Havia, no começo do século passado, um botequim em Vila Isabel conhecido como Ponto dos Cem Réis, quase na esquina do Boulevard (avenida 28 de setembro) com a rua Souza Franco, onde Noel Rosa compôs muitas de suas canções geniais. Assim se chamava porque, naquele lugar, o bonde fazia a troca de seção e se cobrava nova passagem de quem vinha do centro da cidade e prosseguia a viagem até o Engenho Novo. Quando o carro elétrico ali chegava, em frente ao café mais frequentado por Noel e pelos funcionários da fábrica Confiança de tecidos, o motorneiro avisava aos berros: "Ponto das passagens de cem réis!" Em 1938, um ano após a morte do feiticeiro da Vila, o café foi rebatizado e passou a se chamar Capelinha. Existe até hoje. E foi exatamente ali, na penúltima quarta-feira antes do carnaval, que se testemunhou um encontro histórico.
Martinho da Vila, sempre madrugador, foi um dos primeiros a chegar. Ele presidiria uma mesa-redonda informal sobre os sambas de enredo, entre tulipas de chope, bolinhos de bacalhau, pastéizinhos de carne e empadinhas de camarão. Acompanhado pela mulher, Cléo Ferreira, 33 anos mais jovem, Martinho, de 71, parecia uma criança:
- Olha aí, desbanquei a belíssima Renata Vasconcellos, e fui a capa da revista da Folha de S.Paulo - brincava com um exemplar da publicação, cuja capa trazia uma foto do sambista sem camisa, braços cruzados nos ombros e o título "Corpo fechado". Na mesma edição, a revista publicara, em páginas internas, uma entrevista e um ensaio fotográfico com a jornalista e apresentadora da TV Globo.
No Capelinha,com Martinho da Vila, reuniram-se Zuzuca (Salgueiro), Zé Catimba (Imperatriz Leopoldinense), Aluísio Machado (Império Serrano), Paulinho Mocidade, David Correia (Portela e União da Ilha), Sérgio Cabral, Haroldo Costa e mais um punhado de bambas para relembrarem os sambas de enredo que marcaram época. O documentário foi produzido e gravado pela equipe do Bom Dia Brasil, comandada pelos editores Miguel Athayde, Fátima Baptista, Gustavo Gomes e pelo repórter Marcos Uchoa, uma turma abusada que, há dois anos, surpreendeu o país, ao levar para o alto do Pão de Açúcar uma centena de sambistas que lá fizeram o Carnaval do Céu, considerado pelos jornalistas Sérgio Cabral e Haroldo Costa "um marco na história da televisão brasileira."
Logo no começo do encontro, cada sambista deu a "carteirada", puxando o samba que o consagrara. Martinho da Vila sugeriu, para início de conversa, que se cantasse o "maior de todos os sambas de enredo", Heróis da Liberdade, do Império Serrano (1969). Lembramos, em silêncio, de um texto do professor Luís Antônio Simas, segundo o qual nos próximos mil anos três acontecimentos farão o ano de 1969 ser lembrado: a chegada do homem à Lua, o milésimo gol de Pelé e o samba do Império, assinado por Silas de Oliveira, Mano Décio da Viola e Manoel Ferreira. Falou-se e se cantou muito de Silas, que ninguém se atreve a duvidar ter sido maior compositor do gênero em todos os tempos, autor de outras obras-primas, sempre pela verde e branca de Madureira, como Os Cinco Bailes da História do Rio (1965, com Ivone Lara e Bacalhau) e Aquarela Brasileira (1964).
Quando Zuzuca puxou a Festa para um Rei Negro - "olelê/olalá/pega no ganzê/pega no ganzá" - o salgueirense Haroldo Costa, sempre elegante, lembrou, que, naquele ano de 1971, o Salgueiro fez um desfile lamentável e aquele samba garantiu a vitória no carnaval. "É uma prova de como os sambas de enredo podem ser fundamentais para as conquistas de uma escola."
O clima de descontração era tamanho que, em determinado momento, se esqueceram das cinco câmeras, monitores, cabos, trilhos e operadores da emissora de TV. O bate-papo girava em torno da importância dos sambas de enredo no sentido de se nacionalizar o carnaval do Rio, quando um pé-inchado que conseguira penetrar no ambiente gritou:
- É isso aí, Sérgio Cabraaaal!!!!!!.
O clima de descontração era tamanho que, em determinado momento, se esqueceram das cinco câmeras, monitores, cabos, trilhos e operadores da emissora de TV. O bate-papo girava em torno da importância dos sambas de enredo no sentido de se nacionalizar o carnaval do Rio, quando um pé-inchado que conseguira penetrar no ambiente gritou:
- É isso aí, Sérgio Cabraaaal!!!!!!.
O jornalista não perdeu o prumo, muito menos o bom humor:
- Silêeencio no estúdiooooo!!!!!
A cantoria varou noite adentro até que uma multidão que se concentrava em frente ao Capelinha começou a gritar: "Martinho! Martinho! Martinho!"
Era a Vila Isabel que já se perfilava para o ensaio na 28 de Setembro. Martinho e os demais sambistas deixaram o Capelinha, atravessaram a avenida e, ovacionados pelo o povo, subiram na caminhonete do Feijão para se juntaram ao Tinga, intérprete oficial da escola. Do alto, puderam ver as bandeiras azuis e brancas desfraldadas nas sacadas dos apartamentos e nas calçadas musicais. A bateria do mestre Átila dava o sinal. E todos cantaram à exaustão o samba Presença de Noel, a obra-prima que Martinho da Vila fez em homenagem ao centenário do feiticeiro.
Calor infernal, alegria avassaladora. Os rostos felizes encharcavam-se de suor e lágrimas.
Na porta de casa, na Praça Barão de Drumond (Praça Sete, para os íntimos), ainda ouvimos um casal com a camisa do Bloco Quizomba, quase sem voz, a cantar o samba de Martinho. E a moça se aproximou para perguntar:
- Quando vai ao ar?
- Sexta-feira, antes do carnaval, às 7h15.
- Que bom! E vamos nos encontrar aqui, na Quarta-Feira de Cinzas, para a festa da vitória!
Que Oxalá os ouça e eleve ainda mais a autoestima do povo de Noel!
Cláudio Renato