Na nova fase, Jorge Amado provava para si mesmo e para os críticos que não precisava de Moscou, mas dependia (sempre), visceralmente, das igrejas barrocas, dos terreiros e das vielas em pés-de-moleque do Pelourinho, da Ladeira do Taboão e da Cidade Baixa. Suas páginas já não se ressentiam das presenças e das influências de Gorki, Stalin, Molotov ou Luís Carlos Prestes, mas precisavam muito da egrégora de Gregório de Mattos, de Castro Alves, dos pescadores e das putas do cais, das moralistas, dos coronéis, dos mascates turcos, dos bêbados, dos capoeiras, dos assassinos de aluguel, dos malandros, dos cornos, dos carnavais, de todos os santos da Bahia, presentes, desde o começo, na literatura amadiana, mas agora muito mais reais, porque vivos, críticos, sensuais, coloridos e livres. Deixava a ingenuidade populista para se tornar o mais popular dos escritores brasileiros.
O hilário Quincas Berro d'Água, por exemplo, foi publicado, em 1959, na revista Senhor, embora só transformado em livro três anos mais tarde, com prefácio de Vinicius de Moraes. O poeta reconhecia ali a transfiguração sutil e radical no trabalho de Jorge Amado, que abandonara os influxos maniqueístas e flertava com o realismo mágico, cujo monumento inaugural é Pedro Paramo (1955), obra-prima de pouco mais de 150 páginas do mexicano Juan Rulfo. É no Quincas, por exemplo, que Jorge faz sua maior homenagem ao mestre da capoeira de Angola. No romance, Negro Pastinha é um dos melhores amigos de Joaquim Soares da Cunha, o Quincas, pai e marido exemplar e funcionário público respeitável que, um dia, cansado da mediocridade, decide se entregar à boêmia. Torna-se o cafajeste mais debochado e querido do submundo de Salvador, para o constrangimento da família e o regozijo da ralé dos becos, bares e lupanares.
No final da década de 1950, a exemplo do movimento comunista mundial, a capoeira na Bahia sofreria um racha e Jorge tomaria partido do mestre Pastinha. Em um manifesto de 1958, o escritor condena as transformações empreendidas pelo mestre Bimba, criador da chamada capoeira regional. "Trava-se, atualmente, nos arraiais da capoeira na Bahia, uma grande discussão. Acontece que mestre Bimba foi ao Rio de Janeiro mostrar aos cariocas da Lapa como é que se joga capoeira. E lá aprendeu golpes de catch-as-catch-can, de jiu-jitsu, de boxe. Misturou tudo isso à capoeira de Angola, aquela que nasceu de uma dança dos negros, e voltou à sua cidade falando numa nova capoeira, a capoeira regional. Dez capoeiristas dos mais cotados me afirmaram, num amplo e democrático debate que travamos sobre a nova escola de mestre Bimba, que a 'regional' não merece confiança e é uma deturpação da velha capoeira da Angola, a única verdadeira."
Bem longe de Moscou e da China, os terreiros regionais e de Angola de Salvador convivem pacificamente. E os mestres Pastinha e Bimba jamais se declararam inimigos.
Sobre a vida de Vicente Ferreira Pastinha (1889-1981), que nasceu e morreu em Salvador, pai espanhol e mãe baiana, a fonte mais fidedigna é o depoimento do próprio mestre ao Museu de Imagem e do Som (MIS), em 1967. "Quando tinha uns dez anos - e era franzininho - um outro menino mais taludo do que eu tornou-se meu rival. Era só eu sair para a rua - ir na venda fazer compra, por exemplo - e a gente se pegava em briga. Só sei que acabava apanhando dele, sempre. Então ia chorar escondido de vergonha e tristeza." As humilhações se repetiriam até Pastinha conhecer Benedito, negro alforriado. "Um dia, da janela de sua casa, um velho africano assistiu a uma briga da gente: 'Vem cá, meu filho!', ele me disse, vendo que eu chorava de raiva depois de apanhar. 'Você não pode com ele, sabe, porque ele é maior e tem mais idade. O tempo que você perde empinando raia, vem aqui no meu cazuá que vou lhe ensinar coisa de muita valia'". Ali, Pastinha começaria a aprender o legado da cultura da África que passaria para muitas gerações de mestres na Bahia e em todo o Brasil.
Benedito, o professor, exigia de Pastinha a dedicação de um samurai. "Ele costumava dizer: 'não provoque, menino, vai botando devagarinho ele (o rival) sabedor do que você sabe'". Pastinha, enfim, pôde mostrar ao rapaz o que sabia e a rivalidade se converteria em amizade e admiração." Além de técnicas de capoeira, Pastinha aprendeu a ser didático, comunicativo e original. Ele passou a privilegiar a expressão artística da capoeira, o trabalho físico e mental da modalidade de Angola, a mais tradicional das artes marciais africanas que aportaram no Brasil. E tocava berimbau acompanhado das ladainhas, que atraíam também as mulheres e crianças.
Em 1966, enquanto Jorge Amado lançava Dona Flor e Seus Dois Maridos, Pastinha integrava a comitiva brasileira ao primeiro Festival Mundial de Arte Negra no Senegal. Nas gerações memoráveis de capoeiristas que formou estão João Grande, João Pequeno, Curió e Bola Sete (presidente da Associação Brasileira de Capoeira Angola). A escola de Pastinha passou a ser frequentada por Jorge Amado e pelos artistas plásticos Mário Cravo e Carybé e cantada por Caetano Veloso, no disco Transa (1972). Na fase mais turva da ditadura militar, em 1973, Pastinha foi expulso do Pelourinho, enquanto Jorge colhia o sucesso de Teresa Batista Cansada de Guerra. O mestre sofreu, em sequência, dois derrames e ficou cego. Mesmo assim, gingou capoeira até a morte, aos 92 anos. No depoimento ao MIS, revelou: "Tudo o que penso da capoeira, escrevi no quadro que está na porta da academia. Em cima, três palavras: Angola, capoeira, mãe. E, embaixo, o pensamento: "Mandinga de escravo em ânsia de liberdade, seu princípio não tem método e seu fim é inconcebível ao mais sábio capoeirista."
Cláudio Renato
Documentário gravado pelo folclorista brasileiro Alceu Maynard: imagens inéditas do mestre Pastinha jogando com alunos do seu grupo - o CECA - na Bahia, em 1950.