sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Ele só queria ver a rede estufar!

O Múcio Luiz é Bezerra...


...e, como Dario, só quer ver a rede estufar



Além de Múcio Bezerra, este texto é dedicado aos saudosos amigos Elaine Rodrigues, Rodolfo de Bonis e Sebastião Reis, que evitaram os calhaus da vida, anteciparam o fechamento e foram embora mais cedo.



Dario veste a camisa 9 do Internacional na decisão antecipada contra o Fluminense, domingo de muito sol no Maracanã, 10 de outubro de 1976. Empate eletrizante, 1 a 1. Rivelino e Falcão não jogam. Outros craques estão em campo. Pintinho, Gil, Paulo César Caju e Carlos Alberto Torres compõem a Máquina Tricolor. Batista, Manga, Lula e Figueiroa defendem o Expresso Colorado. Jogo nervoso, disputadíssimo. Em determinado momento de pressão carioca, no segundo tempo, o contra-ataque gaúcho: Batista retoma a bola na intermediária e lança, em profundidade, o ponta-esquerda Lula que, veloz, se livra do goleiro Renato e toca para a meia-lua. Gol vazio. Dadá Maravilha bombardeia. Jorge Cúri berra aos ouvidos em suspense. A bola toma velocidade e efeito espantosos, raspa o travessão. Alívio de um lado. Irritação de outro. Perplexidade geral.


Ao ser substituído por Escurinho, Dario é imediatamente cercado pelos microfones.


- O que houve, Dadá? O gol estava vazio...era só dar um totozinho que a bola entrava...


Dadá para à beira do gramado, respira fundo, sorri e sentencia:


- Eu queria era ver a rede estufar!

Pelas ondas do rádio, a resposta singela de um goleador folclórico incendiava a imaginação. Terceiro maior artilheiro do futebol brasileiro (926 gols de todos os ângulos e maneiras), Dario filosofara. Era a questão exata: as pessoas já se conformavam (conformam-se cada vez mais) com o meio-gol, o gol mixuruca, chorado, medíocre, em que a bola às vezes sequer toca na rede. E piorou muito nos últimos 30 anos. O importante é somar um pontinho, para se manter no G-4, no G-8, no G-12 (expressões emprestadas ao economês), como um país emergente no "mundo plurilateral". Qualquer migalha serve, desde que nos ajude a pôr os pés em certames lucrativos, uma Libertadores, uma Sul-Americana. O desprezo pela bola e pela rede é indignante!


Muitos anos depois, a história do petardo de Dario voltaria a ser lembrada na conversa inaugural com o companheiro Múcio Bezerra, no Galeto, na Rua de Santana, em frente a O Globo, entre doses de Teacher's, Red Label, azeitonas, rodelas de salaminho e cubinhos de queijo prato. Estávamos nos conhecendo naquela tarde e começando a construir uma amizade que superaria barreiras geográficas e temporais. Múcio ajeitava os óculos e prestava atenção de coruja. Três horas se passaram, o assunto mudara completamente de rumo, e Múcio, a cabeça um tanto tonta, preparava-se para partir, quando rematou, escandindo as palavras:


- É, rapaz...Essa história do Dario é do caralho...Dava uma puuuta matéria! Eu que-ro é ver a re-de es-tu-far! Ho! Ho! Ho! (Ele tinha uma risada de Papai Noel).

A partir de então, a sentença do Dario se tornaria um código secreto entre nós, palavras de incentivo mútuo, diante de uma boa história, de uma "puuuuuta matéria". E mesmo com uma pauta ingrata, Múcio saía feliz da redação e quase sempre surpreendia a chefia, porque construía, com observação sagaz e texto brilhante, a "puuuuuta matéria." Voltava esfregando as mãos:

- É hoje...é hoje que a rede vai estufar!


Certa vez, Múcio telefonou à noite para o flat onde morávamos em São Paulo para comentar uma reportagem de três páginas veiculada na Gazeta Mercantil, "O Rio que fez de um Joaquim Maria o Machado de Assis", a propósito do centenário da primeira edição de Dom Casmurro.

- Aíii, canalha! A rede estufou e deu para ouvir o barulho da arquibancada!

Jornalista que não trabalhou nas redações de O Globo e do JB nos últimos 15 anos do século passado, tem um motivo justo para se sentir frustrado: o de não ter labutado, aprendido, conhecido, convivido e bebido com o Múcio Bezerra, o texto mais criativo da imprensa carioca. Múcio tinha tudo o que, infelizmente, falta à parcela significativa dos colegas de hoje: competência, generosidade, companherismo, inteligência, sensibilidade crítica, adoração transgressora pelas palavras e muito bom humor. Ele nunca se levou a sério, condição sine quae non para se ser realmente levado a sério. Jamais foi carreirista, lambe-botas ou puxa-saco, motivo por que, talvez, fosse tão sinceramente querido por Evandro Carlos de Andrade, diretor de redação de O Globo por 25 anos, e por todos os funcionários do jornal, os colegas de profissão, as secretárias, as telefonistas, os faxineiros e os ascensoristas.


Um dia, por castigo, inveja ou bizarrice, inventaram de escalar o Múcio, por uma semana, na Repol, salinha de três metros quadrados da apuração, com duas linhas telefônicas, dois terminais de computador (Internet não havia) e um velho aparelho de radioescuta, que captava as frequências emitidas pelas centrais de telecomunicações dos bombeiros e das polícias civil e militar. Surpreendentemente, ele adorou a experiência. Pendurava o indefectível paletó cinza escuro no encosto da cadeira e ficava lá no canto, ouvido grudado no radinho, como torcedor fanático em final de campeonato. Anotava tudo. Em dois ou três dias, estava escolado no policialês.

Naquela semana de degredo, Múcio chegava sorridente à Sibéria particular:


- Alô, Repol, na escuta? Câmbio, guarnição em QAP! - anunciava, às gargalhadas.

- Companheiro Papa Mike, a genitora do mesmo elemento que se evadiu procurou um Papa Fox e um Bravo Mike, dizendo se tratar de um Papa Índia, que entrou num Tango Xiraia...- tartamudeava o rádio fanho.


Exegeta do submundo, Múcio concentrava-se para fazer a tradução simultânea: "Caro policial militar, a mãe do homem que fugiu procurou um policial federal e um bombeiro conhecidos, dizendo que o filho era um pé-inchado e escapara num táxi..." Restava só decodificar os números cantados no rádio da polícia: 121, 159, 932... e decorar os que correspondiam a homicídio, extorsão mediante sequestro, encontro de cadáver...

Feito o curso intensivo de Direito às avessas, Múcio redigiu uma reportagem extraordinária sobre o estranho léxico policialês. A reportagem foi sucesso de público e crítica. Divulgava para a sociedade, divertidamente, como a imprensa tinha acesso privilegiado (e proibido) às informações básicas das ocorrências policiais.

- Viu lá? A rede estufou! Golaço! Ho-ho-ho! - comemorava o potiguar, que talvez nunca tenha chutado uma bola.

Quando saía da redação às sextas-feiras (às vezes, em dias menos convenientes também), Múcio preparava-se para o serão, repórter diuturno que era. O itinerário começava no Bar do Felipe, na Rua Irineu Marinho, passava pelo Galeto e pelo Rocha (na Rua do Riachuelo, em frente ao jornal O Dia), seguia pela Gomes Freire, a Mem de Sá, a Lapa, a Praça XV...até chegar a Niterói, para a saideira sagrada no Steak House. Nas andanças noturnas, colhia histórias de putas, mendigos, malandros, boêmios, policiais do Coe (hoje Bope)... E as escrevia como ninguém!


Quem não se lembra das crônicas-reportagens do jaboti vítima de bala perdida de fuzil, do cachorro que calculava, do perfil romário do pai do Hilário ("o copo do mundo é nosso!"), da cadeira do Luís Carlos Prestes, da avenida do Sr. Amaral e do Sr. Peixoto? Praticamente, ninguém. É por isso que os repórteres Fábio Lau e Elenilce Bottari ("as mais belas e torneadas pernas do jornalismo", segundo o homenageado) decidiram se empenhar no lançamento de uma coletânea da obra jornalística de Múcio Bezerra,"uma campanha do jornalismo esperança". Sem deducão fiscal, todo o dinheiro arrecadado com a venda do livro será revertido para a família do jornalista, as filhas Aline e Maria e o gato de estimação, o Duque de Macau, cidade de 28 mil habitantes, a 175 quilômetros de Natal, onde nosso craque nasceu.


Múcio, aliás, tinha paixão por felinos e uma das últimas publicações em que trabalhou se chamava O Pulo do Gato. Um dia interrompeu o trabalho, porque a mulher o telefonara chorando: um gato siamês - das dezenas que teve - jogara-se do décimo-terceiro andar. "Os siameses são suicidas, e agora a minha casa virou uma UTI", ria-se, no dia seguinte, ao imitar o pobre gato com as quatro patas enfaixadas, depois de socorrido por uma guarnição da Defesa Civil. O amor pelos gatos inspirava até a ética muciana. "Sou muito leal, mas jamais serei fiel", dizia. "Fidelidade é uma atribuição canina, a lealdade é leonina, e o leão nada mais é que um grande gato."


Depois de trabalhar como topógrafo e técnico de Estradas de Rodagens - mais uma estranha coincidência que nos unia -, Múcio fez Jornalismo no início dos anos 80 e começou em redação com mais de 30 anos. Tinha opiniões próprias sobre o exercício da profissão. Dizia, por exemplo, que jabá é tudo aquilo que se recebe e não se pode retribuir de pronto, se necessário. "Jabá é carro, apartamento, dinheiro. O que há de mau em receber de uma assessoria uma caneta, um bloquinho, uma agenda ou uma garrafa de uísque? São tão úteis pra nós!", ponderava. Múcio também se empombava com a históra de jornalista depender de fontes, as mesmas pessoas que constantemente passam informações supostamente exclusivas a troco de vai se saber o quê. "Ora, ora, ora...quem tem fonte é cemitério e jardim!"


Múcio bebia muito (uísque e cerveja) e também fumava demais (pelo menos três maços diários de Minister), mas nunca bebeu durante o expediente convencional. Às vezes, de ressaca, preferia faltar ao trabalho a dar bandeira. Só uma coisa intrigava o departamento financeiro, quando Múcio voltava de viagens custeadas pelo jornal: a quantidade de jarras de suco que ele declarava, em notas fiscais, ter bebido a cada refeição. "Ele deve ter pedras nos rins", disfarçavam os mais chegados. Durante o carnaval, por exemplo, só água mineral com gás. Tinha à disposição duas páginas inteiras de crônica para cada dia de desfile das principais escolas de samba. Mesmo quem passava a madrugada na Passarela, só entendia a confusão, o burburinho, as tragédias e maravilhas do desfile, lendo o Múcio Bezerra do dia seguinte. E ele curtia aquela sensação, aquele estufar das redes. E desdenhava dessa vidinha medíocre do zero a zero.


Múcio Luiz Bezerra lutou contra o câncer até a madrugada do último 12 de maio, quando nos deixou, aos 60 anos. Viveu os últimos dias em Nova Friburgo, na região serrana do Rio, em dificuldades financeiras e com a ajuda de amigos. Assim mesmo, com a voz fraquinha, atendia ao telefone com o mesmo sorriso de Papai Noel e a pergunta recorrente: "E aí? A rede vai estufar?"


Cláudio Renato






sábado, 22 de agosto de 2009

Entre Canudos e Piedade, o Cosme Velho

Euclydes no enterro de Machado de Assis, em 1 de outubro de 1908. Ele carrega o caixão, juntamente com Olavo Bilac, Graça Aranha, Coelho Netto, Rui Barbosa, Raimundo Correia, Rodrigo Otávio e Affonso Celso
Euclydes da Cunha
Por ocasião do centenário da morte de Euclydes da Cunha, assassinado aos 43 anos, em 15 de agosto de 1909, uma tragédia social e outra pessoal são lembradas recorrentemente. A primeira é a de Canudos, no sertão baiano, entre os outubros de 1896 e 1897, quando pelo menos 25 mil jagunços foram dizimados por quatro expedições do Exército da Primeira República. A segunda é a de Piedade, subúrbio do Rio, onde Euclydes encontrou o próprio fim ao invadir a casa do comborço, o tenente Dilermando de Assis, pai de dois filhos da mulher de Euclydes, Saninha, registrados pelo escritor. O primeiro deles, Mauro, nascido em 1906, morreu com uma semana de vida, porque Euclydes o trancara em um quarto e não deixara que a mãe o alimentasse. Exímio atirador, Dilermando deu cabo à vida de Euclydes e, seis anos mais tarde, à de Euclydes da Cunha Filho, o Clidinho, que tentava vingar a morte do pai. Ana de Assis viveu 15 anos com Dilermando até ser abandonada, aos 50 anos, com cinco filhos.
Em Canudos, Euclydes da Cunha, egresso da Escola Militar e republicano de primeira cepa, recolhera, como correspondente do jornal A Província de São Paulo (atual O Estado de S. Paulo), farto material para escrever Os Sertões (1902), a reportagem excepcional que faz dele, no Brasil e no mundo, um dos pioneiros do Novo Jornalismo avant la lettre. Para o leitor moderno, a primeira parte do livro é chatíssima, concessão natural ao realismo e ao determinismo vigentes à época. O final da obra, contudo, é eletrizante, porque o próprio Euclydes, como repórter, superara, diante da realidade, os preconceitos iniciais, de que Antônio Conselheiro seria um corifeu monarquista com articulações internacionais, fanático, anarquista, socialista, líder de uma espécie de Vendeia, a comunidade rural francesa que resistira à Revolução de 1789 em prol do Rei e do Vaticano. Sequer armas os sertanejos tinham, a não ser aquelas que capturavam dos soldados. Foram chacinados e covardemente degolados homens, mulheres, velhos e crianças.
Depois de descrever as atrocidades de Canudos e antes de morrer a tiros em Piedade, Euclydes da Cunha testemunhou a morte do maior escritor que o Brasil já teve e jamais terá, Joaquim Maria Machado de Assis, na casa 24 da Rua Cosme Velho, no Rio de Janeiro, em 29 de setembro de 1908. Euclydes deixou um texto apaixonado e muito pouco conhecido sobre a morte do mestre, vítima de câncer na língua. Está registrado em uma página amarelada no Arquivo do Centro de Memória da Academia Brasileira de Letras. Euclydes descreve, emocionado, os últimos momentos de Machado de Assis - triste e solitário - e a aparição inesperada, naquela noite, de um menino anônimo "entre os 16 e 18 anos". Ele não identifica o rapaz, recusa-se a fazê-lo, mas exalta-lhe a atitude. "Qualquer que seja o destino dessa criança, ela nunca mais subirá tanto na vida. Naquele momento o seu coração bateu sozinho pela alma de uma nacionalidade. Naquele meio segundo – no meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis – aquele menino foi o maior homem de sua Terra."
Eis o testemunho histórico de Euclydes da Cunha:

"Na noite em que faleceu Machado de Assis, quem penetrasse na vivenda do poeta, em Laranjeiras, não acreditaria que estivesse tão próximo o desenlace de sua enfermidade. Na sala de jantar, para onde dizia o quarto do querido mestre, um grupo de senhoras – ontem meninas que ele carregara no colo, hoje nobilíssimas mães de família – comentavam-lhe os lances encantadores da vida e reliam-lhe antigos versos, ainda inéditos, avaramente guardados em álbuns caprichosos.

As vozes eram discretas, as mágoas apenas rebrilhavam nos olhos marejados de lágrimas, e a placidez era completa no recinto, onde a saudade glorificava uma existência, antes da morte. No salão de visitas viam-se alguns discípulos dedicados, também aparentemente tranqüilos. E compreendia-se desde logo a antilogia de coração tão ao parecer tranqüilos na iminência de uma catástrofe. Era o contágio da própria serenidade incomparável e emocionante em que ia a pouco e pouco extinguindo-se o extraordinário escritor.

Realmente, na fase aguda de sua moléstia, Machado de Assis, se por acaso traía com um gemido e uma contração mais viva o sofrimento, apressava-se a pedir desculpas aos que o assistiam, na ânsia e no apuro gentilíssimo de quem corrige um descuido ou involuntário deslize. Timbrava em sua primeira e última dissimulação: a dissimulação da própria agonia, para não nos magoar com o reflexo da sua dor. A sua infinita delicadeza de pensar, de sentir e de agir, que no trato vulgar dos homens se exteriorizava em timidez embaraçadora e recatado retraimento, transfigurava-se em fortaleza tranqüila e soberana. E gentilissimamente bom durante a vida, ele se tornava gentilmente heróico na morte...

Mas aquela placidez aguda despertava na sala principal, onde se reuniam Coelho Neto, Graça Aranha, Mário de Alencar, José Veríssimo, Raimundo Correia e Rodrigo Otávio, comentários divergentes. Resumia-os um amargo desapontamento. De um modo geral, não se compreendia que uma vida que tanto viveu outras vidas, assimilando-as através de análises sutilíssimas, para no-las transfigurar e ampliar, aformoseadas em sínteses radiosas – que uma vida de tal porte desaparecesse no meio de tamanha indiferença, num círculo limitadíssimo de corações amigos.

Um escritor da estatura de Machado de Assis só devera extinguir-se dentro de uma grande e nobilitadora comoção nacional. Era pelo menos desanimador tanto descaso – a cidade interira, sem a vibração de um abalo, derivando imperturbavelmente na normalidade sua existência complexa, quando faltavam poucos minutos para que se cerrassem quarenta anos de literatura gloriosa...

Neste momento, precisamente ao enunciar-se este juízo desalentado, ouviram-se umas tímidas pancadas na porta principal da entrada. Abriram-na. Apareceu um desconhecido: um adolescente, de 16 a 18 anos no máximo. Perguntaram-lhe o nome. Declarou ser desnecessário dizê-lo: ninguém ali o conhecia; não conhecia, por sua vez, ninguém; não conhecia o próprio dono da casa, a não ser pela leitura de seus livros, que o encantavam. Por isto ao ler nos jornais da tarde que o escritor se achava em estado gravíssimo tivera o pensamento de visitá-lo. Relutara contra essa idéia, não tendo quem o apresentasse: mas não lograra vencê-la. Que o desculpassem, portanto. Se não lhe era dado ver o enfermo, dessem-lhe ao menos notícias certas do seu estado. E o anônimo juvenil – vindo da noite – foi conduzido ao quarto do doente. Chegou. Não disse uma palavra. Ajoelhou-se. Tomou a mão do mestre; beijou-a num belo gesto de carinho filial. Aconchegou-o depois por algum tempo ao peito. Levantou-se e, sem dizer palavra, saiu. À porta José Veríssimo perguntou-lhe o nome. Disse-lho. Mas deve ficar anônimo.

Qualquer que seja o destino dessa criança, ela nunca mais subirá tanto na vida. Naquele momento o seu coração bateu sozinho pela alma de uma nacionalidade. Naquele meio segundo – no meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis – aquele menino foi o maior homem de sua Terra. Ele saiu – e houve na sala há pouco invadida de desalentos uma transfiguração. No fastígio de certos estados morais concretizaram-se às vezes as maiores idealizações. Pelos nossos olhos passara a impressão visual da Posteridade."


Aquela "criança" se chamava Astrojildo Pereira. Tinha 18 anos. E seria, em 1922, o fundador do Partido Comunista do Brasil (PCB) e um dos principais intelectuais marxistas no Brasil até a morte, em 1965. Euclydes tinha razão: Astrojildo Pereira nunca subiria tão alto na vida quanto naquela noite, no antigo bangalô do Cosme Velho.


Cláudio Renato

domingo, 16 de agosto de 2009

As razões do Doutor Getúlio



À memória de Leonel Brizola (1922-2004)

Apesar de aboiar em uma estância pobre, Getúlio tinha, àquela altura, quase 60 anos, duas pretendentes ricas e poderosas: Germânia e América. A primeira, autoritária e sonhadora. A outra, caprichosa e interesseira. Ambiciosas, queriam açambarcar o mundo, mas, para tanto, precisavam de uma pousada bélica no ensolarado litoral do Nordeste brasileiro com vista privilegiada para a África. As duas disputavam a atenção de Getúlio, que não queria saber de compromisso. Em setembro de 1939, Germânia, em acesso de fúria e excesso de covardia, empastelou a Polônia - singela camponesa do Leste Europeu - e mostrou a Gegê e a quem mais se atrevesse a enfrentá-la que não estava para brincadeiras. A América também brandia seus rolos de pastel. Elas passaram a exigir do estancieiro gaúcho uma definição. Como todo macho latino, ele odiava discutir relações e conseguiu, durante três anos, cozinhar o galo e se manter politicamente solteiro.



Determinada e arrogante, Germânia despertou a cobiça de Getúlio, em suas conveniências e interesses secretos. Ela não queria exatamente se casar com o caudilho atarracado de São Borja, mas, pelo menos, impedir que ele se unisse à rival mais jovem e à Inglaterra, então a principal inimiga. O chefe do Brasil chegou a atacar diretamente o liberalismo hipócrita e ciumento da América e a se irritar com aqueles que queriam que rompesse definitivamente com as pretensões germânicas. "Grande parte desses elementos que aplaudem esta atitude (romper relações diplomáticas com a Alemanha) são os adversários do regime que fundei (o Estado Novo), e chego a duvidar que possa consolidá-lo para passar tranquilamente o governo ao meu substituto", ameaçou. "Parece-me que os americanos querem nos arrastar à Guerra, sem que isso seja de utilidade, nem para nós, nem para eles", ponderou. "É mais fácil uma cobra fumar do que o Brasil entrar na Guerra", ironizou. Ameaças, ponderações, ironias jamais feitas publicamente, mas descobertas no Diário de Getúlio Vargas (1917-1942). O papelório foi guardado ciosamente, por quatro décadas após o suicídio de Getúlio, pela filha Alzira Vargas do Amaral Peixoto e revelado pela neta, a pesquisadora Celina Vargas do Amaral Peixoto, do Centro de Pesquisas e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas.



Público era que o governo brasileiro, nem por decreto, queria entrar na Guerra. Aliás, por um decreto (DL 1.561/39), publicado em 2 de setembro de 1939, dia seguinte à deflagração do conflito, tornava explícito que nos incluíssem fora dessa. "O Governo do Brasil abster-se-á de qualquer ato que, direta ou indiretamente, facilite, auxilie ou hostilize a ação dos beligerantes. Não permitirá também que os nacionais ou estrangeiros, residentes no país, pratiquem ato algum que possa ser considerado incompatível com os deveres de neutralidade do Brasil", dizia o documento.



O fim da história é conhecido. Por causa de uma conferência de países sul-americanos, no início de 1942, no Rio de Janeiro, Germânia dediciu dar um corretivo em Gegê. O ditador não queria, de jeito e maneira, aquela reunião de representantes diplomáticos aqui, porque temia justamente a represália alemã. Os países vizinhos decidiram, no Rio, condenar o ataque dos japoneses a Pearl Harbor, no Havaí, e romper relações com os países do Eixo (Alemanha, Itália e Japão). A América entrou na guerra, de norte a sul. Vinte e um submarinos alemães e dois italianos afundaram 36 navios mercantes brasileiros e deixaram 1.691 náufragos e 1.074 mortos pela costa brasileira.



Getúlio casou-se com a América na polícia, de papel passado, em troca de uma usina de aço em Volta Redonda e de uns afagos de Walt Disney e Orson Welles. Os americanos montaram a tão sonhada base militar no Rio Grande do Norte. A Força Expedicionária Brasileira (FEB) rumou para a Itália, 454 heróis nacionais desconhecidos foram fabricados pela história dos vencedores, e o país foi inundado de ioiôs importados dos Estados Unidos.

A propósito do momento do crítico vivido por Getúlio Vargas, entre pressões de aliados e germanófilos, sob a expectativa de o Brasil entrar ou não na Segunda Guerra, Leonel Brizola nos contou, em Montevidéu, uma história divertida e instrutiva da dialética getulista. O depoimento deveria constar de uma reportagem especial sobre os 60 anos do Estado Novo no jornal O Estado de S.Paulo. Um tema delicado para a elite paulistana, que nutre ódio eterno a Getúlio, contra quem levantou uma "revolução constitucionalista" em 1932. São Paulo, a capital, talvez seja a única cidade do Brasil em que nada deva lembrar Getúlio. Praças, hospitais, avenidas e ruas Brasil afora, Getúlio lá só é nome da própria fundação, que os paulistas, constrangidos, chamam de GV. Eles têm os motivos deles. Pelo sim e pelo não, a reportagem foi muito bem publicada, mas o depoimento de Brizola, não. Segue-se então a história (ou anedota) relatada pelo ex-governador do Rio e do Rio Grande do Sul.


Getúlio vivia dias turbulentos naqueles idos de 1942. Certa tarde, estava no gabinete presidencial com a primeira-dama, Darcy, quando o ministro do Exército, Eurico Gaspar Dutra, agitado e insuflado pelo chefe do Estado-Maior, Pedro Aurélio de Góes Monteiro (germanófilo assumido), pediu licença para falar com o presidente.

- Pode falar, Dutra!

- Presidente, tenho conversado com Góes Monteiro e outros oficiais superiores. Estamos convencidos que o Brasil não pode tomar partido dos americanos e ingleses. O Brasil não pode entrar na Guerra. Seria sacrificar vidas à toa. Uma nova ordem mundial pode estar surgindo e não podemos nos precipitar...

Getúlio olhava Dutra atentamente. Eles se conheceram, rapazotes, nos primeiros anos dos 1900 durante o serviço militar no Rio Grande. Dutra e Góes Monteiro eram cadetes da escola em Porto Alegre. Gegê, sargento, participaria da Coluna Expedicionária do Sul, que se deslocou para Corumbá, em 1902, durante a disputa entre a Bolívia e o Brasil pelo Acre. Caminhavam juntos na vida e na política havia 40 anos.

Quando Dutra parou de falar, Getúlio deu-lhe um abraço fraternal e emocionado:

- Amigo Dutra, você tem razão!

E o ministro do Exército deixou o gabinete sorridente e triufante.

Coincidentemente, poucos minutos se passaram, até que se anunciasse a presença do ministro das Relações Exteriores, Oswaldo Aranha, o maior aliado dos Aliados no governo brasileiro.

- Presidente, venho lhe falar de guerra e de paz. Só existe uma maneira de o mundo ficar em paz. É preciso lutar contra as loucuras e atrocidades de nazistas e fascistas. O Brasil pode exercer um papel estratégico nesta Guerra, a favor da liberdade e da democracia...

Getúlio não desgrudava os olhos de Aranha, a quem conhecera em 1917. Nessa época, Gegê já era advogado e Aranha mantinha uma banca na cidade de Uruguaiana, no Rio Grande. As consultas sobre assuntos jurídicos passaram a ser frequentes e ambos chegaram a ter clientes comuns. As afinidades nas lides políticas só estreitariam mais a amizade e a confiança com o passar dos anos.

Quando Oswaldo Aranha se calou, Getúlio segurou firmemente os dois braços do ministro e o encarou decidido:

- Querido Aranha, você tem razão!

O chanceler abriu um largo sorriso, cumprimentou o chefe e saiu flutuante do gabinete.

Dona Darcy, que a tudo assistira, não se conteve. Levantou-se e interpelou o marido:

- Getúlio, o que é isso? São seus amigos e colaboradores fiéis... Vieram tratar do mesmo assunto, muito grave, falaram coisas opostas e você deu razão aos dois?

Gegê olhou com ternura para a mulher, com quem se casara havia mais de 30 anos e tivera cinco filhos. O próprio casamento, um ato político, acabara com a rivalidade de duas famílias iniciada na Revolução Federalista de 1893, uma história de Romeu e Julieta às avessas.

Getúlio esperou Darcy acabar de falar e sorriu complacentemente. Segurou as mãos da mulher, acariciou-lhe demoradamente o rosto e, por fim, obtemperou:

- Darcy, minha amada companheira... Você também tem razão!


Cláudio Renato



VEJAM E OUÇAM DISCURSO DE GETÚLIO VARGAS, NO DIA DO TRABALHADOR DE 1951, NO ESTÁDIO SÃO JANUÁRIO.
http://www.youtube.com/watch?v=LQCV1iFegZg

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Borges, entre Homero e Gardel


"Creio que há algo essencialmente portenho em mim, para além das minhas opiniões. Devo tal convicção a um fato secreto. Ultimamente, tenho viajado muito e gostado muito de descobrir cidades, ainda que as descubra pelos olhos dos outros, porque estou cego. Mas, com certeza, todas as noites tenho sonhos muito diferentes, e nos meus sonhos sempre estou em Buenos Aires."

(Borges, aos 86 anos, pouco antes de morrer em Genebra)


Jorge Luis Borges (1899-1986) viveu os primeiros 20 anos praticamente enclausurado entre livros, dicionários, enciclopédias. Os últimos 30 foram roubados pelas trevas da cegueira hereditária e progressiva. Entre os dois exílios de fantasias e sombras, situam-se três décadas de um cidadão comum, que experimentou em Buenos Aires o mundo real das formas e das cores, mesmo enxergando mal. A cidade é cenário de seus ensaios e contos mais importantes e enigmáticos. A luz, ainda que bruxuleante, o aproximava de Gardel. As sombras o remetiam ao grego Homero, poeta cego do século VIII a.C ao qual se atribui a autoria das epopeias fundadoras da literatura ocidental, Ilíada e Odisséia.


Borges, que em 24 de agosto completaria 110 anos, não concebia para si alternativa possível a Buenos Aires. "Se houvesse nascido em qualquer outra parte, em Yorkshire, um lugar mais lindo que este, não seria eu, mas outra pessoa." Adolfo Bioy de Casares, um dos grandes expoentes da literatura argentina do século XX, deixou um testemunho sobre o amigo antes de morrer, em 1997. "Borges temia viajar na velhice porque não queria morrer longe da cidade natal." Mesmo doente foi para a Europa, em 1985, porque não queria contrariar Maria Kodama, a última mulher, de quem dependia completamente no fim da vida. É incrível que, até hoje, o parlamento argentino discuta o repatriamento dos restos mortais do maior escritor do país, que está sepultado em Genebra e expressava o desejo veemente de, na eternidade, voltar a morar em Buenos Aires, no cemitério da Recolleta.


Por ocasião do centenário de morte de Borges, estivemos em Buenos Aires para uma reportagem especial publicada no Fim de Semana, o caderno cultural da Gazeta Mercantil. Entre queijos e vinhos, na casa de um professor de literatura argentina, apaixonado pela cultura brasileira, falávamos (como sempre) de Dorival Caymmi. Bem-humorado, o anfitrião arrematou. "Como diria Borges, quem não gosta de tango bom sujeito não é!"

No verão de 1914, Borges sentiria, pela primeira vez, nostalgia da cidade, quando o pai, o advogado Jorge Guillermo Borges, levou a família para a Europa: a mulher, a sogra e a filha de 12 anos - as três Leonores - e o menino Georgie, então com 14 anos, que, aos 7, escrevera um conto baseado em Dom Quixote e, aos 11, publicara a tradução de O príncipe feliz, de Oscar Wilde.
Pertencente à quinta geração que padecia de cegueira degenerativa na família, Jorge Guillermo viajava para consultar um oftalmologista em Genebra. Enquanto durassem os prováveis meses de tratamento, os filhos estudariam num colégio suíço. A Primeira Guerra dilatou para sete anos a estada no Velho Mundo. "Os anos que vivi na Europa são ilusórios/Estava sempre (e estarei) em Buenos Aires", resgistraria Borges, no poema Arrabal (1943).
Jorge Guillermo e o Georgie adoraram a viagem. Georgie, aliás, era o apelido de Borges, dado pela avó materna, a inglesa Fanny Haslam de Borges, que morreu aos 93 anos, também cega, sem ter querido aprender a falar espanhol. As três Leonores, enjoadas, recolheram-se ao camarote. Quando o navio aportou no Rio de Janeiro, Georgie ficou observando a cidade, que considerou encantadora. De repente, fixou o olhar em outro garoto, que declamava um poema popular, que Borges se recordaria com emoção na velhice. "Minha terra tem palmeiras/ onde canta o sabiá/ As aves que aqui gorjeiam/não gorjeiam como lá". O final do poema de Antônio Gonçalves Dias (1825-1864) provocaria lágrimas no pré-adolescente argentino. "Não permita Deus que eu morra/sem que volte para lá."
O episódio é contado por Maria Esther Vàzquez na biografia Jorge Luis Borges - Esplendor e Derrota (publicada no Brasil pela editora Record). Ela compara os destinos do portenho Borges e do maranhense Gonçalves Dias. Filho mestiço de um comerciante português e de uma cafuza, Dias estudou na Universidade de Coimbra, em Portugal. Voltou ao Brasil, mas, tuberculoso, foi obrigado a retornar à Europa. Ao perceber que não teria salvação, o poeta e dramaturgo brasileiro, aos 39 anos, quis morrer onde nascera. O navio que o trazia de volta naufragou perto da costa do Maranhão. "Borges também não teve sorte", diz Maria Esther. "Doente, morreu longe da cidade que tanto amara."

Borges gostava de percorrer sua cidade em longas caminhadas. Em El Tamaño de Mi Esperanza (1926), enfatiza que "é preciso encontrar-lhe a poesia, a música, a pintura, a religião e a metafísica que se coadunam com tamanha grandeza." Errante do centro e dos bairros pobres, considerava a cidade um labirinto de linhas retas e paralelas. "Buenos Aires é profunda e nunca, na desilusão ou no penar, me abandonei às suas ruas sem receber inesperado consolo." Já consagrado, divertia-se com o assédio dos fãs. "Eles me consideram um velho poeta cego, um Homero local."
Eterno candidato ao Prêmio Nobel, caminhava um dia qualquer de 1980 escorado pelo amigo Roberto Alifano pelo setor bancário da rua San Martín, quando, da boleia de um caminhão, um homem, entusiamado, berrou a plenos pulmões: "Borges e Maradona para todo mundo!" O escritor gargalhou. "Caramba! Vá gritar assim em Estocolmo; quem sabe não conseguiria convencer a Academia Sueca?" Conta a lenda que Borges, já cego, com o apoio da bengala, ao atravessar a avenida 9 de Julio, a mais larga do mundo, com 144 metros de pista, sentiu uma pressão em um dos braços. Alguém o acompanhava na longa travessia até a calçada oposta, onde Borges ficou surpreso ao ouvir a voz comovida. "Agradeço por ter guiado este cego."
Para Borges, o momento mais importante da vida "foi a volta de minha primeira viagem à Europa, em 1921." A partir de então, o escritor pôs-se a esquadrinhar Buenos Aires, principalmente os subúrbios das rinhas de galo, dos pampas, dos cuchilleros e compadritos, desordeiros que defendiam a honra na ponta do punhal. Dessa investigação, surgiram livros de poesia, como Fervor de Buenos Aires (1923), Luna de enfrente (1925) e Cuaderno San Martin (1929), além dos ensaios Inquisiciones (1925), El Tamaño de Mi Esperanza (1926) e Evaristo Carriego (1930).

Na Europa, Borges esteve envolvido com o ultraísmo (movimento de vanguarda). Em Buenos Aires, desenvolveu o que chamava de criollismo. Gostava do tango original, prostibulário, e chegou a menosprezar o sentimental Carlos Gardel (1890-1935), mas voltaria atrás. "Tenho notado que, em geral, os canalhas são sentimentais. Está comprovado no tango, música canalha e sentimental ao mesmo tempo."
Borges compôs letras de milongas musicadas por Astor Piazzola. Desprezava sistematicamente o bairro La Boca, onde fica o Caminito, uma das ruas mais conhecidas do mundo, com conventillos coloridos. Era talvez o único sítio popular que evitava, apesar de considerá-lo interessante. Colonizada por imigrantes genovezes, La Boca, às margens do rio Riachuelo, seria, para Borges, "menos argentino" que outros bairros do sul. Para o mexicano Carlos Fuentes, "o primeiro narrador totalmente centrado na cidade é Borges." Quando dirigiu a Biblioteca Nacional (1955-1973), Borges, completamente cego, não podia desfrutar do paraíso de 900 mil livros ao alcance das mãos. Ocupava-se então em brincar com um globo terrestre; fazendo-o girar, punha o dedo num ponto e torcia. "Tomara que seja em Buenos Aires." Diante do eventual insucesso, reagia: "Não se pode ter tudo na vida."
Cláudio Renato
OUÇAM EL TANGO, COM POEMA DE JORGE LUIS BORGES

terça-feira, 4 de agosto de 2009

O feiticeiro do Boulevard

Só com muita ingenuidade ou caradurismo se pode ignorar o recado explícito deixado por Noel Rosa em "Feitiço da Vila", quando, ao quebrar o paralelismo geográfico e lógico, diz que "São Paulo dá café, Minas dá leite e a Vila Isabel dá samba." Aliás, a canção antológica, parceria com Vadico, de 1934, foi motivo de recentes remoques verborrágicos e politicamente corretos de Caetano Veloso, o mesmo que se diz melhor que Chico Buarque, Milton Nascimento e Gilberto Gil juntos. Para chocar uma plateia que ainda consegue ou finge se surpreender com as polemicazinhas por ele fabricadas, Caetano descarrega, entre tantos vitupérios, o argumento de que "Feitiço da Vila" é "basicamente uma canção racista", "afirmação da classe média letrada contra os sambas de morro, próximos ao candomblé", principalmente ao exaltar "o feitiço sem farofa, sem véu e sem vintém" e contrapor o bacharel ao bamba. Com didática capciosa, o antigo compositor baiano cantarola e debocha da obra de Noel, do começo ao fim, para um público aparentemente idiotizado..."Tendo o nome de princesa... Isabel? Entenderam? É a princesa Isabel...". Aplausos e risos patéticos, automáticos, obedientes.


Será que o senhor do Recôncavo sabe que, além de consagrar Noel, a Vila é um bairro cujos nomes das ruas são dedicados a datas e a personalidades relacionadas à Abolição da Escravatura? Será que pensa que o morro dos Macacos tem esse nome por maquinação racista? Será que sabe que naquele maciço, no princípio Mata Atlântica, viviam milhares de macaquinhos pretos, macacos-prego e grajaús? Caetano buscava pretexto para atacar o pesquisador José Ramos Tinhorão, inimigo dos tropicalistas, crítico da bossa nova, que condenava a apropriação indébita do samba dos favelados pela elite branca do Rio. E aproveitou o ensejo: "Ele passou anos atacando violentamente Antonio Carlos Jobim, Carlinhos Lyra e outros porque estariam se apropriando indevidamente do samba, a zona sul se apropriando do samba do negro favelado... e do Noel Rosa ele não fala nada." Um festival de baboseiras que Caetano desfila como se anunciasse a novidade antropológica do século. "Essa música sempre me deixou uma tremenda pulga atrás da orelha". Não diga!


Muita gente sabe que Noel Rosa, o meio-bacharel em Medicina - ele cursou três anos da faculdade - vivia em escaramuças, dizem que também forjadas, com Wilson Batista, negro malandro frequentador da Lapa que, afora os Arcos, nada tem a ver com a atual Vila Madalena carioca. Para sacanear o bairrismo de Noel, Wilson Batista fez "Conversa Fiada" e o compositor de Vila Isabel respondeu com o extraordinário "Palpite Infeliz." Tudo em 1935. As altercações duraram mais algumas canções e foram encerradas por uma grosseria histórica de Batista, o samba "Frankenstein da Vila" em alusão à feiúra do poeta, que tivera, ao nascer, o queixo afundado a fórceps. Diz a letra :"Boa impressão nunca se tem/ Quando se encontra um certo alguém/Que até parece um Frankenstein/ Mas como diz o rifão: por uma cara feia perde-se um bom coração/Entre os feios és o primeiro da fila/Todos reconhecem lá na Vila." Noel Rosa nunca reclamou, não respondeu, não revidou. Tal fato, em princípio, não merece comentário e não interessa aos própósitos de Caetano Veloso.


Traças que corroem quaisquer opiniões viris, encarnação de hipocrisias e ressentimentos, os politicamente corretos odeiam intimamente Noel Rosa, posto que genial demais, autêntico demais. E branco. Flanava armado pelo Boulevard 28 de Setembro, acompanhado por um séquito de aspirantes à poesia. Chegou a compor uma música inspirada nas pistolas e revólveres Smith & Wesson, porque as armas, argumentava, garantiam a paz ao igualarem fracotes e valentões. "No século do progresso o revólver teve ingresso pra acabar com a valentia." Compôs mais de 250 músicas inesquecíveis. Evitava conceitos para ele vazios, sem sentido, como o Rio de Janeiro ou o carioca. Alguém conhece letra de canção de Noel que fale disso? Do carioca? Do Rio? Noel Rosa, como Tinhorão, concorde-se ou não com as ideias deles, são pedras no sapato das “panelinhas” e das "conspirações" da Cidade Maravilhosa.


Morto pela tuberculose, aos 26 anos, Noel se encantava com a aldeota e com os bairros que frequentava. Cantava a Vila Isabel, um bairro diferente que devolve o carinho sempre, quando e como pode: um pequeno açougue batizado de Feitiço da Vila, um bar Palpite Infeliz, uma agência bancária Noel Rosa, um grupo de sexagenários Seresteiros de Noel e o Berço de Noel, na Praça Barão de Drummond, antiga Praça Sete, onde, há mais de cem anos, nasceu o protótipo do jogo do bicho. Orgulha-se de ser chamada a "terra de Noel". Um bairro cuja importância Noel Rosa comparou, na cara e na coragem, à dos dois estados economicamente predominantes na federação no começo do século, São Paulo e Minas Gerais. Só que a Vila concreta - nunca o Rio metafísico - concorre com produto muito mais rico e refinado que o café e o leite da República Velha.
Também falava, nos sambas, da Penha, do Estácio, do Salgueiro, da Mangueira, de Oswaldo Cruz, da Matriz (Engenho Novo). Deixava claro que o mundo era aquele em que vivia, amava, bebia, compunha e vomitava sangue. São Paulo dá café, Minas dá leite e a Vila Isabel...
Apesar de não falar ou se preocupar com "cariocas espertos, bacanas, sacanas", Noel Rosa, com talento e graça, descrevia em "Conversa de Botequim" (também de 1935) o mais finório e sedutor dos personagens da música popular..."Seu garçom, faça um favor de me trazer depressa/uma boa média que não seja requentada..." Quem seria? Um malandro de Barbacena, não. Muito menos o cafetão da Mooca. Também não seria o teu estimado MV Bill, Caetano. Talvez estaria hoje mais para Martinho da Vila, que não é carioca, mas fluminense da cidade serrana de Duas Barras.


Cláudio Renato