segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

A rainha-mãe do Recôncavo - Capítulo 1

Quem não rezou a novena de dona Canô?
A casa em Santo Amaro
A casa azul e branca de varanda estreita, no número 179 da rua Viana Bandeira, perto da praça central de Santo Amaro da Purificação, guarda uma preciosidade do Recôncavo Baiano. Ali vive Claudionor Viana Teles Velloso, 103 anos incompletos. Ela nasceu em 16 de setembro de 1907. No portão da casa, um dos 26 marcos de interesse turístico no guia municipal, é a própria dona Canô quem nos recebe. E a todos os visitantes brasileiros e estrangeiros que lá batem palmas: turistas ávidos em conhecer a riquíssima cultura da região; representantes de associações de terceira idade; pesquisadores, jornalistas, estudantes e estudiosos da música popular interessados na biografia dos mais famosos filhos da anciã, Maria Bethânia e Caetano Velloso. "Vem gente de São Paulo, do Rio, de Salvador, da América, de Portugal...", enumera. "Eu não sou nada, como posso deixar de atender as pessoas que vêm aqui para conhecer a cidade, saber da minha saúde?"


Dona Canô, a voz canora, sombrinha em punho, gosta de passear de braços dados com os visitantes para contar histórias de Santo Amaro e do Recôncavo, berço do samba de roda e do maculelê, de onde ela só arreda os pés em circunstâncias muito especiais. Na rua, velhos, moços e crianças a reverenciam como autoridade máxima. A mais recente das intermináveis polêmicas provocadas por Caetano, o enfant terrible sexagenário de dona Canô, serviu ao menos para provar que a última palavra, no clã Teles Velloso, é mesmo a dela.


Em 2009, ao justificar o apoio à candidatura presidencial de Marina Silva, Caetano Velloso desancou o presidente da República. "Não posso deixar de votar na Marina. É por demais forte, simbolicamente, para me abalar. Marina é Lula e Obama ao mesmo tempo. É meio preta, é cabocla, é inteligente como o Obama, não é analfabeta como o Lula, que não sabe falar, é cafona, grosseiro." Dona Canô corou de vergonha e imediatamente desautorizou o filho. "Lula não merece isso, não. Quero muito bem a ele. Foi uma ofensa sem necessidade. Caetano não tinha que dizer aquilo. Vota em Lula se quiser, não precisa ofender nem procurar confusão.", desculpou-se. Quem encerrou o assunto foi o presidente, ao telefonar pessoalmente para Santo Amaro. "Não fique chateada, porque gosto muito da senhora e do Caetano também. Está tudo bem, essas coisas acontecem."

Corpo ágil, metro e meio de altura, dona Canô comanda sutilmente a vida de Santo Amaro com beatitude, paciência, dignidade e devoção. "Nasci aqui, graças a Deus, e nunca quis sair; só deixaria Santo Amaro em caso de extrema necessidade", diz a viúva de José Teles Velloso, o Seu Zezinho, funcionário público dos Correios, morto em 13 de dezembro de 1983, oito filhos, dez netos e seis bisnetos. "Na infância, vivia em outra casa; comprei esta já velha, depois que os meninos foram estudar em Salvador."


Pobre de quem imagina que dona Canô, em Santo Amaro, é "apenas" mãe de Caetano Velloso e Maria Bethânia. Para o povo santamarense, o compositor e a cantora é que deram muita sorte de nascer da união de Canô e Zezinho. Pela ordem de nascimento os filhos de Dona Canô são Clara Maria, Maria Isabel (a poetisa Mabel Velloso), Rodrigo Antônio, Roberto José, Caetano Emanuel, Maria Bethânia, Irene e Nicinha, as duas últimas de criação. Normalmente, ela só consegue reunir a família no dia do próprio aniversário ou na festa de Nossa Senhora da Purificação, celebrada há mais de 200 anos.


Dona Canô diz que mora "praticamente só", o que "deixa os meninos preocupados, porque vivo com os empregados." É exagero. Dona Canô mora com os 70 mil habitantes de Santo Amaro, distribuidos em 524 quilômetros quadrados, com dois distritos (Acupe e Oliveira dos Campinhos)e dois povoados (Pedras e São Brás). O povo tem por ela uma veneração que só vendo! Quando se refere a algum vizinho ou conhecido muito chegado, Dona Canô tem uma maneira inconfundível de dizer "fulano tem muita coisa comigo."


A 86 quilômetros de Salvador, a cidade de Santo Amaro da Purificação é, culturalmente, uma das mais importantes do Brasil. Ali, floresceu o maculelê, dança de confronto com bastões consolidada, no século passado, pelo saudoso Popó, operário dos trilhos urbanos. O maculelê é uma dança de canavial, em que os negros terçavam cepos de cana de açúcar para extravazar o ódio contra os feitores. A ira era sublinhada pelo canto dos escravos em dialeto africano. "O maculelê é manifestação típica de Santo Amaro e até hoje é dançado nas escolas, na festa de 2 de Julho (Independência da Bahia) e representada até no exterior", conta dona Canô. Ela aconselha a quem quiser saber mais sobre o maculelê a leitura da obra do poeta Plínio de Almeida.


"Aqui também tem a capoeira", ressalta dona Canô, que lembra de, na infância, ter assistido às rodas dos capoeiristas Besouro Cordão de Ouro e Doze Homens. "Menininha, via esses homens jogando capoeira; o Besouro, muito bravo, acabou assassinado." Outra tradição - em Santo Amaro e na vizinha Cachoeira - é o candomblé, na festa de 13 de maio, o Bembé do Mercado. O samba de roda nasceu no Recôncavo. "É uma dança formidável", atesta Canô. "O que se toca hoje por aí não pode sequer se chamado de samba", critica. "O meu neto, J. Velloso, organiza registros e gravações de samba de roda com todo o pessoal de Santo Amaro". Ela destaca, da terra, a recém-falecida Edith do Prato e o grupo Sambamania. "O ritmo de hoje é muito rápido, e samba tem que ser miudinho", ensina. Canô sempre participou das festas de São João, mas admite que, de uns anos para cá, o ânimo não é mais o mesmo. "Digo para as pessoas que não saio de casa por causa da friagem, mas a verdade é que as danças de quadrilha hoje são horríveis, muito ligeiras", segue a senhora orgulhosa dos domínios.

Os primeiros habitantes de Santo Amaro surgiram em 1557, às margens do rio Taripe, em terras que faziam parte da sesmaria doada por Mém de Sá a Fernão Rodrigues Castelo Branco. Na sesmaria, Mém de Sá erigiu, em 1573, o engenho real de Seregipe do Conde, cujas ruínas lá estão. Houve conflitos entre os primeiros habitantes (os tupinambás) e os colonizadores: um padre jesuíta foi assassinado em plena capela. A Igreja Católica interditou o povoado, que, em 1591, se tornou curato.


Em 5 de janeiro de 1527, Santo Amaro tornou-se vila. Em 13 de março de 1822, foi elevada à categoria de cidade. Com a ata da vereação de 14 de junho de 1822, foi oa primeira cidade a apoiar oficialmente a independência do Brasil. O documento foi aprovado no Sobrado do Biju, construído em 1804, onde nasceu o Barão do Sergy. Os santamarenses tiveram participação na Revolta da Sabinada (1837), na Guerra do Paraguai (1865), comandados pelo Barão de Sergy e, antes, na Conjuração dos Alfaiates (1798), chefiada por Manoel Faustino dos Santos Lira.


Cláudio Renato

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

O compositor do fim do mundo

Lupicínio, a lenda dos cabarés
Homenagem da torcida do Grêmio ao autor do hino oficial
Que poeta é Lupicínio Rodrigues!, exclamaria Jorge Luis Borges, porque, como no tango, só os mortos vivem nas palavras e nas canções do compositor gaúcho. O negro elegante do extremo sul do Brasil jamais deixou de cantar em cabarés. Rasgava os corações com voz delicada, versos magoados, melodramas exagerados. O jornalista Mário Marona, também dos pampas, está cercado de razão quando diz que Lupicínio é o maior fazedor de tangos do Brasil. É o intérprete por excelência dos bêbados, dos traídos, dos fracassados, dos mortos-vivos, dos abandonados, dos brasileiros sedentos de vingança e perdão. "Lupicínio era dono de um bar num casarão de madeira na beira do Rio Guaíba", conta Marona. "Criança, passava pela frente, de ônibus, e olhava fascinado. Dizem que era um puteiro frequentado pela boemia portoalegrense. Sempre que passávamos, meu pai contava alguma história. Acho que ele era habitué."


Lupicínio Rodrigues desconhecia teoria musical, não tocava qualquer instrumento e tamborilava o ritmo das canções em caixinhas de fósforos. Compunha as melodias de amor traído assoviando, para que o povo também, pelo assovio, as eternizasse. E o assovio é a herança maior que um compositor nos pode deixar, já assinalava o dramaturgo Nélson Rodrigues, ao brindar A Banda, primeiro sucesso nacional de Chico Buarque de Hollanda, em 1966.


Quando os Azes do Samba (Francisco Alves, Mário Reis, Peri Cunha, Nonô e Noel Rosa) visitaram Porto Alegre, em 1932, puderam conhecer de perto e no nascedouro o talento de Lupicínio, que, com apenas 17 anos, se apresentava nos lupanares da cidade. Noel profetizou: "O garoto é bom, vai longe". Emoção maior para Lupicínio foi conhecer Mário Reis, a quem, cantando, procurava imitar os registros macios. Aos poucos, as músicas de Lupicínio viajariam clandestinamente pelo Brasil. Era levada de navio para o Rio de Janeiro pelos marinheiros do Lloyd e da Costeira, frequentadores das zonas de baixo meretrício, os cabarés da praça Mauá.


No assovio e na caixinha, Lupicínio fez perto de 600 canções, das quais 150 ficaram registradas, entre outras, nas vozes de Orlando Silva, Francisco Alves, Cyro Monteiro, Linda Batista, Dalva de Oliveira, Elza Soares, Jamelão e dele próprio. Nervos de Aço, Felicidade (ambas gravadas pela primeira vez em 1947), Esses Moços (1948) e Vingança (1951) estão entre os maiores clássicos do cancioneiro nacional e os mais estrondosos sucessos de consequencias incontroláveis. Ao ponto de uma onda de suicídios ter se espalhado pelo país, quando Linda Batista gravou Vingança - comoção comparável à provocada por Orson Welles, em outubro de 1938, quando o jovem cenarista propôs à Rádio CBS a adaptação radiofônica, sem aviso prévio, de A Guerra dos Mundos, de H.G. Wells. Muitos americanos se mataram imaginando que de fato extraterrestres atacavam a Terra.


Lupicinio Rodrigues Filho conta que o pai teve canções gravadas na Espanha, na Bélgica, na França, em Portugal, no Japão, nos Estados Unidos, na Venezuela e em mais uma dezena de países, mas, provavelmente, a composição dele mais executada seja o hino oficial do Grêmio Portoalegrense. Em uma certa tarde de 1953, ano em que o clube completava 50 anos, Lupi e um grupo de amigos bebiam em um tradicional bar da Cidade Baixa. Preparava-se para assistir a mais uma peleja do "mortal tricolor" no Estádio do Timbaúva. Momentos antes da partida, foi informado que os bondes haviam parado. Greve dos motorneiros. Lupi sacou a caixa de fósforos, começou a assoviar e escreveu em um guardanapo os versos. "Até a pé nós iremos/Para o que der e vier/Mas o certo é que nós estaremos/Com o Grêmio onde o Grêmio estiver". Só no fim da partida, em outro botequim, completou a letra. O hino ganhou o concurso nas comemorações do cinquentenário do clube. Foi tão bem acolhido pela torcida que acabou promovido a hino oficial.

A partir de 1971 e até 1974, ano em deu o último sopro, às vésperas de completar 60 anos, no pior sufoco da ditadura, Lupicínio Rodrigues voltaria a gozar de popularidade impressionante, como nos anos 50. Suas músicas de dor de cotovelo foram regravadas por Caetano Veloso, Paulinho da Viola, Gal Costa, Elis Regina, Gilberto Gil, Maria Bethânia. É Caetano - que em 1972 gravou Volta - quem conta que Lupicínio não tinha preconceitos. Após um show para uma plateia conservadora em Porto Alegre, Caetano - que se apresentara em roupas psicodélicas, cabelos longos e trejeitos efeminados - foi apresentado a Lupicínio. Tremia como vara verde. E, ao chegar perto, percebeu que Lupi passara batom nos lábios, para deixar o jovem mais à vontade. A partir de então, o tropicalista pôde compreender melhor a adoração que o poeta concretista Haroldo de Campos devotava ao compositor gaúcho.

Lupicínio Rodrigues nasceu numa vila pobre do bairro Cidade Baixa em Porto Alegre, em 16 de setembro de 1914 e morreu (do coração), na mesma cidade, em 27 de agosto de 1974. Quarto filho do funcionário público Francisco Rodrigues e da dona de casa Abigail, teve 20 irmãos. A tendência à boemia se revelaria na infância. Lupi foi aluno medíocre. Só pensava em cantar, batucar e namorar. Aos 12 anos, já fugia de casa para participar das rodas de cantigas no bairro. Aos 14, em 1928, compôs a primeira canção, uma marchinha de carnaval que nunca foi gravada. Em entrevista ao Pasquim, Lupicínio contou a inacreditável história: "Três anos depois, a marcha conquistou o primeiro lugar num concurso oficial, executada pelo cordão carnavalesco Prediletos. Um ano mais tarde, a música foi executada por outro cordão, o Rancho Seco, e novamente ganhei. E o mais interessante: 20 anos depois, quando eu fazia parte de uma comissão que julgava músicas carnavalescas, me apareceu novamente a marchinha, desta vez cantada pelo grupo Democratas, como autoria de outros dois compositores. Eu não falei nada aos outros membros da comissão e a música novamente venceu. Deixei os meninos receberem o prêmio e até os convidei para tomarem uma cerveja comigo."


Lupicínio completou o curso ginasial e aprendeu o ofício de mecânico. Trabalhou, como operário, numa fábrica de parafusos, foi empurrador de rodas de bonde, baleiro na porta de cinema e entregador de uma livraria. O pai fez de tudo para livrar o guri da boemia. Então, aos 15 anos, com documentos falsificados para 18, Francisco apresentou Lupicínio ao Exército como "voluntário". Nas horas de folga, o rapaz cantava no conjunto formado pelos soldados do batalhão. Em 1932, foi mandado para São Paulo, mas não chegou à frente de batalha da Revolução Constitucionalista. Promovido a cabo, foi transferido para Santa Maria, a 290 quilômetros da capital gaúcha.


E foi em Santa Maria que, aos 18 anos, Lupicínio conheceu Inah, primeiro amor, que lhe marcou profundamenta a obra. Inah rompeu com Lupi, porque não aceitava a vida boêmia do compositor. Por essa ocasião, nasceram Felicidade e Nervos de Aço, dedicadas àquela paixão malsucedida. Lupicínio confessava ter ganhado muito dinheiro com o sofrimento. "Cada uma que me faz uma sujeira, me deixa inspiração para compor. Meu primeiro automóvel foi comprado com o dinheiro de um samba para uma mulher. Minha casa foi adquirida com o dinheiro de um samba que fiz para outra, também por causa de uma traição.". O doloroso rompimento com Inah estimulou Lupicínio a viajar voluntariamente, pela primeira e única vez, em 1939, com destino ao Rio de Janeiro, onde ficaria por seis meses. Nas mesas dos bares cariocas, cantaria com Haroldo Lobo, Ary Barroso e Nássara. O primeiro sucesso nacional foi Se Acaso Você Chegasse (com Felisberto Martins), de 1936, gravado por Cyro Monteiro em 1938 e, mais tarde, em 1959, por Elza Soares. Aos 25 anos, Lupicínio já se tornara lenda nos cabarés, como Lampião no cangaço.

Cláudio Renato