sábado, 26 de setembro de 2009

Uma canção inédita de Dolores Duran

Alaíde Costa
Partitura da Música Desconhecida, atribuida a Dolores Duran

Quando o coração irrequieto de Dolores Duran parou de bater, há meio século, em 23 de outubro de 1959, a cantora e compositora estava no auge da carreira. Nos dois últimos anos de vida, compusera as suas músicas mais marcantes como Castigo, A Noite do Meu Bem, Olha o Tempo Passando e Estrada do Sol. Deixou, aos 29, uma obra consolidada e comovente. Nesse período, teria feito uma canção triste e singela, bem a seu estilo, nunca gravada, sequer batizada, mas que ficou na memória da principiante Alaíde Costa Silveira Mondin Gomide. Com voz muito suave, Alaíde chamara, naquele final dos anos 50, a atenção do exigente João Gilberto pelo modo diferente como interpretava. Ela conta que aprendeu a música, na Rádio Nacional, com o coautor, Édison Reis de França, o Edinho, fundador do Trio Irakitan. Dolores morreria em seguida. Edinho suicidou-se em Copacabana, em 1965. Alaíde passaria os anos a assoviar e cantarolar a Música Desconhecida, como ficou para ela conhecida aquela canção atribuída a Dolores Duran e a Édison França. Na semana passada, por telefone, Alaíde nos sussurrou a tal música, cuja letra diz:

"Está fazendo tanto tempo
Que eu até nem sei contar
Eu só sei que estou tão triste
E não canso de chorar
Eu só sei que esta saudade
Nunca vai me deixar
As palavras dos momentos
Não consigo nem lembrar
Só me lembro dos teus olhos
E não canso de chorar"

Alaíde Costa desembarca no Rio esta semana para um espetáculo em homenagem a Dolores Duran, no próximo dia 1 de outubro, às 18h45, no Teatro Gonzaguinha, com participação especial do maestro Gilson Peranzzetta, orgulho de Brás de Pina, do Rio de Janeiro e do Brasil. Ela diz que vai aproveitar a oportunidade para apresentar em primeira mão ao público carioca a Música Desconhecida.
- Queria muito gravar essa canção, mas há problemas de direitos autorais e não tenho contato com as famílias de Dolores e de Edinho. Preciso das autorizações. Na verdade, só a cantei em público uma vez, há muitos anos, de surpresa, em Araraquara, São Paulo, durante um show organizado pelo escritor e jornalista Sérgio Cabral, que se chamava Boteco do Cabral. Ela não tem título e estou pensando em lhe dar um nome, porque acho que isso posso fazer - revela.
Às vésperas de completar 74 anos, 52 de carreira, Alaíde Costa é considerada uma das mais importantes intérpretes da Bossa Nova. A suavidade do canto seduziu João Gilberto, em 1958, antes mesmo de ele gravar a memorável Chega de Saudade, de Antônio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes. Ela lembra do começo do movimento:
- O João me viu e ouviu cantar na Odeon. Ele adorou, mas não veio falar comigo. Chamou o produtor Aloísio de Oliveira e pediu que me convidasse para as reuniões nos apartamentos da Zona Sul do Rio, onde começava a se discutir uma proposta diferente para a música popular brasileira. Havia reuniões no apartamento da Nara Leão, mas também em muitos outros. A primeira reunião em que fui, em 1958, por exemplo, foi no apartamento do pianista Bené Nunes, na Rua Duque Estrada, na Gávea. Tinha ainda o apartamento da mãe do Nelson Motta (Maria Cecília Britto Motta), o da família do Maurício Maestro, o apartamentão do fotógrafo Chico Pereira, no Lido. O João foi fundamental na minha carreira, mas faz muitos anos que não o vejo nem falo com ele.
Alaíde Costa também é compositora e ensaia as canções no piano Delarue, que ganhou do poeta Vinicius de Moares, em 1960, depois de tentar, sem sucesso, pagá-lo a prestações. No começo, o piano tinha tom de cereja. Depois de muitas reformas, decidiu escurecê-lo. Está mais clássico.
- O arranjador e compositor Moacir Santos era muito amigo do Vinicius, que se preparava para viajar para os Estados Unidos. O poeta queria vender o piano e o Moacir achava que eu deveria ter um. Ele intermediou o negócio, mas eu nunca tinha dinheiro para pagar as prestações. Sempre que encontrava com Vinicius, arrumava uma desculpa. Um dia ele me disse: "Alaíde, pare de falar do diabo do piano e fique com ele pra você!"
É no piano presenteado por Vinicius que Alaíde se inspira e se exercita. "Tenho muita coisa inédita, muito trabalho pela frente". Alaíde Costa já gravou discos com Peranzetta, João Carlos Assis Brasil e Milton Nascimento. Começou em programas de calouros infantis, como Sequência G3 (Rádio Tupi) e Arraia miúda (Rádio Nacional), apresentado pelo ator Paulo Gracindo. Tinha 13 anos. No início da década de 1950, ousou cantar no programa Calouros em Desfile, de Ary Barroso, e conquistou a nota máxima. Estourou com a Bossa Nova e consolidou uma carreira internacional. O maior sucesso foi Onde está você? (1964), de Oscar Castro Neves e Luvercy Fiorini. Em 2003, apresentou-se, com Johnny Alf, no London Jazz Festival, realizado no Queen Elizabeth Hall, em Londres. Em 2005, foi contemplada com o Prêmio Rival Petrobras da Música, como a melhor cantora do país naquele ano. Ainda em 2005, participou, em Paris, ao lado de Elza Soares e Jair Rodrigues, do show Brasil Brasileiro, que encerrou o Ano do Brasil na França.
- Canto músicas que me tocam. Não identifico influências em minhas composições, mas, como cantora, adorava uma chamada Neusa Maria, que se apresentava na Rádio Nacional. Não sei que fim levou, mas era excepcional. Não canto necessariamente bossa nova, mas a minha voz combina com ela. O meu nome ficou ligada ao movimento, porque o João insistia que tinha uma maneira diferente de cantar. E o João, com aquele jeito dele, você sabe!
Neusa Maria, principal influência de Alaíde Costa, é o nome artístico de Vasiliki Purchio, filha de uma família italiana radicada em São Paulo. Começou a cantar aos 12 anos. A menina mereceu os epítetos de Rainha do Jingle e Voz Doçura do Brasil. Adotou o nome artístico de Neusa Maria por sugestão do radialista Abílio Caldas, já que o nome de batismo era muito difícil de se pronunciar. No Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, do pesquisador Ricardo Cravo Albin, não há informação sobre o paradeiro de Neusa Maria, que gravou o último dos seus 50 discos em 1959. Ela estaria agora com 81 anos.
Alaíde Costa, que trabalhou como empregada doméstica, é uma mulher elegante, caprichosa mas vive modestamente, no bairro Jardim Bonfiglioli, em São Paulo. Anda de ônibus para cima e para baixo. Até quando vai dar shows.
- E o que é que tem? Só não vou vestida, claro, pra não ficar toda amarrotada. Mas levo a roupa numa bolsa e vou de ônibus, de metrô, sem problema algum.
Cláudio Renato


domingo, 20 de setembro de 2009

Martinho da Vila e a Kizomba de Noel

Martinho da Vila: sambas, discos e livros à mancheia
Cartola, que completaria 100 anos em 2008, foi vítima da maior injustiça já perpetrada na história dos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro. Com Saturnino Gonçalves (pai de Dona Neuma), Marcelino Maçu, Zé Espinguela e Carlos Cachaça, criou, em 1928, o Bloco dos Arengueiros, que daria origem à Estação Primeira de Mangueira, a escola de samba mais popular do Brasil. O nome e as cores verde e rosa teriam sido escolhidas pelo próprio Cartola, que também é autor do primeiro samba do grêmio recreativo, Chega de Demanda. Em sã consciência, ninguém nas redondezas do Buraco Quente, Telégrafos, Pendura Saia, Santo Antônio ou Chalé poderia imaginar que, justamente naquele ano, o enredo da escola fosse outro que não o da exaltação da vida e da obra do pai fundador Agenor de Oliveira, o maior poeta do samba. Infelizmente, foi. Em troca de R$ 3 milhões da prefeitura do Recife, a Mangueira levou para a Marquês de Sapucaí a celebração de outro centenário: o do frevo pernambucano.

Recife comemorou o século de frevo com um dos carnavais mais animados e lucrativos das últimas décadas. Só na região central da cidade, 1,5 milhão de foliões foram às ruas acompanhar o Galo da Madrugada e outras 400 agremiações que ali desfilaram. Durante cinco dias de festa, 350 artistas - 90% pernambucanos - fizeram mais de 400 shows. Seiscentos mil turistas foram arrastados para a capital pernambucana, cujo carnaval ganhou destaque no mundo durante a preparação para os desfiles da Passarela do Samba Darcy Ribeiro (o Sambódromo do Rio), acompanhados por 1.150 jornalistas cadastrados, brasileiros e estrangeiros. A movimentação financeira no carnaval recifense de 2008 chegou a R$ 283 milhões, e a Magueira recebeu pouco mais de 1% desse faturamento. "Conseguimos dar uma dimensão internacional a nossa festa. Tivemos uma boa repercussão e uma cobertura excelente. Em grande parte, o interesse pela folia recifense se deveu ao samba-enredo sobre o frevo levado à Marquês de Sapucaí pela Mangueira, no Rio de Janeiro", exultou o então prefeito do Recife, João Paulo Lima e Silva.

No Rio de Janeiro, a Mangueira fez um desfile melancólico, que lhe valeu o décimo lugar entre 12 concorrentes. Por muito pouco, não foi rebaixada. Um fracasso que deveria servir de alerta a outras escolas de samba tão facilmente seduzidas pelos temas patrocinados. Em um dos bairros vizinhos, Vila Isabel, por exemplo, a preocupação redobrava-se, porque, em 2010, Noel Rosa - companheiro inseparável de Cartola - completaria 100 anos. Nenhum lugar no Rio se orgulha mais de uma personalidade do que a Vila de Noel, que inspira nomes e partituras em calçadas, bares, sinucas, açougues, túnel e até em banco (a agência da Caixa Econômica Federal, no Boulevard, por exemplo, se chama oficialmente Agência Noel Rosa). Mas a Vila Isabel tem um xerife: Martinho José Ferreira, que, aos 71 anos, deixou de lado as divergências com a diretoria e assumiu, de pronto, a coordenação do enredo. Contrariando as expectativas iniciais, Martinho inscreveu um samba de 35 versos que disputa na quadra o privilégio de apresentar Noel Rosa para o Brasil e para o mundo. Pode perder o carnaval, mas certamente ganhará no quesito dignidade (letra e vídeo abaixo).

Preguiçoso e malemolente, Martinho da Vila fala cantando e canta falando. Devagar, devagarinho...e sempre. É o maior sambista vivo do Brasil e um pesquisador popular de mancheia, capaz de transformar em sucesso nacional um samba-crônica de 1917 como "Batuque na Cozinha", de João da Bahiana, ou uma toada de congo capixaba, como "Madalena do Jucu", de domínio público. Martinho não é carioca. Nasceu em Duas Barras, município serrano e rural no interior fluminense, em pleno carnaval, 12 de fevereiro de 1938, ano em que, segundo o historiador Hiram Araújo, as agremiações carnavalescas começaram a construir enredos sobre fatos históricos nacionais. “Essa tradição começou quando o nacionalismo fez Getúlio Vargas proibir letras que falassem de temas internacionais”, conta Araújo. Em 1939, lembra, a escola Vizinha Faladeira foi desclassificada ao descumprir a proibição e desfilar com o enredo “Branca de Neve e os Sete Anões." Até hoje, Martinho acredita que o nacionalismo é fundamental para o desenvolvimento da cultura popular.

Com 40 anos de carreira, Martinho da Vila não se limita à música popular. É autor de sete livros - Kizombas Andanças e Festança, Romance Fluminense, Ópera Negra, Memórias de Tereza de Jesus, Lusofonia, Vermelho 17 e Serra do Rola-moça - e acaba de lançar um opúsculo infantil, A Rainha de Bateria. Conta a história edificante de uma menina que morava ao lado de uma escola de samba e tinha muita curiosidade de conhecê-la. De tanto ouvir os sambas-enredo, tirava ótimas notas no colégio, principalmente em História do Brasil. O boletim escolar tornou-se a credencial para que ela acabasse se tornando rainha de bateria.

Martinho da Vila será protagonista de um documentário da cineasta Isabel Jaguaribe, a mesma que assinou, em 2003, "Meu Tempo é Hoje", sobre Paulinho da Viola. O filme é baseado nas relações do cantor e compositor brasileiro com a África lusófona. Ele acaba de chegar de uma turnê de 45 dias em Portugal e já está de malas prontas para uma viagem ao Chile e ao Uruguai. Antes de partir, Martinho conversou com o Passavante. Disse acreditar que a Vila poderá repetir o êxito do desfile Kizomba, Festa da Raça, de 1988, quando, sob sua batuta, a escola foi, pela primeira vez, campeã do Grupo Especial.
1 – Você tomou as rédeas do enredo da Vila Isabel no centenário de Noel Rosa. Qual a sua expectativa?

A Unidos de Vila Isabel vai fazer uma festança para ele (e com ele) no próximo carnaval, ocasião em que o gênio será laureado com o enredo Noel – A Presença do Poeta, tema que sugeri ao carnavalesco Alex de Souza. O pesquisador Alex Viana escreveu a sinopse, baseando-se na biografia do Noel Rosa, escrita por João Máximo e Carlos Didier. A minha expectativa é de que consigamos fazer um desfile do nível do Kizomba, A Festa da Raça, mas com outras características. Também estou concorrendo com um samba na quadra.

2 – Você deixou Vila Isabel para morar na Barra da Tijuca. Você se arrepende?

Não me arrependo, mas sinto muitas saudades do bairro de Vila Isabel. Pra matar a saudade, estou sempre por lá. Tenho filhos que moram no bairro, onde também mantenho meu escritório. Quando chego de viagem, saio do aeroporto e costumo dar uma parada na Vila para ver os amigos e sentir o clima do bairro antes de ir para a Barra da Tjuca. Mas também tenho em Duas Barras, minha cidade natal na região serrana, uma propriedade rural (Martinho comprou a fazenda onde nasceu, ao descobrir que estava à venda). Duas Barras compete com o bairro de Vila Isabel. Meu tempo de folga é dividido entre esses dois lugares.

3 – É possível conciliar o sucesso com um trabalho de composição sofisticado?

É muito possivel, desde que a sofisticação não retire a essência popular, que é o mais importante. Gosto de gravar discos temáticos e vários deles, como o Canto das Lavadeiras, foi concebido a partir de pesquisas na cultura popular, onde me abasteço e que é essencial ao meu processo de criação.

4 – Além de Noel Rosa, evidentemente, você destacaria algum outro compositor genial no Brasil. Digamos, uns cinco?
É impossivel, porque não temos somente cinco maiores compositores. É muito mais. Muitos compositores geniais.

5 – Com 40 anos de carreira, qual a reflexão que você faz sobre a música e a cultura popular no Brasil?

Não gosto muito de falar, prefiro cantar e escrever, mas dizem que canto falando e muitos acham que escrevo melhor do que falo. Nasci na cidade de Duas Barras, no Rio de Janeiro, mas a minha infância não foi no interior. Passei na favela Boca do Mato, onde morava com muitos parentes e amigos que vieram de Duas Barras e de várias outras cidades fluminenses e de todo o Brasil em busca de novas oportunidades de vida. Lá, na Boca do Mato, nos reuníamos para cantar, conversar, festejar e fui muito influenciado por isso. E assim tive meu primeiro contato com a folia de Reis, os calangos e o mineiro-pau. Acho que a minha carreira é resultado desse caldo cultural.
Desde Carmem Miranda, a nossa música vem se expandindo pelo planeta graças a nossos artistas. Se houver um projeto bem planejado e uma boa estratégia, a nossa MPB tem condições de impulsionar o Brasil para o seu destino de ser uma grande potência mundial. Não só musicalmente. Para isso é necessário apenas um pouco de nacionalismo. Sou de opinião que, ao menos em termos musicais, devemos ser nacionalistas. Acredito piamente que a nossa música popular ainda vai suplantar a americana no consumo mundial. Se eu fosse Presidente da República, decretaria que o Ministério das Relações Exteriores desse instruções a todos os nossos embaixadores para que, no Sete de Setembro, Dia da Independência, organizasse, junto com o Ministério da Cultura, eventos de música popular em todos os países onde temos representação. Com uma ação dessas, teríamos, anualmente, um dia em que a nossa música popular estaria sendo mostrada em muitos países.
Cláudio Renato
O SAMBA DE MARTINHO DA VILA SOBRE NOEL ROSA - 2010
Compositor: Martinho da Vila
Intérprete: Wantuir
Se um dia na orgia me chamassem
Com saudades perguntassem
Por onde anda Noel?
Com toda minha fé responderia
Vaga na noite e no dia
Vive na terra e no céu
Seu sambas muito curti
Com a cabeça ao léu
Sua presença senti
No ar de Vila Isabel
Com o sedutor não bebi
Nem fui com ele ao bordel
Mas sei que está presente
Com a gente nesse laurel
Veio ao planeta com os auspícios de um cometa
Naquele ano da Revolta da Chibata
A sua vida foi de notas musicais
Seus lindos sambas animavam carnavais
Brincava em blocos com boêmios e mulatas
Subia morros sem preconceitos sociais
Foi um grande chororô
Quando o gênio descansou
Todo o samba lamentou ô ô ô
Que enorme dissabor
Foi-se o nosso professor
A Lindaura soluçou
E a dama do cabaré não dançou
Fez a passagem pro espaço sideral
Mas está vivo neste nosso carnaval
Também presente Cartola
E o Bando dos Tangarás
Lamartine, Ismael, Aracy e outros mais
E a fantasia que se usa
Pra sambar com o menestrel
Tem a energia da nossa Vila Isabel

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Ruy Barbosa, a caricatura da Belle Époque




De repente, o nome de Ruy Barbosa ergue-se do mausoléu do esquecimento ou do olvido, como certamente ele preferiria. Lança-se, altaneiro, por sobre e entre banners, microblogs, outdoors, comunidades eletrônicas e placas de caminhão, para tonificar o brado moralizante dos que se dizem inconformados com a crise atual no Senado da República, como se este fosse o mais grave e definitivo rompante nepotista naquela casa legislativa. "De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto." Sobranceiras, as palavras proferidas pela Águia de Haia voltam a sobrevoar as consciências indignadas no planalto central e nos quatro pontos cardeais do país como símbolo de probidade, competência e correção.



Haia, suposto ninho da nossa ave de rapina, é a terceira maior cidade da Holanda, depois de Amsterdã e Roterdã. Conta hoje com população em torno de 600 mil habitantes e área de 100 quilômetros quadrados. É uma cidade moderna e cosmopolita. Com moradores de mais de cem nacionalidades, 40% dos habitantes são estrangeiros. São 45 museus, 30 teatros, 64 hotéis, 26 salas de cinema e 70 mil árvores plantadas ao longo das ruas onde, praticamente, ninguém jamais ouviu falar em Ruy Barbosa. O jurisprudente soteropolitano pontificou naquela cidade, entre maio e outubro de 1907, durante a Segunda Conferência Internacional de Paz. Com eloquência ardente e erudição empolada, discursou em francês pelo direito de equiparação dos votos dos países fortes e fracos. Gabava-se do suposto conhecimento de todas as línguas (vivas e mortas). Cogitou de ensinar inglês para os ingleses na Inglaterra.


Que não se duvide dos bons propósitos de Ruy Barbosa, mas a correção do jurisconsulto baiano não impediu que, em 14 de dezembro de 1890, quando ministro dos Negócios da Fazenda da República Velha, mandasse queimar os registros de posse, de compra e de venda de escravos no Brasil. Dizia querer apagar "a mancha" da escravidão do passado nacional. Queria, na verdade, impedir o cálculo de eventuais indenizações pleiteadas por antigos proprietários de escravos. A discutir os projetos de lei que propunham o ressarcimento dos antigos senhores de negros, preferiu pôr fogo na História. Sinal de que, talvez, a incipiente República não tivesse adesão, coesão e força necessárias para barrar institucionalmente o eventual retrocesso escravocrata.

A competência e a probidade, tão propaladas pelos admiradores do intelectual condoreiro (e são muitos), não frearam a desastrada política financeira por ele patrocinada e que, no fim do século XIX, transformaria o Brasil em um cassino internacional. A crise do encilhamento – termo emprestado às apostas em corridas de cavalo – provocou aumento de inflação, crise estrutural na economia e crescimento da dívida e da dependência externas do país. Ocorreu durante o governo provisório do marechal Deodoro da Fonseca (1889-1891). O ministro Ruy Barbosa, sob o pretexto de acelerar a industrialização do Brasil, adotara uma política de estímulo aos investimentos no setor garantidos por emissões monetárias do Tesouro Nacional. O que se seguiu foi especulação financeira desenfreada, disparada de preços e boicotes por meio de empresas-fantasmas e ações sem lastro.

Ruy Barbosa, o sisudo, um poço sem fundo de erudição, talvez tenha sido um dos homens públicos mais caricaturados no Brasil de Machado de Assis, Chiquinha Gonzaga, Raul Pederneiras, K. Lixto, J.Carlos e Nair de Tefé. Levava-se tão a sério que difícil seria para a população brasileira, principalmente a carioca, não zombar de tamanha sisudez, ranzinzice e austeridade. A maioria dos textos ruibarbosianos caracterizava-se por um sarapatel indigesto de antífrases, antonomásias, disfemismos, hipálages, metalepses, matiazites, anadiploses, sínqueses, prolepses, oxímoros. Que não são doenças, nem curas, mas figuras de pensamento e construção a afundar cada vez mais o homem comum, semi-analfabeto, nas trevas da própria ignorância.
De como Ruy Barbosa, o erudito, despetalava a flor do Lácio caprichosamente, glosa-se, até hoje, em todos os principais cursos de Direito do Brasil. E os casos se tornaram extravagantes, quando, por motivos alheios à própria vontade, o luminar descia da torre de marfim para contatos fortuitos com a plebe rudimentar.


Notável se fez o episódio do flagrante a um ladrão de patos. Ruy Barbosa, o douto, ao chegar certa noite ao casarão onde morava, na então aprazível Rua São Clemente, em Botafogo, ouviu um barulho estranho vindo do quintal. Apressou-se o suficiente para flagrar um homem que pulava o muro, tentando furtar-lhe os patos de estimação. Aproximou-se, vagarosamente, e bateu nas costas do gatuno com o castão da bengala:

- Bicéfalo, não é pelo valor intrínseco dos bípedes palmípedes e sim pelo ato vil e sorrateiro de galgares os profanos de minha residência. Se fazes isso por necessidade, transijo; mas se é para zombares de minha alta prosopopeia de cidadão digno e honrado, dar-te-ei com minha bengala fosfórica no alto de tua sinagoga que te reduzirá à quinquagésima potência que o vulgo denomina nada.

O ladrão espantado, confuso, amedrontado, aterrorizado, apertou os olhos e balbuciou:
- Doutor, levo ou não levo os patos?

De outra feita, Ruy Barbosa, o preclaro, ingressara no bonde em Santa Teresa e se sentara em um dos bancos de três lugares, recostando-se confortavelmente, quando uma conhecida atriz francesa da época, muito gorda e patusca, acomodou-se justamente ao lado do nosso sábio. O ferrocarril estava praticamente vazio. Suando copiosamente, Ruy, angustiado, olhava de soslaio a mulher, que, a cada solavanco, o espremia mais contra a murada do coletivo. De supetão, após mirar e constatar que todo o banco traseiro estava vazio, berrou:

- Atrás há três atriz atroz!

Julgando-se cortejada por senhor tão elegante e nobre, a imensa e ignorante coquette francesa reprimiu um risinho, abanando-se com um leque colorido, e seguiu a viagem inteira tentando seduzir o impaciente cavalheiro da severa figura.

Conta a lenda que, antes de morrer, aos 73 anos, no primeiro de março de 1923, Ruy Barbosa, o profeta, teve pelo menos mais um contato direto com o povo que lhe teria deixado furioso, inconformado, estarrecido e desolado como nunca! O jurista, político, diplomata, escritor, filólogo, tradutor e orador brasileiro sofria com a perda de visão na velhice. Esperava um bonde no Passeio Público, próximo aos Arcos da Lapa, quando percebeu que, no fim da rua, apontava a condução. Ele aproximou-se de uma preta velha, gorda e bonachona, lenço de pano encardido na cabeça, para perguntar-lhe sobre o número ou o nome da direção do bonde que se aproximava.

- Meu senhor, me desculpa, porque querer ajudar eu quero. Mas acontece que eu também sou analfabeta!

Cláudio Renato.