segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Quem não rezou a novena de dona Canô?

Dona Canô, entre Caetano e Maria Bethânia
Dona Canô, aniversário de 102 anos em Santo Amaro

"Lembro com muito gosto o modo como ela se referia a ele. Pelo menos ela o fez uma vez e isso ficou marcado muito fundo, dizendo: 'Caetano, venha ver o preto que você gosta'. Isso de dizer o preto, sorrindo ternamente como ela o fazia, o fez, tinha, teve, tem, um sabor esquisito, que intensificava o encanto da arte e da personalidade do moço no vídeo. Era como isso se somasse àquilo que eu via e ouvia, uma outra graça, ou como se a confirmação da realidade daquela pessoa, dando-se assim na forma de uma bênção, adensasse sua beleza. Eu sentia a alegria por Gil existir, por ele ser preto, por ele ser ele, e por minha mãe saudar tudo isso de forma tão direta e tão transcendente. Era evidentemente um grande acontecimento a aparição dessa pessoa, e minha mãe festejava comigo a descoberta."


Assim, Caetano Velloso brinda, no livro de memórias Verdades Tropicais, publicado em 1997, a sabedoria secular da mãe, que o acalentou ao som do rádio e o aproximou, ainda mais, de Gilberto Gil. "O Caetano era terrível, aprendia tudo, imitava e cantava igualzinho ao Francisco Alves, ao Vicente Celestino, ao Nélson Gonçalves, uma coisa impressionante", diz dona Canô, para quem Gil "é muito íntimo, um filho, um irmão que inspirou Caetano demais." Se Gilberto Gil tem como principal influência familiar o pai, o médico José Gil Moreira, que se intitulava o autêntico tropicalista, porque lidava com doenças tropicais, é possível dizer que Caetano Velloso herdou da mãe o influxo telúrico, presente nas mais belas canções de antes, durante e depois do movimento tropicalista.

É o tirocínio político de dona Canô que impressiona os visitantes de Santo Amaro, porque, centenária, ela luta pelas causas sociais no lugar onde vive. Santo Amaro conta com 51 escolas - uma para excepcionais - e uma faculdade de letras vernáculas da Universidade de Feura de Santana. A cidade a homenageou com um teatro - o Dona Canô. E ela, pessoalmente, se empenhou em instalar no lugar uma biblioteca ambulante.

Aos visitantes, Canô reclama das mudanças na cidade e do desemprego. "As usinas de açúcar e a cooperativa de álcool foram fechadas pelo Instituto do Açúcar e do Álcool, causando muito prejuízo", lamenta. "Também a fábrica Tarzan, de vergalhões de ferro, foi fechada e o povo não tem mais onde trabalhar. Só restou uma fábrica de papel toalha, a Bacraft."

Uma das mais longas e intensas lutas de dona Canô é pela despoluição do rio Subaé, que depende da conclusão de obras de saneamento, motivo pelo qual a cidade está ainda esburacada. A companhia de chumbo que poluía o rio foi fechada há anos, mas deixou rastro letal. "O Subaé ainda está poluído porque o chumbo entranha nas pedras."

No complexo hidrográfico de Santo Amaro, o Subaé e o Sergimirim são os rios principais. Encravada no fundo da Baía de Todos os Santos, Santo Amaro, no vale do Subaé, tem como ponto culminante o Alto do Camelo (254 metros de altitude), belíssimas cachoeiras, como as de Vitória, Urubu, Zé Regadas e Nanã, e as praias de Itapema e Baía Pesca.

Dona Canô não esconde o orgulho pela Igreja Matriz de Nossa Senhora da Purificação, a cerca de cem metros de casa. Na fachada da igreja, que completa 310 anos em 18 de outubro, há uma placa de agradecimento a ela pelas reformas. "Minha igreja é muito bonita e diferente, porque, ao contrário das outras, muito escuras, a minha é alegre e clara." A igreja de Nossa Senhora dos Humildes, fundada pelo padre Ignácio Teixeira dos Santos em 1793, às margens do Subaé, abriga o museu dos humildes, de arte sacra. É recomendada por dona Canô. "Lá, que era um convento, existe uma imagem de Nossa Senhora, a Divina Pastora, tão diminuta, com anjinhos, patinhos...um trabalho minucioso feito pelas freiras."

De braços com dona Canô, avança-se pelos tortuosos caminhos barrocos de Santo Amaro: a cadeia e o Paço Municipal (1727), a Santa Casa de Misericórdia (1778), as ruínas da Igreja do Rosário (do começo do século XVI), a Igreja do Nosso Senhor do Santo Amaro (1667), a Igreja Nossa Senhora do Rosário (1784), o Solar Paraíso e o Palácio do Lacerda (do século XVIII), a Igreja do Amparo (1818), a de Nosso Senhor do Bonfim (1870), o chafariz da praça (1872), além de outras construções preservadas dos séculos XVIII e XIX, como o Solar Araújo Pinho.

Sob a sombrinha de Canô, a conversa, como não poderia deixar de ser, desemboca em música popular. E ela vai logo dizendo que o maior de todos os compositores vivos é Chico Buarque de Hollanda. "Ele e Marieta, quando ainda eram casados, prometeram me visitar em Santo Amaro e vou esperar sempre." Ela entende como é difícil a vida dos artistas. "Caetano, sempre que vem a Salvador, normalmente no verão, separa um dia para almoçar comigo." Ela reclama do excesso de compromissos do filho. "Quando vai para Europa, ele fica 50 dias e acho que tem tempo para descansar, mas, aqui, sequer tem o direito de conversar." Nicinha sempre fica mais tempo quando vai a Santo Amaro. E Rodrigo separou até um quarto na casa para a mãe. "Já disse a eles que minha vida é aqui; não aguento ficar longe uma semana."

Dona Canô canta no coral Miguel Lima, com outras 35 pessoas. "Sempre adorei música, desde menina." Ela reconhece: "não tenho mais a voz da juventude, mas sempre canto em missas solenes, aniversários, ocasiões especiais." Ela é apaixonada pelas canções de Dorival Caymmi. "Conheci bem a Stella, mulher dele, e os filhos, Nana e Danilo, sempre tiveram muita coisa comigo."

Foi no colo de Canô, ouvindo rádio, que os meninos aprenderam músicas antigas. "Sempre tive bom gosto e compro minhas velharias na AKDiscos, em Salvador". Carinhosamente, ela chama de velharia Luiz Gonzaga, Vicente Celestino, Francisco Alves, Nélson Gonçalves, Renato Mussi e Catulo da Paixão Cearense, além dos mais "recentes" Tom Jobim e Vinícius de Moraes. "Acho esse negócio de axé, pagode, tudo um horror", reage. "Nas festas, só falta eu ficar surda com esse barulho. Deus que me perdoe!"

Por mais que tente manter distanciamento em relação aos filhos, dona Canô deixa escapar a ponta de corujice. "Dia desses, fui ao banco e o gerente comentou comigo que Ciúme, do Caetano, é uma música profunda." Ela reconhece, no entanto, que nem tudo do filho é obra-prima. "Tem muita coisa dele que quebra um pouco, não vou negar, mas os discos Prenda Minha e Fina Estampa são lindos." Canô cita a canção Cajá, do LP Muito, como uma das que não gosta. "Tem outra música que outro dia estava ouvindo e não reconheci o Caetano." Judiciosa, afirma. "Meu filho faz muita coisa boa, mas não pode ser perfeito.

Dona Canô diz ter um carinho especial por Milton Nascimento. "Já me visitou aqui, um doce de rapaz, um cantor extraordinário, que tem muita coisa comigo." Ela esteve na Europa três vezes e se encantou com Roma, mas garante que não gosta de sair de Santo Amaro nem para ir às cidades vizinhas. Chegou a morar com Bethânia no Rio por quatro meses. Gosta de Salvador e de São Paulo, onde mora o filho Roberto, o Bob, mas como esquecer a doce Santo Amaro, um elixir da longevidade, onde Canô é nome de teatro, bloco e timinho de futebol? Não há quem lhe ignore o endereço e o licor de jenipapo. Não há quem não ore por ela. E quem ali não rezou a novena de dona Canô?

Cláudio Renato

6 comentários:

  1. Sensacional! Engraçado como um bom texto faz a gente ler e viajar ao mesmo tempo. O Passavante tem que virar papel de alguma forma para a gente poder carregar embaixo do braço.

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  2. Sabe Claudio, eu tive o privilégio de ter um pai que viveu até os 94 anos. Era médico. Como ele falava, "do tempo antes da penicilina." Eu sou o temporão da família.
    Ao lado deste homem fantástico, eu pude ouvir e aprender muito sobre a história de uma época. Viver e ter a oportunidade de repartir a vida com pessoas assim como meu velho amigo e como dona Canô é uma viagem extraordinária.
    Quanto ao texto, o Rodrigo aí em cima falou tudo: "virando papel para poder carregar embaixo do braço."
    beijos doces
    ET: Recomendado lá no meu blog o do Bruno e sempre o Passavante.

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  3. Cláudio Renato,

    O que impressiona, na Dona Canô e no seu Zezinho, é o tipo de criação que eles proporcionaram aos filhos. Sem preconceitos, mas com senso de disciplina. A saudação que ela faz ao Gilberto Gil, que, em 1962, já era um cantor de relativo sucesso em Salvador, é fantástica. Com certeza, foi fundamental para que Caetano e Bethânia seguissem a trajetória brilhante! Fiquei particularmente emocionado com o depoimento de Caetano sobre o amor do pai à Santo Amaro. "Ele era um homem do Recôncavo". São pessoas do Recôncavo com uma cabeça extraordinária, universal, coisa que a gente só vê muito raramente em cidades grandes, como o Rio ou São Paulo.

    Um abraço forte,

    Graciano Filho - João Pessoa (PB)

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  4. Esse texto nos faz dar mãos não só à Dona Canô, mas às duas histórias, a que ela nos conta e a que você, Crenato, nos presenteia.

    Também nos permite pegar carona debaixo da sombrinha da matriarca ou dormir em seu colo. A condução narrativa, meu caro Crenato, nos permite acompanhá-la em todos esses momentos ternos e, portanto, valiosos. Parabéns e obrigado!

    Brunoq

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  5. Mais uma vez aparece D. Canô carismática, envolvida com sua cidade, tudo que nos faz perceber que é muito mais que a mãe de Caetano e Bethania. Que figura singela e elegante essa senhora, conhecê-la vale uma existência.

    F.M.

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  6. Essa senhora, dona Canô Veloso, é fenomenal! E poder assistir a um video dela com Edith do Prato e Caetano Veloso em Santo Amaro foi um presente. Nunca entendi porque a imprensa dá tão pouco importância ao que é mesmo fundamental. Fiquei sabendo da morte de dona Edith do Prato, no ano passado, quase por acaso... Só se fala em rainhas de bateria!

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