segunda-feira, 10 de maio de 2010

Dalton Trevisan, um vampiro à luz do sol

Dalton Trevisan, pelas ruas de Curitiba, em foto de Marcelo Ridini, Agência Folha
Uma das raras fotos do contista


Dalton Trevisan observa o minúsculo doutor Sampaio, terninho e bengalinha, que deixa a confeitaria Schaffer. "Olha o pezinho, olha a mãozinha, vamos segui-lo!", ordena ao séquito. À noite, vai ter com cafetinas, prostitutas, malandros e velhinhos abandonados. "Dalton divertia-se com cárie, caspa, chulé e usava o material nos contos", diz Carlos Alberto Pessoa, que conheceu e conviveu com o escritor nas andanças por Curitiba. O maior contista do Brasil perseguia, sarcasticamente, o tal doutor Sampaio, mas odeia que o sigam. Aos 85 anos incompletos, sustenta a própria lenda. Há pelo menos seis décadas, foge dos fotógrafos como Drácula, da cruz. Nega entrevistas. Cultiva o mistério.


Xingar em escala crescente (ou decrescente) é uma característica de Dalton Trevisan. O desafeto começa como "barata de fogão", passa a "barata de fogão com caspa na sobrancelha" até ser rebaixado a "barata de fogão leprosa com caspa na sobrancelha". Regozija-se na prospecção de histórias. Na última mesa da Schaffer, é visto normalmente com o advogado e ex-integralista Luiz Gastão Franco de Carvalho ou um amigo "informante." Pede coalhada, torrada e chá. Dalton, fama de avarento, paga ao amigo um moranguinho com nata, a título de "direito autoral."


Pessoa, o ex-informante, conta que Dalton Trevisan considerava Grande Sertão: Veredas ingenuidade de Guimarães Rosa. "Como os vaqueiros não perceberiam que estavam diante de uma mulher?" Tinha reservas até ao conto O Alienista, de Machado de Assis, por achá-lo muito longo. Em cinema, diz o "garganta profunda", adorava Fellini, Visconti e Kubrick.
Dos amigos, Dalton exige fidelidade absoluta, segundo o discreto Eleotério Borrego, livreiro e confidente. Na livraria, o contista tem uma caixa de correspondências. "Quando se aproxima um estranho, pede para apresentá-lo como João", conta o jornalista e editor Fábio Campana.


Uma das principais fontes de Dalton foi Ali Chaim, que, na década de 70, tinha um programa policial na rádio. Chaim - "único cidadão comum com título de delegado honorário do Paraná" - entrevistava ladrão, estuprador, marido traído. "Ele mandava contar tudo, queria saber do fel da história, curra, sacanagem; às vezes ia à delegacia verificar o inquérito", diz o radialista. Dalton gostava de rodar Curitiba de madrugada no fusquinha de Chaim. "Fogueteado, contava um monte de histórias babilônicas."


Como o conde demoníaco da Transilvânia, Dalton tem seus Renfields, seguidores fiéis. "As pessoas ficam fascinadas diante do vampiro e tornam-se doadoras literárias", conta o jornalista Luiz Geraldo Mazza, amigo da juventude. O simpático Estêvão A.S mimetiza os tiques do mestre. Até para marcar entrevista preferia evitar a lotérica onde trabalhava. "Vamos ao café da praça Zacharias, e nada de fotos. Já não gostava de fotografias antes de conhecer o Dalton, imagina agora!" Estevão conta que conheceu o escritor quando precisou gravar um vídeo, Que fim levou o Vampiro de Curitiba? Ele faz favores profissionais e contatos para Dalton no mundo exterior.

O escritor Miguel Sanchez Neto é um dos que mais conversam com Dalton, mas garante que não pretende escrever a biografia do contista. "Não traio a amizade." Sanchez Neto revela apenas que Dalton considera Cristo o grande personagem do Ocidente e gosta muito dos textos de Ivan Lessa, Paulo Francis e, principalmente, das obras de Machado, Rubem Braga e Pedro Nava. O escritor Manoel Carlos Karam conta: o contista odeia ser fotografado por considerar que "a foto mata o espião."


Dalton costumava ir ao Rio para visitar Rubem Braga, morto em 1990. Gostaria de ter convivido mais com o mestre. Crítico feroz de Curitiba, diz que em cada esquina da cidade pode haver um Raskolnikof, o assassino protagonista de Crime e Castigo, obra-prima de Dostoiévski. Dalton até já teve um fusquinha bege, mas gosta mesmo de andar a pé. Frequentador da Boca Maldita na década de 60, preferia as discussões literárias às políticas. Jamais aceitaria uma indicação para a Academia Brasileira de Letras, embora gostasse muito de um ou outro imortal. Os ex-amigos dizem que Dalton é poroso aos elogios, detesta crítica, tem horror a discussões. Foi grande amigo do artista plástico Poty Lazarotto, mas andaram brigados. Reconciliaram antes da morte de Poty - em maio de 1998. Gosta muito de Constantino Viaro, filho do amigo Guido e ex-diretor do Teatro Guaíra, bem como de Miguel Sanchez Neto, hoje com 44 anos.


Na década de 70, Dalton publicou uma crítica na Gazeta do Povo, com as iniciais J.P., intitulada Quem tem medo do vampiro?, em que desbancava o próprio trabalho: "Quem leu um conto, já viu todos (...) Seu pobre vocabulário não tem mais de oitenta palavras." Um trecho diz: "Um talento não se lhe pode negar - o da promoção delirante. Com falsa modéstia, não quer retrato no jornal - e o jornal sempre a publicá-lo. Nunca deu entrevistas - e quantas já foram divulgadas com foto e tudo? Ora, negar o retrato ao jornal não é uma forma de vaidade, a outra face diabólica do cabotino?"


Talvez menos de 15 pessoas saibam o número do telefone da casa acinzentada de Dalton Trevisan. "Quem precisa falar, deve obedecer a códigos pessoais e intransferíveis", conta um dos privilegiados conhecedores da numeração. Cada interlocutor deve obedecer a determinados números de toques, a tantos minutos de espera cronometrada, a senhas predefinidas. É Dalton quem normalmente liga, quando o assunto lhe interessa.


Conta-se que, certa vez, chovia aos cântaros em Curitiba, e o cineasta Joaquim Pedro de Andrade ousou bater no portão da casa, que nem fresta para correspondência tem. Queria conversar sobre o filme Guerra Conjugal, baseado em um conto do curitibano. A porta se abriu; o portão, não. O escritor teria mandado Joaquim Pedro esperar numa esquina determinada em tantos minutos. Quem conhece o escritor, garante que a história é verdadeira. Perto da casa, há uma igreja que inspirou em Dalton Trevisan o anátema Lamentações da Rua Ubaldino. O texto amaldiçoa os Irmãos Cenobitas por causa do barulho das guitarras elétricas e dos sermões. Também perto, há uma sauna masculina, da qual andaram jogando bilhetinhos provocadores para dentro da casa do contista, que jamais acusou recebimento.


Na revista Joaquim, Dalton escreveu certa vez: "Notícia policial, frase no ar, bula de remédio, pequeno anúncio, bilhete suicida, fantasma no sótão, confidência de amigos, leitura de clássicos etc. O que não me contam escuto atrás da porta." É um aspecto curioso da personalidade do escritor. Ele preza a própria intimidade, mas não poupa a alheia, ainda que a ela acrescente uma abordagem ficcional. Muitas das histórias contadas por conhecidos tornaram-se narrativas literárias. Dalton adora quando há uísque em roda de amigos. Ele não bebe, mas os outros se soltam. "Ele quer saber de todos os pormenores, os detalhes sórdidos", conta Carlos Alberto "Nego" Pessoa, personagem involuntário do contro Pássaro de cinco asas (1975).


Verbete na Enciclopédia dos Vampiros, da editora americana Makron Books, Dalton Trevisan há anos mantém em Curitiba asseclas que se renovam. Para apagar os próprios rastros, pedia aos amigos - como os jornalistas Fábio Campana, "Nego" Pessoa e o escritor Jorge Snege - que "invadissem" as bibliotecas públicas e os sebos, onde mantinha informantes para saber quando surgia qualquer obra por ele enjeitada. Eles deveriam subtrair da prateleira as provas dos "crimes" juvenis de Trevisan e entregá-las para o autor destruí-las. Em troca, oferecia novas edições autografadas. Ou um dedo de prosa em que ele ouvia, o outro falava.


Snege registou na autobiografia Como eu se fiz por si mesmo (Travessa dos Editores, 1994) o episódio em que Dalton ofereceu a Campana, na época, os seus três últimos livros autografados, em troca de um único exemplar de Sonata ao Luar (obra de 1945 renegada pelo autor). O jornalista deveria surrupiar o livro da biblioteca pública. Campana cumpriu a missão, segundo Snege, graças a um capote sob o qual escondeu o exemplar.


Dalton Trevisan tem obsessão em revisar os contos e apagar o passado literário e biográfico. Quando presenteia um velho amigo com a nova edição de um livro, faz questão que lhe devolva o exemplar da tiragem anterior. Além da novela Sonata ao Luar, com ilustrações de Guido Viaro, o escritor rejeitou sonetos, ideias soltas, críticas e crônicas esportivas publicadas nos periódicos O Livro (1939) e Tingui (1940). Os textos de Dalton são reescritos (e reduzidos) quantas vezes julga necessário. Em cada edição, narrativas mais concisas, os mesmos personagens, as mesmas situações em uma Curitiba que já não existe mais. Com o tempo, os contos se reduzem a haicais, como em 111 Ais (editora L&PM) e na edição limitada de 71 contos fragmentários distribuida para amigos.


O ex-secretário estadual de Cultura do Paraná Luiz Alberto Soares elogia a coragem do contista. "Ele quer mais é fugir dos chatos que o procuram para uma orelha de livro, um prefácio, coisas que ele nunca fez." Soares garante que o escritor é afável, mas contido. De Jorge Amado, só considera A Morte e a Morte de Quincas Berro d'Água. O crítico Wilson Martins, amigo de Dalton da década de 40 até os anos 70, foi dos primeiros a lhe elogiar o trabalho na revista Joaquim. Romperam. Morto no começo deste ano, Martins acusava o contista curitibano de repetitivo. "E não vamos brincar de fazer as pazes."


Quando, na livraria do Chaim, Dalton folheou a biografia de Vinícius de Moraes, O Poeta da Paixão, do jornalista e escritor José Castello, ficou apavorado. Para começar, não gostou de uma foto. Telefonou para todos os amigos para perguntar o que Castello fazia na cidade. Quando soube que o jornalista se mudara para Curitiba definitivamente, ficou aflito. Castello garante que não quer saber mais de biografia. Cinco anos na capital do Paraná, não tinha idéia de como Dalton era fisicamente.


O escritor Wilson Bueno dizia achar curioso o conceito de morte de Dalton. Ele afirmava existir três experiências de morte: a natural, a de Ivan Illich, de Tolstói, e a anunciada, de Gabriel García Márquez. A biografia seria a quarta forma de um vampiro morrer.


No próximo capítulo, informações preciososas para quem um dia ousar escrever a biografia (não autorizada, obviamente) de Dalton Jérson Trevisan. ´


Cláudio Renato

11 comentários:

  1. É o 'Passa' de volta em GRAAAANDE estilo !

    Ok, o nobre Claudius Renatus tirou suas merecidas férias, mas já era hora de nos brindar novamente com um texto com padrão CR de qualidade.

    E logo sobre quem ... Dalton Trevisan, um dos escritores mais brilhantes desse nosso brasil-il-il. Fazer matéria sobre o Rubem Fonseca já virou clichê, mas ele aparece toda hora pra babar numa de suas crias. O Dalton sim é um recluso hardcore, 'a la' J. D. Salinger.

    O texto em si, na medida como sempre.

    Anda logo com esse capítulo 2!

    abraços

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  2. "O Boêmio voltou..."

    Muito bom e bem humorado texto sobre o grande Dalton!
    Só o final foi sacanagem do tipo: a seguir cenas dos próximos capítulos. Queremos conhecer essas informações preciosas.

    Abçs

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  3. Que bom que você voltou.

    Ainda mais com um texto delicioso como este. Que venham as próximas revelações desta entrevista com os informantes do vampiro.

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  4. Meu amigo querido,

    entrar aqui é sempre voar para longe do nosso dia a dia tão pequeno de afazeres burocráticos e cinzentos. A tela escura do Passa nos colore e aquece.

    Agora, vamos ao copo que o sábado já vem!!!

    Beijo.

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  5. Dia desses cheguei a comentar que o pior ser humano é que se tranca pra vida. Mas o que vejo em Dalton Trevisan é um homem que se tranca dentro de si pela riqueza que ali se encontra. É muito interessante a forma com que a todo momento Dalton se avalia, e revê, e apaga passado, e se esconde, e se recusa. Com certeza, uma biografia desse personagem seria maravilhosa.
    E parabéns pelo retorno à blogsfera, esperávamos ansiosos.

    F.M.

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  6. [off topic]

    Oi, Claudio, tudo bem?

    Cuido das mídias online do filme “Olhos Azuis” do diretor José Joffily, que estréia no circuito nacional de cinema em 28 de maio. Gostaria de falar com você a respeito do filme.

    Assunto: Convite especial para pré-estreia do filme exclusiva para blogueiros.

    A sessão especial para blogueiros acontece na próxima segunda.

    Entre em contato se tiver interesse em participar: coevosfilmes@gmail.com
    Para mais informações sobre o filme, visite o nosso site: http://www.olhosazuisfilme.com.br/olhosazuis/

    Sinopse:

    Marshall (David Rasche) é o chefe do Departamento de Imigração do aeroporto JFK, em Nova York. Comemorando seu último dia de trabalho, Marshall resolve se divertir complicando a entrada no país de vários latino-americanos. Entre eles está Nonato (Irandhir Santos), um brasileiro radicado nos EUA, dois poetas argentinos, uma bailarina cubana e um grupo de lutadores hondurenhos. Dois anos depois, Marshall vem ao Brasil procurar uma menina de nome Luiza. Quando ele conhece Bia (Cristina Lago), uma jornada em busca de redenção se inicia. Olhos Azuis foi o grande vencedor do II Festival Paulínia de Cinema com seis prêmios, incluindo o de Melhor Filme.

    No Twitter: @olhosazuisfilm

    Em tempo: gostei muito do blog e, pelo visto (vide outros comments) não sou a única.

    Quem me sugeriu seu blog foi uma amiga da ECO da UFRJ. Dica preciosa!

    Abraço,
    Anita.

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  7. Tudo bem que Dalton não é dado a flashes, mas, faça-o entender: teu texto foi uma das melhores fotografias já tiradas daquele vampiro.Que luz e que nitidez!

    Paradoxalmente, também isso: tuas palavras pude ouvir melhor, assim, como se estivesse atrás da porta. Por isso só as li agora, como se no intervalo entre a publicação do post e a minha leitura houvesse uma tábua de madeira até o teto, com a maçaneta sempre à mão. O passavante é um fantasma no sótão, é confidente, um amigo.

    E uma leitura de clássicos.



    Beijo grande, meu amigo.

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  8. Sir Renato,

    Até que enfim voltastes ao nosso convívio. De pirraça, resolvi demorar no meu comentário também!

    Bom, a história de Dalton Trevisan, um dos maiores mestres do conto universal, é medíocre. E como disse o escritor Mário Sanches Neto - autor de "Chá das Cinco com o Vampiro" - a vida dele, em Curitiba, é assaz medíocre, o que torne, talvez, mais lucrativo ele manter o mito.

    Para mim, neste relato, a revelação mais importante se refere a um texto em que Dalton, com heterônimo, desanca a própria farsa. Vamos repetir o trecho:

    "Na década de 70, Dalton publicou uma crítica na Gazeta do Povo, com as iniciais J.P., intitulada Quem tem medo do vampiro?, em que desbancava o próprio trabalho: "Quem leu um conto, já viu todos (...) Seu pobre vocabulário não tem mais de oitenta palavras." Um trecho diz: "Um talento não se lhe pode negar - o da promoção delirante. Com falsa modéstia, não quer retrato no jornal - e o jornal sempre a publicá-lo. Nunca deu entrevistas - e quantas já foram divulgadas com foto e tudo? Ora, negar o retrato ao jornal não é uma forma de vaidade, a outra face diabólica do cabotino?"

    A obra de Dalton Trevisan, sim, é de uma complexidade misteriosa. O teu texto, Renato, serve para desmistificar-lhe a vida cotidiana, tão fria quanto as noites gélidas do inverno curitibano.

    Um abraço saudoso!

    Graciano Filho - João Pessoa (PB)

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  9. Vc voltouuuuuuuuuuuuuuuuu. Ufa, que alívio. De volta aos bons textos.
    Dá uma olhada na matéria no site da Época, coluna Cristiane Segatto, Saúde. sobre o Facebook e Blogs. Estou lá. Veja se gosta e deixa lá uma frase, um comentário. Depois me conta. beijos

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  10. O jornalista Rogério Imbuzeiro envia o comentário:

    (mais uma vez sofrendo com a minha conta google - se achar que deve, acrescente o comentário abaixo aos demais)


    Cláudio, meu amigo, retorno em grande estilo, hein!?

    Acho que o Trevisan (como ele mesmo e o Castello afirmaram) nem merece tanto, mas adorei ler seu texto. Elevou o contista, que a meu ver tem menos altos do que médios e baixos; além de ser um artista com temática quase sempre sombria, que pouco acrescenta à evolução da espécie.

    El Rey del Passa! Que venham muitos outros textos em 2010.

    Abração, Rogério Imbuzeiro.

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  11. Claudio Renato,
    Só podemos concordar 100% com o que Trevisan disse sobre Guimarães Rosa: "muita ingenuidade".
    O escritor vai morrer um dia, mas a sabedoria do vampiro vai ficar para a eternidade, como a maldição da vida sem fim.
    abraços!!!
    Nery

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