A casa azul e branca de varanda estreita, no número 179 da rua Viana Bandeira, perto da praça central de Santo Amaro da Purificação, guarda uma preciosidade do Recôncavo Baiano. Ali vive Claudionor Viana Teles Velloso, 103 anos incompletos. Ela nasceu em 16 de setembro de 1907. No portão da casa, um dos 26 marcos de interesse turístico no guia municipal, é a própria dona Canô quem nos recebe. E a todos os visitantes brasileiros e estrangeiros que lá batem palmas: turistas ávidos em conhecer a riquíssima cultura da região; representantes de associações de terceira idade; pesquisadores, jornalistas, estudantes e estudiosos da música popular interessados na biografia dos mais famosos filhos da anciã, Maria Bethânia e Caetano Velloso. "Vem gente de São Paulo, do Rio, de Salvador, da América, de Portugal...", enumera. "Eu não sou nada, como posso deixar de atender as pessoas que vêm aqui para conhecer a cidade, saber da minha saúde?"
Dona Canô, a voz canora, sombrinha em punho, gosta de passear de braços dados com os visitantes para contar histórias de Santo Amaro e do Recôncavo, berço do samba de roda e do maculelê, de onde ela só arreda os pés em circunstâncias muito especiais. Na rua, velhos, moços e crianças a reverenciam como autoridade máxima. A mais recente das intermináveis polêmicas provocadas por Caetano, o enfant terrible sexagenário de dona Canô, serviu ao menos para provar que a última palavra, no clã Teles Velloso, é mesmo a dela.
Em 2009, ao justificar o apoio à candidatura presidencial de Marina Silva, Caetano Velloso desancou o presidente da República. "Não posso deixar de votar na Marina. É por demais forte, simbolicamente, para me abalar. Marina é Lula e Obama ao mesmo tempo. É meio preta, é cabocla, é inteligente como o Obama, não é analfabeta como o Lula, que não sabe falar, é cafona, grosseiro." Dona Canô corou de vergonha e imediatamente desautorizou o filho. "Lula não merece isso, não. Quero muito bem a ele. Foi uma ofensa sem necessidade. Caetano não tinha que dizer aquilo. Vota em Lula se quiser, não precisa ofender nem procurar confusão.", desculpou-se. Quem encerrou o assunto foi o presidente, ao telefonar pessoalmente para Santo Amaro. "Não fique chateada, porque gosto muito da senhora e do Caetano também. Está tudo bem, essas coisas acontecem."
Corpo ágil, metro e meio de altura, dona Canô comanda sutilmente a vida de Santo Amaro com beatitude, paciência, dignidade e devoção. "Nasci aqui, graças a Deus, e nunca quis sair; só deixaria Santo Amaro em caso de extrema necessidade", diz a viúva de José Teles Velloso, o Seu Zezinho, funcionário público dos Correios, morto em 13 de dezembro de 1983, oito filhos, dez netos e seis bisnetos. "Na infância, vivia em outra casa; comprei esta já velha, depois que os meninos foram estudar em Salvador."
Pobre de quem imagina que dona Canô, em Santo Amaro, é "apenas" mãe de Caetano Velloso e Maria Bethânia. Para o povo santamarense, o compositor e a cantora é que deram muita sorte de nascer da união de Canô e Zezinho. Pela ordem de nascimento os filhos de Dona Canô são Clara Maria, Maria Isabel (a poetisa Mabel Velloso), Rodrigo Antônio, Roberto José, Caetano Emanuel, Maria Bethânia, Irene e Nicinha, as duas últimas de criação. Normalmente, ela só consegue reunir a família no dia do próprio aniversário ou na festa de Nossa Senhora da Purificação, celebrada há mais de 200 anos.
Dona Canô diz que mora "praticamente só", o que "deixa os meninos preocupados, porque vivo com os empregados." É exagero. Dona Canô mora com os 70 mil habitantes de Santo Amaro, distribuidos em 524 quilômetros quadrados, com dois distritos (Acupe e Oliveira dos Campinhos)e dois povoados (Pedras e São Brás). O povo tem por ela uma veneração que só vendo! Quando se refere a algum vizinho ou conhecido muito chegado, Dona Canô tem uma maneira inconfundível de dizer "fulano tem muita coisa comigo."
A 86 quilômetros de Salvador, a cidade de Santo Amaro da Purificação é, culturalmente, uma das mais importantes do Brasil. Ali, floresceu o maculelê, dança de confronto com bastões consolidada, no século passado, pelo saudoso Popó, operário dos trilhos urbanos. O maculelê é uma dança de canavial, em que os negros terçavam cepos de cana de açúcar para extravazar o ódio contra os feitores. A ira era sublinhada pelo canto dos escravos em dialeto africano. "O maculelê é manifestação típica de Santo Amaro e até hoje é dançado nas escolas, na festa de 2 de Julho (Independência da Bahia) e representada até no exterior", conta dona Canô. Ela aconselha a quem quiser saber mais sobre o maculelê a leitura da obra do poeta Plínio de Almeida.
"Aqui também tem a capoeira", ressalta dona Canô, que lembra de, na infância, ter assistido às rodas dos capoeiristas Besouro Cordão de Ouro e Doze Homens. "Menininha, via esses homens jogando capoeira; o Besouro, muito bravo, acabou assassinado." Outra tradição - em Santo Amaro e na vizinha Cachoeira - é o candomblé, na festa de 13 de maio, o Bembé do Mercado. O samba de roda nasceu no Recôncavo. "É uma dança formidável", atesta Canô. "O que se toca hoje por aí não pode sequer se chamado de samba", critica. "O meu neto, J. Velloso, organiza registros e gravações de samba de roda com todo o pessoal de Santo Amaro". Ela destaca, da terra, a recém-falecida Edith do Prato e o grupo Sambamania. "O ritmo de hoje é muito rápido, e samba tem que ser miudinho", ensina. Canô sempre participou das festas de São João, mas admite que, de uns anos para cá, o ânimo não é mais o mesmo. "Digo para as pessoas que não saio de casa por causa da friagem, mas a verdade é que as danças de quadrilha hoje são horríveis, muito ligeiras", segue a senhora orgulhosa dos domínios.
Os primeiros habitantes de Santo Amaro surgiram em 1557, às margens do rio Taripe, em terras que faziam parte da sesmaria doada por Mém de Sá a Fernão Rodrigues Castelo Branco. Na sesmaria, Mém de Sá erigiu, em 1573, o engenho real de Seregipe do Conde, cujas ruínas lá estão. Houve conflitos entre os primeiros habitantes (os tupinambás) e os colonizadores: um padre jesuíta foi assassinado em plena capela. A Igreja Católica interditou o povoado, que, em 1591, se tornou curato.
Em 5 de janeiro de 1527, Santo Amaro tornou-se vila. Em 13 de março de 1822, foi elevada à categoria de cidade. Com a ata da vereação de 14 de junho de 1822, foi oa primeira cidade a apoiar oficialmente a independência do Brasil. O documento foi aprovado no Sobrado do Biju, construído em 1804, onde nasceu o Barão do Sergy. Os santamarenses tiveram participação na Revolta da Sabinada (1837), na Guerra do Paraguai (1865), comandados pelo Barão de Sergy e, antes, na Conjuração dos Alfaiates (1798), chefiada por Manoel Faustino dos Santos Lira.
Cláudio Renato