quinta-feira, 9 de julho de 2009

Carta aberta a um destinatário fechado




Senhor Geraldo Pedrosa de Araújo Dias:


Tínhamos pouco mais de quatro anos, quando Geraldo Vandré, personagem que o senhor diz ter inventado, deixou o Brasil e menos de nove, quando voltou, para aqui se exilar, depois de vagar pela América do Sul, a Europa e a África. Portanto, mal nos entendíamos como gente, imagine se saberíamos quem era o senhor.

Filhos caçulas, só ouvíamos sobre o tal Vandré quando os irmãos mais velhos deixavam escapar um motejo político ou, do banheiro, a plenos pulmões, entoavam aquela famosa guarânia de dois acordes que o enxotou daqui.

Quem nos interessava na época? Pelé e Garrincha, claro. Gérson, o canhotinha de ouro, também. Jogávamos botão o dia inteiro e assistíamos à tarde ao "Capitão Asa", na TV Tupi. Também ao Ênio, ao Beto, ao Gugu e ao Garibaldo, de "Vila Sésamo" (programa infantil importado dos Estados Unidos e transmitido, com adaptação nacional, pelas redes Globo e Cultura). Os irmãos abusavam, porque julgavam não existir pecado em Brás de Pina (o bairro de classe baixa no Rio, onde fomos criados), motivo por que, talvez, o guerilheiro Carlos Lamarca tenha se escondido lá por um tempo. Mas essa é outra história, timidamente revelada na biografia "O Capitão da Guerrilha", de Emiliano José e Oldack Miranda.
Só em 1979, finalmente liberada da censura, "Caminhando" ou "Pra não dizer que não falei das flores" entrou na nossa vida, pelas ondas da rádio Nacional FM e pelo compacto de rótulo preto (relíquia de um saudoso irmão, nosso padrinho). Levávamos aquele manifesto gravado para as festas, aproveitando os intervalos dos Bee Gees e dos "Embalos de sábado à noite" para pedirmos ao discotecário que tocasse o "hino da abertura". Não podíamos imaginar que a revolução na MPB da época, o LP "Realce", de Gilberto Gil, estava sendo gestada.
Comoveu-nos a gravação que o senhor fizera de "Asa Branca", de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, o mais belo registro da clássica canção nordestina que já ouvíramos. Vibrávamos com a letra, a melodia e o arranjo de "Disparada". E com o ritmo, marcado pelas pancadas intermitentes em uma queixada de burro. "Prepare o seu coração/pras coisas que eu vou contar/eu venho lá do sertão/eu venho lá do sertão/eu venho lá do sertão/e posso não lhe agradar..."

Infelizmente não poderemos derramar nesta carta o lirismo daqueles tempos, porque, por meio desta, confessamos a decepção e impaciência com a sua pessoa.

Gostamos muito do documentário "Cantador" produzido pela jornalista paulistana Paula Quintas. Gostou também, ou vai ter a caradura de dizer que não viu? Será que o senhor não sentiu a mínima emoção ao ouvir o Jair Rodrigues cantar a capella , dolentemente, "Disparada", na abertura da reportagem? Aos 73 anos, será que não tem remorsos de malbaratar a própria história diante de uma geração renovada que vive - e tem o direito a viver - em um país democrático?


Pois então: a Paula, de 22 anos, e a equipe de estudantes de jornalismo da Universidade Morumbi Anhembi, todos mais ou menos da mesma idade, transformaram o trabalho de conclusão de curso em excelente curta-metragem, de 26 minutos, no momento oportuno em que AI-5 completava 40 anos. Conversamos com a moça e soubemos da odisséia da equipe para gravar a reportagem, muito bem produzida e editada, sob a supervisão da professora Maria Eleutério. Todas as entrevistas ali estão conduzidas com apuro profissional.
Paula ficou, de janeiro a outubro do ano passado, praticamente todos os dias, fazendo campana em frente ao seu prédio, na Rua Martins Fontes, no centro velho de São Paulo. Ela nos contou ainda que, certo dia, conseguiu repassar-lhe um bilhete com o número do telefone e o senhor retornou, negando-lhe a entrevista. Orientador do pré-projeto, o professor Valdir Batista propôs ao grupo de estudantes que mudasse o tema, enquanto havia tempo. "Deus precisa gostar muito de vocês para conseguirem falar com ele."


A muito custo, Paula e Carlos Larios, também de 22 anos, conseguiram - com uma câmera MiniDVD (praticamente sem bateria) e a ajuda providencial de um amigo seu - gravar cinco minutos de conversa no restaurante do Novotel. Menos de três minutos foram aproveitados. Só valeu pelas imagens. Tanto esforço! Pois é, pra quê?


Jair Rodrigues revela que precisou mandá-lo à merda para que lhe tratasse com respeito e parasse de duvidar da seriedade dele no dia da apresentação de "Disparada" - a mais épica de suas canções - no II Festival da Música Popular Brasileira da TV Record , em 1966. Só porque o crioulo inzoneiro gargalhava, ao cantar o tradicional samba "Tristeza" (de Haroldo Lobo e Nilton Souza)? Só por causa do "deixa-que-diga-que-pense-que-fale?", como lembra o bem-humorado Hilton Accioly, ex-integrante do Trio Marayá, responsável pela escolha do intérprete? Logo o Jair Rodrigues que defendeu tão emocionadamente a sua composição em parceria com Theo de Barros? Justamente o Jair, que considera "Disparada" um marco na vida dele e na própria música popular brasileira?


Júlio Medaglia, maestro e ex-jurado de festivais, conta que o Chico Buarque de Hollanda pediu ao júri do festival, por intermédio do empresário Paulo Machado de Carvalho, então dono da Record, para dividir o prêmio máximo do certame com o senhor. Chico não aceitaria a vitória isolada de "A Banda." E o prêmio, de fato, foi fatiado entre os dois. Como foi? Precisava disso? Claro que o Chico Buarque tinha uma dívida com o senhor, que defendera, no ano anterior, "Sonho de Carnaval", na primeira apresentação de uma música do compositor carioca em festivais.


José Borges Campos, seu empresário na época, garante que o senhor voltou ao Brasil, em 1973, sob as condições rigorosas dos militares, uma das quais a de não se apresentar mais em território nacional. E o senhor, já tão arredio, concedeu entrevistas, alegando que, a partir de então, só comporia canções de amor e só voltaria a cantar aqui "quando houvesse poder judiciário que apreciasse este crime denominado República Federativa do Brasil". O que é isso? O senhor se convertera ao monarquismo? O empresário conta, ainda, que o senhor logo se tornou amigo do comandante da FAB e se internou, literalmente, em um quartel. Como assim? Vocação castrense? O senhor ficou incomunicável em uma caserna?


Vítor Nuzzi, jornalista, atesta que o senhor, nos anos 60, era um homem poderoso na mídia, o maior salário da televisão e do incipiente show business brasileiro. Quem diria? Mais do que a Hebe Camargo, a Elis Regina e o Simonal?


Solano Ribeiro, produtor do III Festival Internacional da Canção põe lenha na fogueira e diz que a TV Globo foi pressionada a não deixar "Caminhando" vencer a disputa, embora Nuzzi garanta que já entrevistara oito dos nove jurados vivos e ninguém confirmara a história. Ribeiro apóia-se na suposta confirmação feita pelo executivo de TV Walter Clark, que está morto. O fato é que Chico Buarque, Tom Jobim, Cinara e Cybele, autores e intérpretes de "Sabiá", a canção vencedora do festival, tiveram que suportar, estoicamente, dez minutos de vaias no Maracanãzinho lotado (perto de 30 mil pessoas) naquela madrugada de setembro de 1968.


Muitas são as questões acerca da sua biografia, senhor Geraldo, algumas levantadas no curto documentário elaborado pelos estudantes de São Paulo. Mas o senhor parece certos congressistas, que odeiam jornalistas, experientes ou jovens. E as pessoas acabam perdendo o interesse. O que seria das terras do benvirá, com um povo sem informação?


O que ouviu a equipe de universitários, quando finalmente conseguiu se aproximar do senhor, um ermitão fabricado que, vive distribuindo, como o evangelho, a letra de "Fabiana" - a canção que fez em homenagem à FAB? O que ouviram os estudantes? Uma frase pífia dita, enquanto acendia um cigarro. "O fogo queima; a televisão não sabe, ninguém sabe, mas o fogo queima, viu?" Sim, e daí? Paula Quintas nos confessou o sentimento de "agonia", mas, carne de pescoço, queria concluir o trabalho, "porque era (ou parecia) impossível." E o Geraldo Vandré? Morreu e esqueceram de enterrar? Poderia ser cremado. Porque, afinal, "o fogo queima."

PS - Em homenagem ao cantador e compositor paraibano de palavras afiadas e melodias fortes, que o senhor Geraldo um dia foi, deixaremos aqui o endereço eletrônico - no You Tube - em que se poderá relembrar Jair Rodrigues interpretando "Disparada", com uma garra impressionante, no festival da Record, de 1966. Em compensação, também deixamos no quintal desta morada uma das últimas aparições públicas do senhor, no ano passado, em um barzinho no centro de São Paulo, onde foi prestigiar um dos poucos amigos, o policial militar e crooner Samuel Lago. O Sargento Lago, no documentário, também presta depoimento (elogioso, naturalmente) a um personagem que quis deixar de existir. E no barzinho as pessoas continuam bebendo, fumando, conversando. Ignoram o trovador. Elas são as culpadas? O que o senhor fez da própria história?
Jair Rodrigues em "Disparada" http://www.youtube.com/watch?v=AkghEx3g6wI
Geraldo Vandré no show do Sargento Lago http://www.youtube.com/watch?v=519eyCVEliY

6 comentários:

  1. Agradeço as palavras, leitura e interpretação do meu trabalho. Ter apenas Geraldo Pedrosa de Araújo Dias, e não mais Geraldo Vandré, é uma sensação no mínimo triste!

    Gostaria de ressaltar que além de mim, e do Carlos(colaborador do grupo) os outros responsáveis pelo documentário são: Thaís Aleixo, Paulo Frias, e Jean Victor Casartelli.

    5 minutos de uma aparência chocante, e de palavras que devem ser estudadas... não podíamos deixar escapar, tínhamos que "fazer a hora"!


    Obrigada mais uma vez!!
    Um grande beijo,
    Paula Quintas
    (paularquintas@gmail.com)

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  2. Prezado Cláudio,

    Gostei do seu texto. Talvez como você, alimento um inconformismo com o "desaparecimento" de Vandré - embora ele apareça de vez em quando, como Geraldo Pedrosa me disse um dia.

    O trabalho da Paula e colegas foi dos mais bonitos, principalmente pela persistência, coisa rara hoje em dia. Eles estão mesmo de parabéns.

    Concluí recentemente um livro sobre Vandré, ainda à procura de editora. Evidentemente, ele não quis falar. Mas a história precisa ser contada, as canções precisam ser cantadas.

    Abraços,

    Vitor

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  3. Muito bom! Um personagem desse merece ser lembrado, ainda que o próprio não queira. Cabe ressaltar que o caso de Geraldo Vandré é bem diferente do de Wilson Simonal. Para os amigos que acompanham o blog, ofereço minha página para uma reflexão sobre Simonal (www.cadernodacapaverde.blogspot.com).
    Resumindo: Simonal foi assassinado pela memória; Vandré suicidou-se na memória.

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  4. Instigante o texto, parabéns!
    Pena o Vandré ter silenciado... mas pior ainda é não ouvirmos nas rádios nenhuma das belas canções que ele compôs e interpretou. De vez em quando, ainda ouve-se a "guarânia de dois acordes" - principalmente na versão ao vivo, do Maracanazinho, e mais raramente a gravação de estúdio, que tem um belo arranjo.
    PS: o menestrel perturbado foi castigado pelo silêncio: todo mundo andou gravando "Caminhando", inclusive a Simone, um grupo de pagode e... acredite se quiser, Vando, num show ao vivo no Asa Branca, com corinho das moças sem calcinha, que bradavam a plenos pulmões: "vem, vamos embora, que esperar não é saber/quem sabe faz a hora, não espera acontecer".
    Um abraço! Rogério.

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  5. O comentário acima foi feito pelo jornalista Rogério Imbuzeiro, que, por problemas técnicos, nos encaminhou a mensagem por e-mal. Muito obrigado, Rogério

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  6. Olha, eu não sabia sequer que o Vandré estava vivo! E fiquei assustado ao ver como ele está agora...Me deu um certo arrepio, porque esse daí já comandou um movimento que poderia ter parado o país.

    Rapaz, que blog do caralho!

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