Quando o coração irrequieto de Dolores Duran parou de bater, há meio século, em 23 de outubro de 1959, a cantora e compositora estava no auge da carreira. Nos dois últimos anos de vida, compusera as suas músicas mais marcantes como Castigo, A Noite do Meu Bem, Olha o Tempo Passando e Estrada do Sol. Deixou, aos 29, uma obra consolidada e comovente. Nesse período, teria feito uma canção triste e singela, bem a seu estilo, nunca gravada, sequer batizada, mas que ficou na memória da principiante Alaíde Costa Silveira Mondin Gomide. Com voz muito suave, Alaíde chamara, naquele final dos anos 50, a atenção do exigente João Gilberto pelo modo diferente como interpretava. Ela conta que aprendeu a música, na Rádio Nacional, com o coautor, Édison Reis de França, o Edinho, fundador do Trio Irakitan. Dolores morreria em seguida. Edinho suicidou-se em Copacabana, em 1965. Alaíde passaria os anos a assoviar e cantarolar a Música Desconhecida, como ficou para ela conhecida aquela canção atribuída a Dolores Duran e a Édison França. Na semana passada, por telefone, Alaíde nos sussurrou a tal música, cuja letra diz:
"Está fazendo tanto tempo
Que eu até nem sei contar
Eu só sei que estou tão triste
E não canso de chorar
Eu só sei que esta saudade
Nunca vai me deixar
As palavras dos momentos
Não consigo nem lembrar
Só me lembro dos teus olhos
E não canso de chorar"
Alaíde Costa desembarca no Rio esta semana para um espetáculo em homenagem a Dolores Duran, no próximo dia 1 de outubro, às 18h45, no Teatro Gonzaguinha, com participação especial do maestro Gilson Peranzzetta, orgulho de Brás de Pina, do Rio de Janeiro e do Brasil. Ela diz que vai aproveitar a oportunidade para apresentar em primeira mão ao público carioca a Música Desconhecida.
- Queria muito gravar essa canção, mas há problemas de direitos autorais e não tenho contato com as famílias de Dolores e de Edinho. Preciso das autorizações. Na verdade, só a cantei em público uma vez, há muitos anos, de surpresa, em Araraquara, São Paulo, durante um show organizado pelo escritor e jornalista Sérgio Cabral, que se chamava Boteco do Cabral. Ela não tem título e estou pensando em lhe dar um nome, porque acho que isso posso fazer - revela.
Às vésperas de completar 74 anos, 52 de carreira, Alaíde Costa é considerada uma das mais importantes intérpretes da Bossa Nova. A suavidade do canto seduziu João Gilberto, em 1958, antes mesmo de ele gravar a memorável Chega de Saudade, de Antônio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes. Ela lembra do começo do movimento:
- O João me viu e ouviu cantar na Odeon. Ele adorou, mas não veio falar comigo. Chamou o produtor Aloísio de Oliveira e pediu que me convidasse para as reuniões nos apartamentos da Zona Sul do Rio, onde começava a se discutir uma proposta diferente para a música popular brasileira. Havia reuniões no apartamento da Nara Leão, mas também em muitos outros. A primeira reunião em que fui, em 1958, por exemplo, foi no apartamento do pianista Bené Nunes, na Rua Duque Estrada, na Gávea. Tinha ainda o apartamento da mãe do Nelson Motta (Maria Cecília Britto Motta), o da família do Maurício Maestro, o apartamentão do fotógrafo Chico Pereira, no Lido. O João foi fundamental na minha carreira, mas faz muitos anos que não o vejo nem falo com ele.
Alaíde Costa também é compositora e ensaia as canções no piano Delarue, que ganhou do poeta Vinicius de Moares, em 1960, depois de tentar, sem sucesso, pagá-lo a prestações. No começo, o piano tinha tom de cereja. Depois de muitas reformas, decidiu escurecê-lo. Está mais clássico.
- O arranjador e compositor Moacir Santos era muito amigo do Vinicius, que se preparava para viajar para os Estados Unidos. O poeta queria vender o piano e o Moacir achava que eu deveria ter um. Ele intermediou o negócio, mas eu nunca tinha dinheiro para pagar as prestações. Sempre que encontrava com Vinicius, arrumava uma desculpa. Um dia ele me disse: "Alaíde, pare de falar do diabo do piano e fique com ele pra você!"
É no piano presenteado por Vinicius que Alaíde se inspira e se exercita. "Tenho muita coisa inédita, muito trabalho pela frente". Alaíde Costa já gravou discos com Peranzetta, João Carlos Assis Brasil e Milton Nascimento. Começou em programas de calouros infantis, como Sequência G3 (Rádio Tupi) e Arraia miúda (Rádio Nacional), apresentado pelo ator Paulo Gracindo. Tinha 13 anos. No início da década de 1950, ousou cantar no programa Calouros em Desfile, de Ary Barroso, e conquistou a nota máxima. Estourou com a Bossa Nova e consolidou uma carreira internacional. O maior sucesso foi Onde está você? (1964), de Oscar Castro Neves e Luvercy Fiorini. Em 2003, apresentou-se, com Johnny Alf, no London Jazz Festival, realizado no Queen Elizabeth Hall, em Londres. Em 2005, foi contemplada com o Prêmio Rival Petrobras da Música, como a melhor cantora do país naquele ano. Ainda em 2005, participou, em Paris, ao lado de Elza Soares e Jair Rodrigues, do show Brasil Brasileiro, que encerrou o Ano do Brasil na França.
- Canto músicas que me tocam. Não identifico influências em minhas composições, mas, como cantora, adorava uma chamada Neusa Maria, que se apresentava na Rádio Nacional. Não sei que fim levou, mas era excepcional. Não canto necessariamente bossa nova, mas a minha voz combina com ela. O meu nome ficou ligada ao movimento, porque o João insistia que tinha uma maneira diferente de cantar. E o João, com aquele jeito dele, você sabe!
Neusa Maria, principal influência de Alaíde Costa, é o nome artístico de Vasiliki Purchio, filha de uma família italiana radicada em São Paulo. Começou a cantar aos 12 anos. A menina mereceu os epítetos de Rainha do Jingle e Voz Doçura do Brasil. Adotou o nome artístico de Neusa Maria por sugestão do radialista Abílio Caldas, já que o nome de batismo era muito difícil de se pronunciar. No Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, do pesquisador Ricardo Cravo Albin, não há informação sobre o paradeiro de Neusa Maria, que gravou o último dos seus 50 discos em 1959. Ela estaria agora com 81 anos.
Alaíde Costa, que trabalhou como empregada doméstica, é uma mulher elegante, caprichosa mas vive modestamente, no bairro Jardim Bonfiglioli, em São Paulo. Anda de ônibus para cima e para baixo. Até quando vai dar shows.
- E o que é que tem? Só não vou vestida, claro, pra não ficar toda amarrotada. Mas levo a roupa numa bolsa e vou de ônibus, de metrô, sem problema algum.
Cláudio Renato