Maria Amélia reparou as atitudes estranhas do filho e decidiu intervir. Ela descobriu que o garoto estava sendo aliciado no tradicional colégio Santa Cruz, de padres canadenses, em São Paulo, por um grupo ultramontano, cujos integrantes se telefonavam para marcar reuniões secretas. Deste núcleo de extrema direita, surgiriam os corifeus da Tradição, Família e Propriedade (TFP), organização que, cinco anos mais tarde, apoiaria a ditadura militar. "Era um professor de História, depois expulso da escola; claro que não foi uma boa experiência", contou-nos o próprio Chico Buarque. "Mamãe tinha primos envolvidos nesse movimento religioso à direita de tudo, que, na França, era representado pelo arcebispo Marcel Lèfreve e originou no Brasil a TFP. Ela adivinhou o perigo naquilo tudo."
Chico Buarque contou como os pais ficaram indignados. "Eles trataram de me exilar num colégio interno em Cataguases, Minas Gerais. Foi uma boa ideia, gostei de lá." Depois do exílio, segundo as irmãs, Chico voltou a ser o "sem-vergonha" de antes. "Voltei a ser o campeão dos castigos", lembra o compositor. Ele e Maria do Carmo, a Pii, quinta filha - que, hoje, aos 63 anos, é fotógrafa - eram os mais bagunceiros dos irmãos. É impressionante a facilidade com que Pii, atualmente, ainda se recorda das escalações (titulares e reservas) dos times do Rio e de São Paulo nas décadas de 50 e 60. Eles chegaram a criar um time de futebol familiar, o CFFC, Carmo e Francisco Futebol Clube, muito antes de Chico Buarque fundar o Polytheama, com sede e "estádio" próprios em Jacarepaguá, zona oeste do Rio, uniforme e até um hino feito especialmente pelo compositor: "Polytheama/Polytheama/O povo clama por você..."
Fundamental para a consecução de Raízes do Brasil, a obra-prima de Sérgio Buarque de Hollanda, a intervenção de Memélia também foi decisiva para que Chico Buarque se tornasse um dos maiores gênios vivos do país. Memélia, na verdade, considerava o músico popular menor e acha mais elegante que o filho se apresente como escritor, mas respeitou e cultivou as amizades e o gosto musical de Sérgio. O historiador chegava a chamar o sambista Ismael Silva de Santo Ismael. Sem a influência dos ultramontanos, Chico aproximou-se para sempre dos artífices de Chega de Saudade, a começar pelo poeta Vinicius de Moraes, um dos mais frequentes amigos de Sérgio. João Gilberto casaria com Miúcha e se tornaria cunhado. Tom Jobim, parceiro em Sabiá e tantas outras canções memoráveis, viria a ser o ídolo, a inspiração maior e um dos melhores amigos.
O futebol e o samba passaram definitivamente a fazer parte do cotidiano de Chico Buarque, tricolor e mangueirense (como a mãe), entusiasta de todos os grandes craques e bambas, inventor de um jogo por ele batizado de Ludopédio e de um samba-enredo intitulado Vai Passar. Era Memélia quem, aficionada pelo Fluminense desde a época do legendário goal keeper Marcos Carneiro de Mendonça (1914-1922), apontava orgulhosa para o estádio do Maracanã, durante as viagens na ponte ferroviária Rio-São Paulo. "Olha lá o maior do mundo." Na estação seguinte, levava os filhos à janela do trem para mostrar o morro e cantar o samba-exaltação. "Mangueira, teu cenário é uma beleza/Que a natureza criou..."
Ironicamente, Chico Buarque se tornaria o principal alvo da censura imposta pelo regime militar e das agressões perpetradas por pessoas ligadas aos ultramontanos, à TFP e ao Comando de Caça aos Comunistas (CCC), que, em 1968, invadiram o Teatro Galpão, em São Paulo, para espancar os atores e destruir o cenário de Roda Viva, peça escrita por ele e dirigida por José Celso Martinez. As canções foram tão perseguidas pela censura, que ele foi obrigado a criar os heterônimos Julinho da Adelaide e Leonel Paiva.
Enquanto todos esses acontecimentos se guardavam para o futuro, Chico contribuía muito para o embranquecimento dos cabelos de Maria Amélia. Adolescente, dava calote em táxis, atravessando, às carreiras, o bar Riviera, na Consolação, na época com saída para a Rua Buri. Maria Amélia ficou furiosa quando o retrato de Francisco, aos 17 anos, foi estampado na primeira página do jornal Última Hora, com tarja no olhos e as iniciais F.B.H. Os pais estavam em Ouro Preto (MG) na época. "Realmente, mamãe não achou nada simpático eu ter sido preso fazendo ligação direta", conta Chico. O rapaz ficou em prisão domiciliar, impedido de sair sozinho à noite, até completar 18 anos.
Maria Amélia influenciava até no sotaque dos filhos. Ela tinha birras com o marido, paulista ferrenho. Resistia a tudo o que fosse de São Paulo. "Mamãe é carioquíssima, e houve certa disputa herdada por nós quatro mais velhos, os do Rio, e os mais novos, Maria do Carmo, Ana Maria e Maria Christina, que nasceram em São Paulo", conta Miúcha. "O Sérgio tinha essa mania de ser paulista, adorava São Paulo", confirma Maria Amélia, que, ultimamente, tem suavizado o tom. "A família da minha mãe era paulista, morei mais de 25 anos em São Paulo e tenho três filhas nascidas lá." A paulista Ana denuncia o patrulhamento. "Se escapasse um r ou um s paulistanos, mamãe caía de pau. Ainda é assim com os netos de São Paulo." No comando da casa, Maria Amélia, que adorava se bronzear na praia, impunha, segundo a filha, a norma de que "chique" era ser carioca, "bonito" era o Rio de Janeiro. "O pior é que era mesmo, porque as coisas boas, como férias, festas e feriados, a gente passava lá", reconhece Baía.
Oito meses depois da morte de Sérgio (ocorrida em 24 de abril de 1982), Maria Amélia se mudou para o Rio. É no terraço do edifício Alcazár, em Copacabana, que a família costuma se reunir para a queima de fogos no fim do ano. Memélia adorava caminhar pelo calçadão da orla. Vez em quando, vai a festivais de cinema e exposições de artes plásticas. Sem canais por assinaturas, assiste aos programas de entrevistas e noticiários na TV aberta. "Cinema é uma grande paixão; vi duas vezes seguidas e recomendo Assédio, de Bertolucci". Memélia é apaixonada também pela Itália, onde morou dois anos quando Sérgio lá lecionou. "Antes de La Dolce Vita explodir no Brasil, minha mãe já era fã de Fellini", confirma Álvaro, o terceiro filho, 67 anos.
Rigorosa na criação dos filhos e netos, Memélia se desmancha com os bisnetos. É um elo de gerações. "Eu nunca vi família andar como nós, em bando. Certo dia, fomos nove com a mamãe assistir ao filme O Jantar, de Ettore Scola", conta Ana. Maria Amélia se desdobra para reunir os sete filhos. Convida todos para passear, almoçar, jantar e visitar. A mesma alegria dos passatempos, Maria Amélia dedicou à reflexão. Sempre foi leitora dos clássicos estrangeiros (Marcel Proust, James Joyce e Leon Tolstói) e nacionais (Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade, Paulo Mendes Campos, Pedro Nava). Gosta muito dos intelectuais Antonio Candido, José Mindlin e Moacyr Werneck de Castro. "Ela e papai adoravam Guerra e Paz, de Tolstói: costumavam reler o romance juntos e comentavam seriíssimos a respeito dos personagens", lembra Ana. Após ser submetida a duas operações de catarata, Maria Amélia passou a usar óculos e bengala, mas nunca deixou de ler.
Os Buarques de Hollanda sabiam quão importante era o ambiente cultural para o futuro. Apesar de católica, Maria Amélia acompanhou o marido quando da visita do filósofo existencialista francês Jean-Paul Sartre e da escritora feminista Simone de Beauvior ao Brasil, na década de 60. Os filósofos, que defendiam o aborto e o divórcio, provocavam a ira dos católicos. Memélia provava pertencer à ala progressista da Igreja. Na despedida do casal, fez questão de levar os filhos ao aeroporto de Congonhas.
Quando na casa da rua Buri havia saraus, com a presença de Vinícius e Caymmi - que caprichava em Acalanto, a canção preferida de Sérgio -, a mãe convocava: "Venham todos", para a alegria das crianças escondidas no vão da escada. Sérgio incluía os filhos nas farras. "Mamãe cuidava de tudo para que fôssemos bem educados e para que papai trabalhasse sossegado", conta Ana. "Professor, ele recebia pouco; a universidade atrasava; às vezes, não dava para comer carne. Mamãe providenciava arroz, feijão, chuchu."
Enquanto Maria Amélia administrava a despesa e a educação da família, Sérgio ignorava até o período escolar das crianças. Ele também não dirigia automóvel, mais uma tarefa a cargo da mulher. "Ela é a própria Amélia", afirma o professor e crítico literário Antônio Candido, de 91 anos, que conheceu o casal no fim de 1943 durante um almoço oferecido pelo editor José de Barros Martins no restaurante Caverna de Santo Antônio, em São Paulo. Para Candido, "Maria Amélia é excelente exemplo de coerência e energia serena, tanto nas atitudes excepcionais quanto na vida cotidiana." Ele diz sempre ter admirado "a sabedoria com que ela coordenou os cuidados exigidos por uma família numerosa, a hospitalidade da casa cheia de amigos e a atividade intelectual de colaboradora do Sérgio." Candido conta ainda que "há muitos anos, quando nem todas as estradas eram fáceis, ela dirigiu daqui até Assunção, no Paraguai, um fusca no qual foi com Sérgio fazer pesquisas em arquivos." Para o professor, "não há pessoa mais digna de admiração do que Maria Amélia, em quem coexistem a força das convicções, a coragem alegre, a elegância moral e a solidariedade discreta."
Ainda chegamos a conversar com Mário Lago sobre Memélia antes da morte do ator e compositor (em 30 de maio de 2002, aos 91 anos). "Qual o problema de ser Amélia, dona Maria Amélia? A nossa canção não foi para a senhora, mas para mulheres tão maravilhosas quanto, o que é cada vez mais raro", provocou. As filhas entregam que, além de conservadora no comportamento, Memélia era um tanto machista. Em 1964, Chico participou de um show com as irmãs Ana e Maria do Carmo no colégio paulistano Rio Branco, o Primeira Audição. Um mês depois, a TV Record quis repetir a apresentação. "Mamãe teve um ataque", lembra Ana. "Por ela, o Chico podia cantar; nós, não." Como a emissora exigia a presença das meninas, Chico teve de convencer a mãe. A partir daí, elas foram proibidas até de ver o programa da TV em casa. Miúcha brigou com a mãe ao saber que Chico, sete anos mais moço, tinha a chave de casa e ela, não. Os namoros eram vigiados e a orientação sexual não entrava na conversa. "As meninas tinham que andar juntas e o ideal da mamãe é que todas casassem virgem", revela Ana.
No começo do casamento de Chico com Marieta Severo, a sogra via a nora com certa desconfiança. João Gilberto, no primeiro momento, não foi aceito. Depois, conquistou Memélia. Era casado quando começou o relacionamento com Miúcha. A mãe, que soube do romance pelo jornal, enviou um telegrama para a Europa, exigindo o desmentido de João. Com ela, a porca torcia o rabo. Já com o pai, valia quase tudo. Moderadamente, os meninos podiam fumar maconha na frente de Sérgio, que, de farra, até dava "umas puxadas", embora gostasse mesmo de uísque. Dificilmente ele se aborrecia com as traquinagens dos filhos.
Quando finalizávamos o primeiro artigo sobre Maria Amélia Buarque de Hollanda, em outubro de 2000, a assistente social Ruth Buarque, então com 26 anos e colaboradora do Comunidade Solidária, telefonou para a redação da Gazeta Mercantil, em São Paulo. "Você está fazendo uma reportagem sobre a minha avó, tenho adoração por ela e queria dar um depoimento." Ruth, filha de Ana de Hollanda, contara que fizera com Memélia a viagem mais emocionante da vida. "Fomos a Paris, eu, minha mãe, o Chico, a Silvia, a Pii e a Ana, filha da Cristina. Vovó nos mostrou cada detalhe de cada museu, as esculturas de Rodin, O Beijo e a Porta do Inferno". Ruth disse que, paulista, não conseguiria falar chiado para agradar a avó. "O problema é que eu falo entendeeendo, apartameeento, meu..." Na defesa de tese na PUC, a avó ligou para Ruth desejando boa sorte e se desculpando porque não poderia ir a São Paulo. "Quando cheguei na faculdade, vi a avó e vivi a maior emoção". Mais tarde, Ruth enviou um e-mail à redação. "Ih, esqueci de dizer que a Memélia faz a melhor mousse de chocolate do mundo!"
Cláudio Renato, em texto baseado em apurações jornalísticas para as reportagens "A construção do clã" (no Caderno Fim de Semana, Gazeta Mercantil, em 2000), "Dossiê Sérgio Buarque de Hollanda" (na Revista Bravo, em 2002) e "Os 60 anos de Chico Buarque" (para os telejornais da TV Globo, em 2004).