalton.



O acervo de Cassiana Lacerda é raro. Ela tem, por exemplo, um dos 20 livros da edição especial de Novelas Nada Exemplares (José Olympio, 1954), assinado pelo autor. Primeira obra de Dalton Trevisan de circulação comercial, as Novelas conquistariam os prêmios Jabuti e do Instituto Nacional do Livro, mas foram recebidas com reservas pelo crítico literário Otto Maria Carpeaux, a quem Dalton jamais perdoou. Sempre se referia a Carpeaux como "o gago", em alusão à disfemia de um dos maiores críticos literários do Brasil. Dalton voltaria a conquistar o Jabuti com Cemitério de Elefantes (1964). Ele foi consagrado nacionalmente em 1969, quando com O Senhor Meu Marido ganhou o Concurso Nacional de Contos.



Cassiana Lacerda dispõe de elementos para construir a biografia de Dalton Trevisan, mas ainda não se decidira a fazê-la. Foi dela a descoberta de que, aos 14 anos, Dalton atuou como cronista esportivo em uma revista intitulada O Livro. Em 1939, ainda assinava Dalton Jérson Trevisan e defendia o esporte como "elemento necessário à formação do caráter." Fundista do Atlético Paranaense, sonhava em ser campeão dos 110 metros com barreira. "O Brasil deverá ter seus sábios atletas." No artigo Duas glórias nacionais, demonstra má vontade em relação ao futebol e ao samba, especialmente a Carmem Miranda, pela "supervalorização que distorce a consciência nacional." Com a turma do direito, integrou o time que jogava no estádio do Coritiba. Ele se formou em dezembro de 1947.



Em meio às pesquisas, Cassiana tentou relançar a revista Joaquim. Foram 21 números, que alcançaram repercussão nacional. Contava com a colaboração de Wilson Martins e Temístocles Linhares, além dos ilustradores Poty, Viaro e Renina Katz. Nas páginas da revista - "uma homenagem a todos os Joaquins do Brasil" - Dalton lançou os primeiros livretes, Mistérios de Curitiba (1946) e Sete Anos de Pastor (1947), e publicou traduções de Tchecov - cujos contos comparava em delícia à pitanga e às balas azedinhas -, Tolstoi, Kafka, Joyce, Cervantes, Salinger e Rilke, cuja Carta a um Jovem Poeta costuma presentear aos poucos "novos" com quem simpatiza. A iniciativa de reeditar a Joaquim foi, enfim, proibida pelo contista. "Ele me chamou de necrófila, apesar de eu haver proposto que se retirassem os contos que assinou."

Dalton Trevisan promoveu no Tingüi um concurso de contos que ele mesmo ganhou, com Trapo, a história de um homem submisso. O prêmio: uma ilustração de Guido Viaro. Na época, ainda não reescrevia 12 vezes uma narrativa. "Creio que o fenômeno de reescritura obsessiva começa com Minha Cidade, em 1946", conta Cassiana. "Ele publicou o conto na Joaquim para, em seguida, republicá-l0, com modificações, no Guaíra." Na formatura do colégio Iguaçu, orador da turma, Dalton não pôde proferir o discurso nem publicá-lo no Tingüi , por causa das críticas que fazia ao ensino da época. Cassiana possui ainda reproduções de fotos do contista, menino, ao lado dos irmãos Derson e Hilton Dácio, que também colaboraria no Tingüi. O anunciante mais assíduo do periódico foi a fábrica Trevisan. A família apoiava a carreira do escritor. A professora dispõe também de 14 cordéis que ele lançou, de 1953 a 1964.

Dalton Jérson Trevisan nasceu em 14 de junho de 1925 na rua Aquidabã 80, atual Emiliano Perneta, onde funcionou a fábrica de cerâmicas e vidros do pai, João Trevisan. A família Trevisan teria origem na cidade de Treviso, no norte da Itália. Os primeiros representantes se estabeleceram, em 1888, na colônia Dona Isabel, no Rio Grande do Sul. Aos 15 anos, Dalton escreveu no Tingüi: "A questão foi que nasci...Foi numa madrugada, friorenta e úmida, de um 14 de junho que nasci, e desde já, errado como agora. Em vez de escolher uma noite cálida e poética em que a lua - minha namorada mais inconstante - estivesse a passar sonhadoramente, fui surgir nesta barca de Noé, em uma madruga trêmula e encapuçada. A questão foi que nasci...E, para me vingar desta primeira ironia da sorte, berrei até quase estourar." Na revista, que teve 43 números, Dalton Trevisan foi redator, cronista, repórter e crítico. Assinava com pseudônimos: Faminto, De Alencar, Notlad, D.Nada, Rapaz.



Desde menino, Dalton foi ótimo aluno. Quando prestou exame para o Iguaçu, aos 8 anos, obteve média 92. No curso complementar de direito, no colégio estadual, conquistou graus 99 em literatura e 92 em história da civilização. "Estudei o que achei que devia ter estudado; por isso, sou o que sou. Podia ter dado ladrão. Por enquanto, dei em nada", escreveria em 1943. Aos 14 anos, Dalton começou a colaborar com a revista O Livro, fundada naquela ano de 1939 por Roberto Barone Filho. Escrevia, principalmente, sobre esportes. Em 1940, fundou o Tingüi - "órgão dos ginasistas intelectuais publicado pelo Centro Literário Humberto de Campos." O jornalzinho circulou até 1943, período em que Dalton cursou o Colégio Iguaçu e o pré-jurídico. Nessa época, o Tingüi já era publicado pelo grêmio cultural General Rondon. Aos 16 anos, óculos de sete graus de miopia, frequentava as salas Avenida, Luz e Imperial, que não existem mais. Em literatura, encantava-se com Monteiro Lobato.



O Tingüi parou de circular quando Dalton completou 18 anos e passou no vestibular. Foi nesse jornal que publicou o polêmico artigo Percevejos, pulgas e sapos, um sopapo no beletrismo, sublinhado, mais tarde, pelo irascível Emiliano, o poeta perneta, na Joaquim. O texto causou tanto mal-estar que provocou a saída de um dos diretores da revista, Erasmo Pitoto. Dalton considerava-se integrante da "geração de 20 anos da ilha", de poetas isolados pelos simbolistas e tradicionalistas. Regurgitava aforismos: "O adultério é nojento (principalmente pela parte da mulher). Tem gosto de bagaço de laranja." Com o fim do Tingüi, o contista trabalharia como repórter policial e crítico de cinema no Diário do Paraná.

No escritório da fábrica Trevisan, Dalton fez o escritor e se desfez do consultor jurídico. A tabuleta na porta denunciava a vocação para a esquiva. "Não se faz anúncio/não se assina revista/não há verba/não insista." Com o fim da empresa, o terreno se tornou estacionamento. Em sete anos, ele declinou dos pareceres.

Ano de publicação de Serenata ao Luar, 1945 foi importante para a trajetória de Dalton. Ele venceu um concurso no Paraná com Conto tirado de uma notícia de jornal. Quase morreu em 11 de março, em consequência da explosão de uma caldeira na fábrica. Fraturou o crânio. Um mês no hospital. Costumava dizer que o acidente mudara-lhe até a perspectiva literária.

Em 1948, quando a Joaquim morreu, Dalton comandava as reuniões do Clube de Cinema de Curitiba. Até hoje gosta de filmes de terror, comédias italianas e clássicos de Charles Chaplin, Woody Allen, Fassbinder, Jornada nas Estrelas. Em 1949, colaborou com o Guaíra e viajou seis meses pela Europa, único passeio ao exterior. Em 1951, começou a escrever para a Gazeta do Povo.


Casou-se com Yole Bonato, em 1953. Teve duas filhas, Isabel e Rosane. Yole e Isabel morreram quase na mesma época, em 1997. Dalton passou a viver só na casa da Rua Ubaldino do Amaral. A cachorrinha Fifi também se foi. O escritor tem duas netas: Catchuska, que nasceu em Londres, e Nataska, ambas com pouco mais de 30 anos, filhas de Isabel e Arion Cornelsen. O irmão Hilton Dácio também vive em Curitiba.

Dalton Trevisan cuida dos jardins, ocupa-se de trabalhos manuais. Prefere escrever de manhã, em máquina datilográfica mecânica no escritório do lado de fora da casa. Perto das 10h30, sai pelo portão lateral. Passa pelas livrarias do Chaim e do Elotério, cujo proprietário, Elotério Borrego de Oliveira, tornou-se amigo e confidente. Almoça às 11h30 no restaurante vegetariano All Natura, no centro da cidade. Senta sempre nos fundos. Paga o almoço com tíquetes e segue para o Citibank. De lá vai ao Mercadorama. Na rua XV, passa pela Schaffer para uma coalhada ou um chá com torradas. Na livraria Ghignone, prosa com o José Ghignone. Vai à banca de jornal.

Tímido e hipocondríaco, Dalton sempre zelou pela imagem e o alcance da obra. Em 1953, começou a imprimir contos em cordel., edição limitada a 200 exemplares. Distribuia para críticos, escritores, amigos. Tentava uma editora. Começou a frequentar o ciclo intelectual de São Paulo. Cassiana Lacerda revela que o contista ostentava na parede do escritório o diploma de bacharel em direito e um bilhete de Carlos Drummond de Andrade. "Que delícia uma revista cuja redação é na Rua Emiliano Perneta 476 e que promete publicar, em seu segundo número, um artigo sob o título Emiliano, o poeta medíocre". A pesquisadora diz que Dalton levava para a biblioteca pública recortes com reportagens sobre ele e obra publicadas no mundo. O contista defendeu a publicação de teses sobre o próprio trabalho, como Do Vampiro ao Cafajeste, de Berta Waldman, ou Dalton Trevisan: a Trajetória de um Autor que se revê, de Rosse Bernardt.

Dalton Jérson nunca gostou muito de música, à exceção dos antigos e populares como Orlando Silva e Vicente Celestino. Detesta poluição sonora e visual, comida americanizada, shopping center. Gostaria muito de voltar à Europa. Adora comédia, bangue-bangue, macarrão, peixe e vinho. Quando lá estivemos, preparava um conto, Pico na Veia. Domina a cena literária sem influenciar diretamente a produção local. Despreza tanto a obra de Emiliano Perneta quanto a de Paulo Leminski, poetas curitibanos, o último de expressão nacional. Fala e lê inglês, francês, espanhol. Esqueceu o alemão.



Bastante conhecido em Curitiba, há quem duvide de sua existência na cidade, por onde caminha diariamente de jeans, boné, jaqueta e par de tênis surrado. Odeia barulho, mas mora numa esquina ruidosa, na Rua Ubaldino do Amaral, no bairro Alto da Glória, na casa acidentetada onde ninguém ousa bater.


Cláudio Renato


segunda-feira, 10 de maio de 2010

Dalton Trevisan, um vampiro à luz do sol

Dalton Trevisan, pelas ruas de Curitiba, em foto de Marcelo Ridini, Agência Folha
Uma das raras fotos do contista


Dalton Trevisan observa o minúsculo doutor Sampaio, terninho e bengalinha, que deixa a confeitaria Schaffer. "Olha o pezinho, olha a mãozinha, vamos segui-lo!", ordena ao séquito. À noite, vai ter com cafetinas, prostitutas, malandros e velhinhos abandonados. "Dalton divertia-se com cárie, caspa, chulé e usava o material nos contos", diz Carlos Alberto Pessoa, que conheceu e conviveu com o escritor nas andanças por Curitiba. O maior contista do Brasil perseguia, sarcasticamente, o tal doutor Sampaio, mas odeia que o sigam. Aos 85 anos incompletos, sustenta a própria lenda. Há pelo menos seis décadas, foge dos fotógrafos como Drácula, da cruz. Nega entrevistas. Cultiva o mistério.


Xingar em escala crescente (ou decrescente) é uma característica de Dalton Trevisan. O desafeto começa como "barata de fogão", passa a "barata de fogão com caspa na sobrancelha" até ser rebaixado a "barata de fogão leprosa com caspa na sobrancelha". Regozija-se na prospecção de histórias. Na última mesa da Schaffer, é visto normalmente com o advogado e ex-integralista Luiz Gastão Franco de Carvalho ou um amigo "informante." Pede coalhada, torrada e chá. Dalton, fama de avarento, paga ao amigo um moranguinho com nata, a título de "direito autoral."


Pessoa, o ex-informante, conta que Dalton Trevisan considerava Grande Sertão: Veredas ingenuidade de Guimarães Rosa. "Como os vaqueiros não perceberiam que estavam diante de uma mulher?" Tinha reservas até ao conto O Alienista, de Machado de Assis, por achá-lo muito longo. Em cinema, diz o "garganta profunda", adorava Fellini, Visconti e Kubrick.
Dos amigos, Dalton exige fidelidade absoluta, segundo o discreto Eleotério Borrego, livreiro e confidente. Na livraria, o contista tem uma caixa de correspondências. "Quando se aproxima um estranho, pede para apresentá-lo como João", conta o jornalista e editor Fábio Campana.


Uma das principais fontes de Dalton foi Ali Chaim, que, na década de 70, tinha um programa policial na rádio. Chaim - "único cidadão comum com título de delegado honorário do Paraná" - entrevistava ladrão, estuprador, marido traído. "Ele mandava contar tudo, queria saber do fel da história, curra, sacanagem; às vezes ia à delegacia verificar o inquérito", diz o radialista. Dalton gostava de rodar Curitiba de madrugada no fusquinha de Chaim. "Fogueteado, contava um monte de histórias babilônicas."


Como o conde demoníaco da Transilvânia, Dalton tem seus Renfields, seguidores fiéis. "As pessoas ficam fascinadas diante do vampiro e tornam-se doadoras literárias", conta o jornalista Luiz Geraldo Mazza, amigo da juventude. O simpático Estêvão A.S mimetiza os tiques do mestre. Até para marcar entrevista preferia evitar a lotérica onde trabalhava. "Vamos ao café da praça Zacharias, e nada de fotos. Já não gostava de fotografias antes de conhecer o Dalton, imagina agora!" Estevão conta que conheceu o escritor quando precisou gravar um vídeo, Que fim levou o Vampiro de Curitiba? Ele faz favores profissionais e contatos para Dalton no mundo exterior.

O escritor Miguel Sanchez Neto é um dos que mais conversam com Dalton, mas garante que não pretende escrever a biografia do contista. "Não traio a amizade." Sanchez Neto revela apenas que Dalton considera Cristo o grande personagem do Ocidente e gosta muito dos textos de Ivan Lessa, Paulo Francis e, principalmente, das obras de Machado, Rubem Braga e Pedro Nava. O escritor Manoel Carlos Karam conta: o contista odeia ser fotografado por considerar que "a foto mata o espião."


Dalton costumava ir ao Rio para visitar Rubem Braga, morto em 1990. Gostaria de ter convivido mais com o mestre. Crítico feroz de Curitiba, diz que em cada esquina da cidade pode haver um Raskolnikof, o assassino protagonista de Crime e Castigo, obra-prima de Dostoiévski. Dalton até já teve um fusquinha bege, mas gosta mesmo de andar a pé. Frequentador da Boca Maldita na década de 60, preferia as discussões literárias às políticas. Jamais aceitaria uma indicação para a Academia Brasileira de Letras, embora gostasse muito de um ou outro imortal. Os ex-amigos dizem que Dalton é poroso aos elogios, detesta crítica, tem horror a discussões. Foi grande amigo do artista plástico Poty Lazarotto, mas andaram brigados. Reconciliaram antes da morte de Poty - em maio de 1998. Gosta muito de Constantino Viaro, filho do amigo Guido e ex-diretor do Teatro Guaíra, bem como de Miguel Sanchez Neto, hoje com 44 anos.


Na década de 70, Dalton publicou uma crítica na Gazeta do Povo, com as iniciais J.P., intitulada Quem tem medo do vampiro?, em que desbancava o próprio trabalho: "Quem leu um conto, já viu todos (...) Seu pobre vocabulário não tem mais de oitenta palavras." Um trecho diz: "Um talento não se lhe pode negar - o da promoção delirante. Com falsa modéstia, não quer retrato no jornal - e o jornal sempre a publicá-lo. Nunca deu entrevistas - e quantas já foram divulgadas com foto e tudo? Ora, negar o retrato ao jornal não é uma forma de vaidade, a outra face diabólica do cabotino?"


Talvez menos de 15 pessoas saibam o número do telefone da casa acinzentada de Dalton Trevisan. "Quem precisa falar, deve obedecer a códigos pessoais e intransferíveis", conta um dos privilegiados conhecedores da numeração. Cada interlocutor deve obedecer a determinados números de toques, a tantos minutos de espera cronometrada, a senhas predefinidas. É Dalton quem normalmente liga, quando o assunto lhe interessa.


Conta-se que, certa vez, chovia aos cântaros em Curitiba, e o cineasta Joaquim Pedro de Andrade ousou bater no portão da casa, que nem fresta para correspondência tem. Queria conversar sobre o filme Guerra Conjugal, baseado em um conto do curitibano. A porta se abriu; o portão, não. O escritor teria mandado Joaquim Pedro esperar numa esquina determinada em tantos minutos. Quem conhece o escritor, garante que a história é verdadeira. Perto da casa, há uma igreja que inspirou em Dalton Trevisan o anátema Lamentações da Rua Ubaldino. O texto amaldiçoa os Irmãos Cenobitas por causa do barulho das guitarras elétricas e dos sermões. Também perto, há uma sauna masculina, da qual andaram jogando bilhetinhos provocadores para dentro da casa do contista, que jamais acusou recebimento.


Na revista Joaquim, Dalton escreveu certa vez: "Notícia policial, frase no ar, bula de remédio, pequeno anúncio, bilhete suicida, fantasma no sótão, confidência de amigos, leitura de clássicos etc. O que não me contam escuto atrás da porta." É um aspecto curioso da personalidade do escritor. Ele preza a própria intimidade, mas não poupa a alheia, ainda que a ela acrescente uma abordagem ficcional. Muitas das histórias contadas por conhecidos tornaram-se narrativas literárias. Dalton adora quando há uísque em roda de amigos. Ele não bebe, mas os outros se soltam. "Ele quer saber de todos os pormenores, os detalhes sórdidos", conta Carlos Alberto "Nego" Pessoa, personagem involuntário do contro Pássaro de cinco asas (1975).


Verbete na Enciclopédia dos Vampiros, da editora americana Makron Books, Dalton Trevisan há anos mantém em Curitiba asseclas que se renovam. Para apagar os próprios rastros, pedia aos amigos - como os jornalistas Fábio Campana, "Nego" Pessoa e o escritor Jorge Snege - que "invadissem" as bibliotecas públicas e os sebos, onde mantinha informantes para saber quando surgia qualquer obra por ele enjeitada. Eles deveriam subtrair da prateleira as provas dos "crimes" juvenis de Trevisan e entregá-las para o autor destruí-las. Em troca, oferecia novas edições autografadas. Ou um dedo de prosa em que ele ouvia, o outro falava.


Snege registou na autobiografia Como eu se fiz por si mesmo (Travessa dos Editores, 1994) o episódio em que Dalton ofereceu a Campana, na época, os seus três últimos livros autografados, em troca de um único exemplar de Sonata ao Luar (obra de 1945 renegada pelo autor). O jornalista deveria surrupiar o livro da biblioteca pública. Campana cumpriu a missão, segundo Snege, graças a um capote sob o qual escondeu o exemplar.


Dalton Trevisan tem obsessão em revisar os contos e apagar o passado literário e biográfico. Quando presenteia um velho amigo com a nova edição de um livro, faz questão que lhe devolva o exemplar da tiragem anterior. Além da novela Sonata ao Luar, com ilustrações de Guido Viaro, o escritor rejeitou sonetos, ideias soltas, críticas e crônicas esportivas publicadas nos periódicos O Livro (1939) e Tingui (1940). Os textos de Dalton são reescritos (e reduzidos) quantas vezes julga necessário. Em cada edição, narrativas mais concisas, os mesmos personagens, as mesmas situações em uma Curitiba que já não existe mais. Com o tempo, os contos se reduzem a haicais, como em 111 Ais (editora L&PM) e na edição limitada de 71 contos fragmentários distribuida para amigos.


O ex-secretário estadual de Cultura do Paraná Luiz Alberto Soares elogia a coragem do contista. "Ele quer mais é fugir dos chatos que o procuram para uma orelha de livro, um prefácio, coisas que ele nunca fez." Soares garante que o escritor é afável, mas contido. De Jorge Amado, só considera A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água. O crítico Wilson Martins, amigo de Dalton da década de 40 até os anos 70, foi dos primeiros a lhe elogiar o trabalho na revista Joaquim. Romperam. Morto no começo deste ano, Martins acusava o contista curitibano de repetitivo. "E não vamos brincar de fazer as pazes."


Quando, na livraria do Chaim, Dalton folheou a biografia de Vinícius de Moraes, O Poeta da Paixão, do jornalista e escritor José Castello, ficou apavorado. Para começar, não gostou de uma foto. Telefonou para todos os amigos para perguntar o que Castello fazia na cidade. Quando soube que o jornalista se mudara para Curitiba definitivamente, ficou aflito. Castello garante que não quer saber mais de biografia. Cinco anos na capital do Paraná, não tinha idéia de como Dalton era fisicamente.


O escritor Wilson Bueno dizia achar curioso o conceito de morte de Dalton. Ele afirmava existir três experiências de morte: a natural, a de Ivan Illich, de Tolstói, e a anunciada, de Gabriel García Márquez. A biografia seria a quarta forma de um vampiro morrer.


No próximo capítulo, informações preciososas para quem um dia ousar escrever a biografia (não autorizada, obviamente) de Dalton Jérson Trevisan. ´


Cláudio Renato

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Conversa de botequim na Vila de Noel

No Capelinha, sob os auspicios de Noel Rosa: Aluísio Machado, Marcos Uchôa, Martinho da Vila, Sérgio Cabral e Haroldo Costa
Com Martinho da Vila: cabeça feita e corpo fechado

Havia, no começo do século passado, um botequim em Vila Isabel conhecido como Ponto dos Cem Réis, quase na esquina do Boulevard (avenida 28 de setembro) com a rua Souza Franco, onde Noel Rosa compôs muitas de suas canções geniais. Assim se chamava porque, naquele lugar, o bonde fazia a troca de seção e se cobrava nova passagem de quem vinha do centro da cidade e prosseguia a viagem até o Engenho Novo. Quando o carro elétrico ali chegava, em frente ao café mais frequentado por Noel e pelos funcionários da fábrica Confiança de tecidos, o motorneiro avisava aos berros: "Ponto das passagens de cem réis!" Em 1938, um ano após a morte do feiticeiro da Vila, o café foi rebatizado e passou a se chamar Capelinha. Existe até hoje. E foi exatamente ali, na penúltima quarta-feira antes do carnaval, que se testemunhou um encontro histórico.


Martinho da Vila, sempre madrugador, foi um dos primeiros a chegar. Ele presidiria uma mesa-redonda informal sobre os sambas de enredo, entre tulipas de chope, bolinhos de bacalhau, pastéizinhos de carne e empadinhas de camarão. Acompanhado pela mulher, Cléo Ferreira, 33 anos mais jovem, Martinho, de 71, parecia uma criança:


- Olha aí, desbanquei a belíssima Renata Vasconcellos, e fui a capa da revista da Folha de S.Paulo - brincava com um exemplar da publicação, cuja capa trazia uma foto do sambista sem camisa, braços cruzados nos ombros e o título "Corpo fechado". Na mesma edição, a revista publicara, em páginas internas, uma entrevista e um ensaio fotográfico com a jornalista e apresentadora da TV Globo.


No Capelinha,com Martinho da Vila, reuniram-se Zuzuca (Salgueiro), Zé Catimba (Imperatriz Leopoldinense), Aluísio Machado (Império Serrano), Paulinho Mocidade, David Correia (Portela e União da Ilha), Sérgio Cabral, Haroldo Costa e mais um punhado de bambas para relembrarem os sambas de enredo que marcaram época. O documentário foi produzido e gravado pela equipe do Bom Dia Brasil, comandada pelos editores Miguel Athayde, Fátima Baptista, Gustavo Gomes e pelo repórter Marcos Uchoa, uma turma abusada que, há dois anos, surpreendeu o país, ao levar para o alto do Pão de Açúcar uma centena de sambistas que lá fizeram o Carnaval do Céu, considerado pelos jornalistas Sérgio Cabral e Haroldo Costa "um marco na história da televisão brasileira."


Logo no começo do encontro, cada sambista deu a "carteirada", puxando o samba que o consagrara. Martinho da Vila sugeriu, para início de conversa, que se cantasse o "maior de todos os sambas de enredo", Heróis da Liberdade, do Império Serrano (1969). Lembramos, em silêncio, de um texto do professor Luís Antônio Simas, segundo o qual nos próximos mil anos três acontecimentos farão o ano de 1969 ser lembrado: a chegada do homem à Lua, o milésimo gol de Pelé e o samba do Império, assinado por Silas de Oliveira, Mano Décio da Viola e Manoel Ferreira. Falou-se e se cantou muito de Silas, que ninguém se atreve a duvidar ter sido maior compositor do gênero em todos os tempos, autor de outras obras-primas, sempre pela verde e branca de Madureira, como Os Cinco Bailes da História do Rio (1965, com Ivone Lara e Bacalhau) e Aquarela Brasileira (1964).




Quando Zuzuca puxou a Festa para um Rei Negro - "olelê/olalá/pega no ganzê/pega no ganzá" - o salgueirense Haroldo Costa, sempre elegante, lembrou, que, naquele ano de 1971, o Salgueiro fez um desfile lamentável e aquele samba garantiu a vitória no carnaval. "É uma prova de como os sambas de enredo podem ser fundamentais para as conquistas de uma escola."

O clima de descontração era tamanho que, em determinado momento, se esqueceram das cinco câmeras, monitores, cabos, trilhos e operadores da emissora de TV. O bate-papo girava em torno da importância dos sambas de enredo no sentido de se nacionalizar o carnaval do Rio, quando um pé-inchado que conseguira penetrar no ambiente gritou:

- É isso aí, Sérgio Cabraaaal!!!!!!.


O jornalista não perdeu o prumo, muito menos o bom humor:


- Silêeencio no estúdiooooo!!!!!


A cantoria varou noite adentro até que uma multidão que se concentrava em frente ao Capelinha começou a gritar: "Martinho! Martinho! Martinho!"


Era a Vila Isabel que já se perfilava para o ensaio na 28 de Setembro. Martinho e os demais sambistas deixaram o Capelinha, atravessaram a avenida e, ovacionados pelo o povo, subiram na caminhonete do Feijão para se juntaram ao Tinga, intérprete oficial da escola. Do alto, puderam ver as bandeiras azuis e brancas desfraldadas nas sacadas dos apartamentos e nas calçadas musicais. A bateria do mestre Átila dava o sinal. E todos cantaram à exaustão o samba Presença de Noel, a obra-prima que Martinho da Vila fez em homenagem ao centenário do feiticeiro.

Calor infernal, alegria avassaladora. Os rostos felizes encharcavam-se de suor e lágrimas.


Na porta de casa, na Praça Barão de Drumond (Praça Sete, para os íntimos), ainda ouvimos um casal com a camisa do Bloco Quizomba, quase sem voz, a cantar o samba de Martinho. E a moça se aproximou para perguntar:


- Quando vai ao ar?


- Sexta-feira, antes do carnaval, às 7h15.


- Que bom! E vamos nos encontrar aqui, na Quarta-Feira de Cinzas, para a festa da vitória!


Que Oxalá os ouça e eleve ainda mais a autoestima do povo de Noel!


Cláudio Renato

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Quem não rezou a novena de dona Canô?

Dona Canô, entre Caetano e Maria Bethânia
Dona Canô, aniversário de 102 anos em Santo Amaro

"Lembro com muito gosto o modo como ela se referia a ele. Pelo menos ela o fez uma vez e isso ficou marcado muito fundo, dizendo: 'Caetano, venha ver o preto que você gosta'. Isso de dizer o preto, sorrindo ternamente como ela o fazia, o fez, tinha, teve, tem, um sabor esquisito, que intensificava o encanto da arte e da personalidade do moço no vídeo. Era como isso se somasse àquilo que eu via e ouvia, uma outra graça, ou como se a confirmação da realidade daquela pessoa, dando-se assim na forma de uma bênção, adensasse sua beleza. Eu sentia a alegria por Gil existir, por ele ser preto, por ele ser ele, e por minha mãe saudar tudo isso de forma tão direta e tão transcendente. Era evidentemente um grande acontecimento a aparição dessa pessoa, e minha mãe festejava comigo a descoberta."


Assim, Caetano Velloso brinda, no livro de memórias Verdades Tropicais, publicado em 1997, a sabedoria secular da mãe, que o acalentou ao som do rádio e o aproximou, ainda mais, de Gilberto Gil. "O Caetano era terrível, aprendia tudo, imitava e cantava igualzinho ao Francisco Alves, ao Vicente Celestino, ao Nélson Gonçalves, uma coisa impressionante", diz dona Canô, para quem Gil "é muito íntimo, um filho, um irmão que inspirou Caetano demais." Se Gilberto Gil tem como principal influência familiar o pai, o médico José Gil Moreira, que se intitulava o autêntico tropicalista, porque lidava com doenças tropicais, é possível dizer que Caetano Velloso herdou da mãe o influxo telúrico, presente nas mais belas canções de antes, durante e depois do movimento tropicalista.

É o tirocínio político de dona Canô que impressiona os visitantes de Santo Amaro, porque, centenária, ela luta pelas causas sociais no lugar onde vive. Santo Amaro conta com 51 escolas - uma para excepcionais - e uma faculdade de letras vernáculas da Universidade de Feura de Santana. A cidade a homenageou com um teatro - o Dona Canô. E ela, pessoalmente, se empenhou em instalar no lugar uma biblioteca ambulante.

Aos visitantes, Canô reclama das mudanças na cidade e do desemprego. "As usinas de açúcar e a cooperativa de álcool foram fechadas pelo Instituto do Açúcar e do Álcool, causando muito prejuízo", lamenta. "Também a fábrica Tarzan, de vergalhões de ferro, foi fechada e o povo não tem mais onde trabalhar. Só restou uma fábrica de papel toalha, a Bacraft."

Uma das mais longas e intensas lutas de dona Canô é pela despoluição do rio Subaé, que depende da conclusão de obras de saneamento, motivo pelo qual a cidade está ainda esburacada. A companhia de chumbo que poluía o rio foi fechada há anos, mas deixou rastro letal. "O Subaé ainda está poluído porque o chumbo entranha nas pedras."

No complexo hidrográfico de Santo Amaro, o Subaé e o Sergimirim são os rios principais. Encravada no fundo da Baía de Todos os Santos, Santo Amaro, no vale do Subaé, tem como ponto culminante o Alto do Camelo (254 metros de altitude), belíssimas cachoeiras, como as de Vitória, Urubu, Zé Regadas e Nanã, e as praias de Itapema e Baía Pesca.

Dona Canô não esconde o orgulho pela Igreja Matriz de Nossa Senhora da Purificação, a cerca de cem metros de casa. Na fachada da igreja, que completa 310 anos em 18 de outubro, há uma placa de agradecimento a ela pelas reformas. "Minha igreja é muito bonita e diferente, porque, ao contrário das outras, muito escuras, a minha é alegre e clara." A igreja de Nossa Senhora dos Humildes, fundada pelo padre Ignácio Teixeira dos Santos em 1793, às margens do Subaé, abriga o museu dos humildes, de arte sacra. É recomendada por dona Canô. "Lá, que era um convento, existe uma imagem de Nossa Senhora, a Divina Pastora, tão diminuta, com anjinhos, patinhos...um trabalho minucioso feito pelas freiras."

De braços com dona Canô, avança-se pelos tortuosos caminhos barrocos de Santo Amaro: a cadeia e o Paço Municipal (1727), a Santa Casa de Misericórdia (1778), as ruínas da Igreja do Rosário (do começo do século XVI), a Igreja do Nosso Senhor do Santo Amaro (1667), a Igreja Nossa Senhora do Rosário (1784), o Solar Paraíso e o Palácio do Lacerda (do século XVIII), a Igreja do Amparo (1818), a de Nosso Senhor do Bonfim (1870), o chafariz da praça (1872), além de outras construções preservadas dos séculos XVIII e XIX, como o Solar Araújo Pinho.

Sob a sombrinha de Canô, a conversa, como não poderia deixar de ser, desemboca em música popular. E ela vai logo dizendo que o maior de todos os compositores vivos é Chico Buarque de Hollanda. "Ele e Marieta, quando ainda eram casados, prometeram me visitar em Santo Amaro e vou esperar sempre." Ela entende como é difícil a vida dos artistas. "Caetano, sempre que vem a Salvador, normalmente no verão, separa um dia para almoçar comigo." Ela reclama do excesso de compromissos do filho. "Quando vai para Europa, ele fica 50 dias e acho que tem tempo para descansar, mas, aqui, sequer tem o direito de conversar." Nicinha sempre fica mais tempo quando vai a Santo Amaro. E Rodrigo separou até um quarto na casa para a mãe. "Já disse a eles que minha vida é aqui; não aguento ficar longe uma semana."

Dona Canô canta no coral Miguel Lima, com outras 35 pessoas. "Sempre adorei música, desde menina." Ela reconhece: "não tenho mais a voz da juventude, mas sempre canto em missas solenes, aniversários, ocasiões especiais." Ela é apaixonada pelas canções de Dorival Caymmi. "Conheci bem a Stella, mulher dele, e os filhos, Nana e Danilo, sempre tiveram muita coisa comigo."

Foi no colo de Canô, ouvindo rádio, que os meninos aprenderam músicas antigas. "Sempre tive bom gosto e compro minhas velharias na AKDiscos, em Salvador". Carinhosamente, ela chama de velharia Luiz Gonzaga, Vicente Celestino, Francisco Alves, Nélson Gonçalves, Renato Mussi e Catulo da Paixão Cearense, além dos mais "recentes" Tom Jobim e Vinícius de Moraes. "Acho esse negócio de axé, pagode, tudo um horror", reage. "Nas festas, só falta eu ficar surda com esse barulho. Deus que me perdoe!"

Por mais que tente manter distanciamento em relação aos filhos, dona Canô deixa escapar a ponta de corujice. "Dia desses, fui ao banco e o gerente comentou comigo que Ciúme, do Caetano, é uma música profunda." Ela reconhece, no entanto, que nem tudo do filho é obra-prima. "Tem muita coisa dele que quebra um pouco, não vou negar, mas os discos Prenda Minha e Fina Estampa são lindos." Canô cita a canção Cajá, do LP Muito, como uma das que não gosta. "Tem outra música que outro dia estava ouvindo e não reconheci o Caetano." Judiciosa, afirma. "Meu filho faz muita coisa boa, mas não pode ser perfeito.

Dona Canô diz ter um carinho especial por Milton Nascimento. "Já me visitou aqui, um doce de rapaz, um cantor extraordinário, que tem muita coisa comigo." Ela esteve na Europa três vezes e se encantou com Roma, mas garante que não gosta de sair de Santo Amaro nem para ir às cidades vizinhas. Chegou a morar com Bethânia no Rio por quatro meses. Gosta de Salvador e de São Paulo, onde mora o filho Roberto, o Bob, mas como esquecer a doce Santo Amaro, um elixir da longevidade, onde Canô é nome de teatro, bloco e timinho de futebol? Não há quem lhe ignore o endereço e o licor de jenipapo. Não há quem não ore por ela. E quem ali não rezou a novena de dona Canô?

Cláudio Renato

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

A rainha-mãe do Recôncavo - Capítulo 1

Quem não rezou a novena de dona Canô?
A casa em Santo Amaro
A casa azul e branca de varanda estreita, no número 179 da rua Viana Bandeira, perto da praça central de Santo Amaro da Purificação, guarda uma preciosidade do Recôncavo Baiano. Ali vive Claudionor Viana Teles Velloso, 103 anos incompletos. Ela nasceu em 16 de setembro de 1907. No portão da casa, um dos 26 marcos de interesse turístico no guia municipal, é a própria dona Canô quem nos recebe. E a todos os visitantes brasileiros e estrangeiros que lá batem palmas: turistas ávidos em conhecer a riquíssima cultura da região; representantes de associações de terceira idade; pesquisadores, jornalistas, estudantes e estudiosos da música popular interessados na biografia dos mais famosos filhos da anciã, Maria Bethânia e Caetano Velloso. "Vem gente de São Paulo, do Rio, de Salvador, da América, de Portugal...", enumera. "Eu não sou nada, como posso deixar de atender as pessoas que vêm aqui para conhecer a cidade, saber da minha saúde?"


Dona Canô, a voz canora, sombrinha em punho, gosta de passear de braços dados com os visitantes para contar histórias de Santo Amaro e do Recôncavo, berço do samba de roda e do maculelê, de onde ela só arreda os pés em circunstâncias muito especiais. Na rua, velhos, moços e crianças a reverenciam como autoridade máxima. A mais recente das intermináveis polêmicas provocadas por Caetano, o enfant terrible sexagenário de dona Canô, serviu ao menos para provar que a última palavra, no clã Teles Velloso, é mesmo a dela.


Em 2009, ao justificar o apoio à candidatura presidencial de Marina Silva, Caetano Velloso desancou o presidente da República. "Não posso deixar de votar na Marina. É por demais forte, simbolicamente, para me abalar. Marina é Lula e Obama ao mesmo tempo. É meio preta, é cabocla, é inteligente como o Obama, não é analfabeta como o Lula, que não sabe falar, é cafona, grosseiro." Dona Canô corou de vergonha e imediatamente desautorizou o filho. "Lula não merece isso, não. Quero muito bem a ele. Foi uma ofensa sem necessidade. Caetano não tinha que dizer aquilo. Vota em Lula se quiser, não precisa ofender nem procurar confusão.", desculpou-se. Quem encerrou o assunto foi o presidente, ao telefonar pessoalmente para Santo Amaro. "Não fique chateada, porque gosto muito da senhora e do Caetano também. Está tudo bem, essas coisas acontecem."

Corpo ágil, metro e meio de altura, dona Canô comanda sutilmente a vida de Santo Amaro com beatitude, paciência, dignidade e devoção. "Nasci aqui, graças a Deus, e nunca quis sair; só deixaria Santo Amaro em caso de extrema necessidade", diz a viúva de José Teles Velloso, o Seu Zezinho, funcionário público dos Correios, morto em 13 de dezembro de 1983, oito filhos, dez netos e seis bisnetos. "Na infância, vivia em outra casa; comprei esta já velha, depois que os meninos foram estudar em Salvador."


Pobre de quem imagina que dona Canô, em Santo Amaro, é "apenas" mãe de Caetano Velloso e Maria Bethânia. Para o povo santamarense, o compositor e a cantora é que deram muita sorte de nascer da união de Canô e Zezinho. Pela ordem de nascimento os filhos de Dona Canô são Clara Maria, Maria Isabel (a poetisa Mabel Velloso), Rodrigo Antônio, Roberto José, Caetano Emanuel, Maria Bethânia, Irene e Nicinha, as duas últimas de criação. Normalmente, ela só consegue reunir a família no dia do próprio aniversário ou na festa de Nossa Senhora da Purificação, celebrada há mais de 200 anos.


Dona Canô diz que mora "praticamente só", o que "deixa os meninos preocupados, porque vivo com os empregados." É exagero. Dona Canô mora com os 70 mil habitantes de Santo Amaro, distribuidos em 524 quilômetros quadrados, com dois distritos (Acupe e Oliveira dos Campinhos)e dois povoados (Pedras e São Brás). O povo tem por ela uma veneração que só vendo! Quando se refere a algum vizinho ou conhecido muito chegado, Dona Canô tem uma maneira inconfundível de dizer "fulano tem muita coisa comigo."


A 86 quilômetros de Salvador, a cidade de Santo Amaro da Purificação é, culturalmente, uma das mais importantes do Brasil. Ali, floresceu o maculelê, dança de confronto com bastões consolidada, no século passado, pelo saudoso Popó, operário dos trilhos urbanos. O maculelê é uma dança de canavial, em que os negros terçavam cepos de cana de açúcar para extravazar o ódio contra os feitores. A ira era sublinhada pelo canto dos escravos em dialeto africano. "O maculelê é manifestação típica de Santo Amaro e até hoje é dançado nas escolas, na festa de 2 de Julho (Independência da Bahia) e representada até no exterior", conta dona Canô. Ela aconselha a quem quiser saber mais sobre o maculelê a leitura da obra do poeta Plínio de Almeida.


"Aqui também tem a capoeira", ressalta dona Canô, que lembra de, na infância, ter assistido às rodas dos capoeiristas Besouro Cordão de Ouro e Doze Homens. "Menininha, via esses homens jogando capoeira; o Besouro, muito bravo, acabou assassinado." Outra tradição - em Santo Amaro e na vizinha Cachoeira - é o candomblé, na festa de 13 de maio, o Bembé do Mercado. O samba de roda nasceu no Recôncavo. "É uma dança formidável", atesta Canô. "O que se toca hoje por aí não pode sequer se chamado de samba", critica. "O meu neto, J. Velloso, organiza registros e gravações de samba de roda com todo o pessoal de Santo Amaro". Ela destaca, da terra, a recém-falecida Edith do Prato e o grupo Sambamania. "O ritmo de hoje é muito rápido, e samba tem que ser miudinho", ensina. Canô sempre participou das festas de São João, mas admite que, de uns anos para cá, o ânimo não é mais o mesmo. "Digo para as pessoas que não saio de casa por causa da friagem, mas a verdade é que as danças de quadrilha hoje são horríveis, muito ligeiras", segue a senhora orgulhosa dos domínios.

Os primeiros habitantes de Santo Amaro surgiram em 1557, às margens do rio Taripe, em terras que faziam parte da sesmaria doada por Mém de Sá a Fernão Rodrigues Castelo Branco. Na sesmaria, Mém de Sá erigiu, em 1573, o engenho real de Seregipe do Conde, cujas ruínas lá estão. Houve conflitos entre os primeiros habitantes (os tupinambás) e os colonizadores: um padre jesuíta foi assassinado em plena capela. A Igreja Católica interditou o povoado, que, em 1591, se tornou curato.


Em 5 de janeiro de 1527, Santo Amaro tornou-se vila. Em 13 de março de 1822, foi elevada à categoria de cidade. Com a ata da vereação de 14 de junho de 1822, foi oa primeira cidade a apoiar oficialmente a independência do Brasil. O documento foi aprovado no Sobrado do Biju, construído em 1804, onde nasceu o Barão do Sergy. Os santamarenses tiveram participação na Revolta da Sabinada (1837), na Guerra do Paraguai (1865), comandados pelo Barão de Sergy e, antes, na Conjuração dos Alfaiates (1798), chefiada por Manoel Faustino dos Santos Lira.


Cláudio Renato

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

O compositor do fim do mundo

Lupicínio, a lenda dos cabarés
Homenagem da torcida do Grêmio ao autor do hino oficial
Que poeta é Lupicínio Rodrigues!, exclamaria Jorge Luis Borges, porque, como no tango, só os mortos vivem nas palavras e nas canções do compositor gaúcho. O negro elegante do extremo sul do Brasil jamais deixou de cantar em cabarés. Rasgava os corações com voz delicada, versos magoados, melodramas exagerados. O jornalista Mário Marona, também dos pampas, está cercado de razão quando diz que Lupicínio é o maior fazedor de tangos do Brasil. É o intérprete por excelência dos bêbados, dos traídos, dos fracassados, dos mortos-vivos, dos abandonados, dos brasileiros sedentos de vingança e perdão. "Lupicínio era dono de um bar num casarão de madeira na beira do Rio Guaíba", conta Marona. "Criança, passava pela frente, de ônibus, e olhava fascinado. Dizem que era um puteiro frequentado pela boemia portoalegrense. Sempre que passávamos, meu pai contava alguma história. Acho que ele era habitué."


Lupicínio Rodrigues desconhecia teoria musical, não tocava qualquer instrumento e tamborilava o ritmo das canções em caixinhas de fósforos. Compunha as melodias de amor traído assoviando, para que o povo também, pelo assovio, as eternizasse. E o assovio é a herança maior que um compositor nos pode deixar, já assinalava o dramaturgo Nélson Rodrigues, ao brindar A Banda, primeiro sucesso nacional de Chico Buarque de Hollanda, em 1966.


Quando os Azes do Samba (Francisco Alves, Mário Reis, Peri Cunha, Nonô e Noel Rosa) visitaram Porto Alegre, em 1932, puderam conhecer de perto e no nascedouro o talento de Lupicínio, que, com apenas 17 anos, se apresentava nos lupanares da cidade. Noel profetizou: "O garoto é bom, vai longe". Emoção maior para Lupicínio foi conhecer Mário Reis, a quem, cantando, procurava imitar os registros macios. Aos poucos, as músicas de Lupicínio viajariam clandestinamente pelo Brasil. Era levada de navio para o Rio de Janeiro pelos marinheiros do Lloyd e da Costeira, frequentadores das zonas de baixo meretrício, os cabarés da praça Mauá.


No assovio e na caixinha, Lupicínio fez perto de 600 canções, das quais 150 ficaram registradas, entre outras, nas vozes de Orlando Silva, Francisco Alves, Cyro Monteiro, Linda Batista, Dalva de Oliveira, Elza Soares, Jamelão e dele próprio. Nervos de Aço, Felicidade (ambas gravadas pela primeira vez em 1947), Esses Moços (1948) e Vingança (1951) estão entre os maiores clássicos do cancioneiro nacional e os mais estrondosos sucessos de consequencias incontroláveis. Ao ponto de uma onda de suicídios ter se espalhado pelo país, quando Linda Batista gravou Vingança - comoção comparável à provocada por Orson Welles, em outubro de 1938, quando o jovem cenarista propôs à Rádio CBS a adaptação radiofônica, sem aviso prévio, de A Guerra dos Mundos, de H.G. Wells. Muitos americanos se mataram imaginando que de fato extraterrestres atacavam a Terra.


Lupicinio Rodrigues Filho conta que o pai teve canções gravadas na Espanha, na Bélgica, na França, em Portugal, no Japão, nos Estados Unidos, na Venezuela e em mais uma dezena de países, mas, provavelmente, a composição dele mais executada seja o hino oficial do Grêmio Portoalegrense. Em uma certa tarde de 1953, ano em que o clube completava 50 anos, Lupi e um grupo de amigos bebiam em um tradicional bar da Cidade Baixa. Preparava-se para assistir a mais uma peleja do "mortal tricolor" no Estádio do Timbaúva. Momentos antes da partida, foi informado que os bondes haviam parado. Greve dos motorneiros. Lupi sacou a caixa de fósforos, começou a assoviar e escreveu em um guardanapo os versos. "Até a pé nós iremos/Para o que der e vier/Mas o certo é que nós estaremos/Com o Grêmio onde o Grêmio estiver". Só no fim da partida, em outro botequim, completou a letra. O hino ganhou o concurso nas comemorações do cinquentenário do clube. Foi tão bem acolhido pela torcida que acabou promovido a hino oficial.

A partir de 1971 e até 1974, ano em deu o último sopro, às vésperas de completar 60 anos, no pior sufoco da ditadura, Lupicínio Rodrigues voltaria a gozar de popularidade impressionante, como nos anos 50. Suas músicas de dor de cotovelo foram regravadas por Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Gal Costa, Elis Regina, Gilberto Gil, Maria Bethânia. É Caetano - que em 1972 gravou Volta - quem conta que Lupicínio não tinha preconceitos. Após um show para uma plateia conservadora em Porto Alegre, Caetano - que se apresentara em roupas psicodélicas, cabelos longos e trejeitos efeminados - foi apresentado a Lupicínio. Tremia como vara verde. E, ao chegar perto, percebeu que Lupi passara batom nos lábios, para deixar o jovem mais à vontade. A partir de então, o tropicalista pôde compreender melhor a adoração que o poeta concretista Haroldo de Campos devotava ao compositor gaúcho.

Lupicínio Rodrigues nasceu numa vila pobre do bairro Cidade Baixa em Porto Alegre, em 16 de setembro de 1914 e morreu (do coração), na mesma cidade, em 27 de agosto de 1974. Quarto filho do funcionário público Francisco Rodrigues e da dona de casa Abigail, teve 20 irmãos. A tendência à boemia se revelaria na infância. Lupi foi aluno medíocre. Só pensava em cantar, batucar e namorar. Aos 12 anos, já fugia de casa para participar das rodas de cantigas no bairro. Aos 14, em 1928, compôs a primeira canção, uma marchinha de carnaval que nunca foi gravada. Em entrevista ao Pasquim, Lupicínio contou a inacreditável história: "Três anos depois, a marcha conquistou o primeiro lugar num concurso oficial, executada pelo cordão carnavalesco Prediletos. Um ano mais tarde, a música foi executada por outro cordão, o Rancho Seco, e novamente ganhei. E o mais interessante: 20 anos depois, quando eu fazia parte de uma comissão que julgava músicas carnavalescas, me apareceu novamente a marchinha, desta vez cantada pelo grupo Democratas, como autoria de outros dois compositores. Eu não falei nada aos outros membros da comissão e a música novamente venceu. Deixei os meninos receberem o prêmio e até os convidei para tomarem uma cerveja comigo."


Lupicínio completou o curso ginasial e aprendeu o ofício de mecânico. Trabalhou, como operário, numa fábrica de parafusos, foi empurrador de rodas de bonde, baleiro na porta de cinema e entregador de uma livraria. O pai fez de tudo para livrar o guri da boemia. Então, aos 15 anos, com documentos falsificados para 18, Francisco apresentou Lupicínio ao Exército como "voluntário". Nas horas de folga, o rapaz cantava no conjunto formado pelos soldados do batalhão. Em 1932, foi mandado para São Paulo, mas não chegou à frente de batalha da Revolução Constitucionalista. Promovido a cabo, foi transferido para Santa Maria, a 290 quilômetros da capital gaúcha.


E foi em Santa Maria que, aos 18 anos, Lupicínio conheceu Inah, primeiro amor, que lhe marcou profundamenta a obra. Inah rompeu com Lupi, porque não aceitava a vida boêmia do compositor. Por essa ocasião, nasceram Felicidade e Nervos de Aço, dedicadas àquela paixão malsucedida. Lupicínio confessava ter ganhado muito dinheiro com o sofrimento. "Cada uma que me faz uma sujeira, me deixa inspiração para compor. Meu primeiro automóvel foi comprado com o dinheiro de um samba para uma mulher. Minha casa foi adquirida com o dinheiro de um samba que fiz para outra, também por causa de uma traição.". O doloroso rompimento com Inah estimulou Lupicínio a viajar voluntariamente, pela primeira e única vez, em 1939, com destino ao Rio de Janeiro, onde ficaria por seis meses. Nas mesas dos bares cariocas, cantaria com Haroldo Lobo, Ary Barroso e Nássara. O primeiro sucesso nacional foi Se Acaso Você Chegasse (com Felisberto Martins), de 1936, gravado por Cyro Monteiro em 1938 e, mais tarde, em 1959, por Elza Soares. Aos 25 anos, Lupicínio já se tornara lenda nos cabarés, como Lampião no cangaço.

Cláudio Renato


segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Choros, chorinhos e chorões em 5 minutos

Pixinguinha (1897-1973), a alma do choro
É do desenhista, artista plástico e designer William Figueiredo Côgo, de 34 anos, a idéia supimpa de contar em um filme de curta metragem - com traços firmes, singelos e muito colorido - uma breve história do choro, único gênero musical genuinamente carioca. São cinco minutos de emoção, beleza, talento e simplicidade. Côgo conseguiu fazer um desenho animado surpreendentemente original: calçadas em pés de moleque, bolas de gude, pipas coloridas, sino de igreja, o luar alto, crianças pobres (provavelmente filhas de estivadores, operários, lavadeiras e quituteiras), mulata, pandeiro, viola, saxofone e muita alegria. Os cenários são pintados a mão. Um choro recorrente. Sem palavras.

Para realizar Alma carioca, um choro de menino, Côgo se inspirou nos traços do caricaturista José Carlos de Brito e Cunha, o J.Carlos (1884-1950). Foi a melhor oportunidade que o diretor e designer, também carioca, formado pela Escola de Belas Artes da UFRJ, encontrou para homenagear Pixinguinha, João da Bahiana e Donga - a santíssima trindade do chorinho - pais fundadores de Os Oito Batutas, o primeiro grupo a levar a música popular brasileira para o exterior. Foram para a Europa em janeiro de 1922 para uma curta apresentação. Acabaram ficando por lá meio ano.

O filmete retrata a história de um menino, morador da zona portuária do Rio, que, nos primeiros anos do século passado, se encanta com os chorinhos e os chorões originais da Pedra do Sal, na época da Tia Ciata e outras baianas fundamentais. A inspiração nos traços de J. Carlos é coerente. O cartunista, chargista e ilustrador retratava o Rio de Janeiro dos anos 1920, período em que o choro - gênero criado pelo flautista Joaquim Calado no fim do século 19 - deixava os salões e começava a conquistar definitivamente as ruas da cidade.


sábado, 12 de dezembro de 2009

Ferreira Gullar: "Será arte?"

Ferreira Gullar, o bruxo maranhense de Copacabana
A Fonte, de Marcel Duchamp: o urinol mais caro do mundo

O francês naturalizado americano Marcel Duchamp (1887-1968) é um dos mais cultuados artistas plásticos dos últimos cem anos. Chegou a ser chamado de gênio visionário e comparado, em importância, ao italiano Giotto di Boldoni (1267-1337), que introduziu na pintura as noções de perspectiva e tridimensionalidade, pilares de sustentação da escola renascentista de Michelangelo, Da Vinci e Rembrandt. Para o poeta, ensaísta e crítico maranhense Ferreira Gullar, tal valorização (paparicação) da obra (?) de Duchamp é uma tremenda idiotice e um dos maiores esbulhos que, perpetrado no século 20, ainda vigora em academias, museus e bienais pelo Brasil e mundo afora.

Os defensores de Duchamp alegam que a revolução promovida pelo artista francês se dá pelo fato de ele não ter se contentado em estimular apenas a visão, a admiração das imagens captadas pelos olhos, mas a troca intelectual do admirador com suas peças. Ao tirar um objeto comum do contexto usual e elevá-lo à categoria de arte, Duchamp anunciava ao mundo que a habilidade manual do artista já não bastava para definir uma obra. As peças prontas, os ready made, inauguravam, destarte, a concepção de vanguarda contemporânea, da arte conceitual.

Duchamp angariou notoriedade mundial quando, com a assinatura R.Mutti, inscreveu em um concurso de arte nos Estados Unidos a peça A Fonte - um urinol comum, branco e esmaltado, comprado, em 1917, em uma loja de material de construção em Nova York. A peça foi recusada pelo júri do concurso por não ter nenhuma intervenção artística, mas, imediatamente, apareceram críticos em busca de chifres na cabeça do cavalo. Eles enxergaram no urinol contornos femininos e recorriam a explicações supostamente psicanalíticas para legitimá-lo como obra de arte: era preciso se ter em mente um membro masculino lançando urina sobre as formas femininas. Ou mesmo sêmen, em caso de masturbação.

Aos 79 anos, Ferreira Gullar é considerado o maior poeta vivo do Brasil. Pelo menos, é o que tem a fisionomia mais expressiva. Ele acredita que a vanguarda se esgotou, ao buscar apenas a novidade e negar a permanência dos valores estéticos. A tal vanguarda conceitual contemporânea tornou-se o movimento mais arrogantemente conservador e hipócrita, principalmente nas artes plásticas. No caso de Duchamp, ele explica: "na olaria, aquilo era um urinol fabricado em linha de montagem. Na casa de material de construção, era um urinol para ser vendido a um bar ou a um restaurante. No bar, não deixaria de ser urinol, onde os homens se aliviariam. Para ganhar o estatuto de obra de arte, depende de um museu. Que vanguarda é essa?" Ou seja: segundo o poeta, é a instituição que confere a legitimação de obra de arte. "Ou a obra é de vanguarda ou é institucional, as duas coisas é um contrassenso."

Há exatamente 50 anos, Ferreira Gullar redigiu o Manifesto Neoconcreto, que marcou o rompimento do grupo do Rio, encabeçado por ele, Lygia Pape e Mário Pedrosa, com os concretistas de São Paulo. Por causa da efeméride, Gullar tem sido muito procurado para explicar por que rompeu com o movimento. Autor de um livro intitulado Argumentação contra a morte da arte, o poeta diz que não podia mais tolerar o esquematismo matemático e racionalismo dogmático impostos pelos paulistas. Jamais foi perdoado pelos irmãos Augusto e Haroldo Campos e por Décio Pignatari, os corifeus do programa concretista. O didatismo de Gullar é de contundência e lucidez impressionantes. "O concretismo deveria se chamar abstratismo, porque, para se aproximar do concreto é necessário um somatório de atributos. Quando se escreve a palavra "gato", se está tratando de uma abstração. Mas quando se escreve do "gato preto do seu José que mora na última casa da rua tal, no quarteirão tal, aí vamos nos aproximando do concreto."

A obra poética de Ferreira Gullar é indestrutível. O Poema Sujo, concebido em 1976 durante o exílio em Buenos Aires e trazido ao Brasil, clandestinamente e gravado em fita cassete por Vinícius de Moraes, é uma das obras mais estudadas da literatura brasileira atualmente. Sob a angústia das ditaduras militares, Gullar decidiu "escrever um poema que fosse o meu testemunho final, antes que me calassem para sempre". Gullar é autor de 21 livros de poesia - 15 individuais e seis antologias -, dois de contos, 14 ensaios, uma peça teatral (Um rubi no umbigo, 1979) e uma biografia (Nise da Silveira: uma psiquiatra rebelde, 1996). Produziu textos originais e adaptações para a televisão, o teatro e o cinema. Em 2002, fez a melhor tradução para o português de Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes. É autor do belíssimo poema Traduzir-se, musicado e gravado por Raimundo Fagner em disco antológico de 1981, lançado em toda a Europa e na América Latina, um marco na música popular brasileira.

Já da obra de Marcel Duchamp, não se pode dizer exatamente o mesmo. Em 6 de janeiro de 2006, um francês de 77 anos invadiu o Centro Pompidou, em Paris, e atacou a marteladas A Fonte - o urinol mais caro do mundo. O vândalo foi detido. Alegou que o ataque com o martelo seria uma perfomance artística da qual o próprio Duchamp se orgulharia. A peça, que há três anos já estava avaliada em 3 milhões de euros (quase R$ 9 milhões), sofreu escoriações leves e, na opinião de marchands europeus, ficou ainda mais valorizada depois do episódio.

Cláudio Renato