segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Choros, chorinhos e chorões em 5 minutos

Pixinguinha (1897-1973), a alma do choro
É do desenhista, artista plástico e designer William Figueiredo Côgo, de 34 anos, a idéia supimpa de contar em um filme de curta metragem - com traços firmes, singelos e muito colorido - uma breve história do choro, único gênero musical genuinamente carioca. São cinco minutos de emoção, beleza, talento e simplicidade. Côgo conseguiu fazer um desenho animado surpreendentemente original: calçadas em pés de moleque, bolas de gude, pipas coloridas, sino de igreja, o luar alto, crianças pobres (provavelmente filhas de estivadores, operários, lavadeiras e quituteiras), mulata, pandeiro, viola, saxofone e muita alegria. Os cenários são pintados a mão. Um choro recorrente. Sem palavras.

Para realizar Alma carioca, um choro de menino, Côgo se inspirou nos traços do caricaturista José Carlos de Brito e Cunha, o J.Carlos (1884-1950). Foi a melhor oportunidade que o diretor e designer, também carioca, formado pela Escola de Belas Artes da UFRJ, encontrou para homenagear Pixinguinha, João da Bahiana e Donga - a santíssima trindade do chorinho - pais fundadores de Os Oito Batutas, o primeiro grupo a levar a música popular brasileira para o exterior. Foram para a Europa em janeiro de 1922 para uma curta apresentação. Acabaram ficando por lá meio ano.

O filmete retrata a história de um menino, morador da zona portuária do Rio, que, nos primeiros anos do século passado, se encanta com os chorinhos e os chorões originais da Pedra do Sal, na época da Tia Ciata e outras baianas fundamentais. A inspiração nos traços de J. Carlos é coerente. O cartunista, chargista e ilustrador retratava o Rio de Janeiro dos anos 1920, período em que o choro - gênero criado pelo flautista Joaquim Calado no fim do século 19 - deixava os salões e começava a conquistar definitivamente as ruas da cidade.


sábado, 12 de dezembro de 2009

Ferreira Gullar: "Será arte?"

Ferreira Gullar, o bruxo maranhense de Copacabana
A Fonte, de Marcel Duchamp: o urinol mais caro do mundo

O francês naturalizado americano Marcel Duchamp (1887-1968) é um dos mais cultuados artistas plásticos dos últimos cem anos. Chegou a ser chamado de gênio visionário e comparado, em importância, ao italiano Giotto di Boldoni (1267-1337), que introduziu na pintura as noções de perspectiva e tridimensionalidade, pilares de sustentação da escola renascentista de Michelangelo, Da Vinci e Rembrandt. Para o poeta, ensaísta e crítico maranhense Ferreira Gullar, tal valorização (paparicação) da obra (?) de Duchamp é uma tremenda idiotice e um dos maiores esbulhos que, perpetrado no século 20, ainda vigora em academias, museus e bienais pelo Brasil e mundo afora.

Os defensores de Duchamp alegam que a revolução promovida pelo artista francês se dá pelo fato de ele não ter se contentado em estimular apenas a visão, a admiração das imagens captadas pelos olhos, mas a troca intelectual do admirador com suas peças. Ao tirar um objeto comum do contexto usual e elevá-lo à categoria de arte, Duchamp anunciava ao mundo que a habilidade manual do artista já não bastava para definir uma obra. As peças prontas, os ready made, inauguravam, destarte, a concepção de vanguarda contemporânea, da arte conceitual.

Duchamp angariou notoriedade mundial quando, com a assinatura R.Mutti, inscreveu em um concurso de arte nos Estados Unidos a peça A Fonte - um urinol comum, branco e esmaltado, comprado, em 1917, em uma loja de material de construção em Nova York. A peça foi recusada pelo júri do concurso por não ter nenhuma intervenção artística, mas, imediatamente, apareceram críticos em busca de chifres na cabeça do cavalo. Eles enxergaram no urinol contornos femininos e recorriam a explicações supostamente psicanalíticas para legitimá-lo como obra de arte: era preciso se ter em mente um membro masculino lançando urina sobre as formas femininas. Ou mesmo sêmen, em caso de masturbação.

Aos 79 anos, Ferreira Gullar é considerado o maior poeta vivo do Brasil. Pelo menos, é o que tem a fisionomia mais expressiva. Ele acredita que a vanguarda se esgotou, ao buscar apenas a novidade e negar a permanência dos valores estéticos. A tal vanguarda conceitual contemporânea tornou-se o movimento mais arrogantemente conservador e hipócrita, principalmente nas artes plásticas. No caso de Duchamp, ele explica: "na olaria, aquilo era um urinol fabricado em linha de montagem. Na casa de material de construção, era um urinol para ser vendido a um bar ou a um restaurante. No bar, não deixaria de ser urinol, onde os homens se aliviariam. Para ganhar o estatuto de obra de arte, depende de um museu. Que vanguarda é essa?" Ou seja: segundo o poeta, é a instituição que confere a legitimação de obra de arte. "Ou a obra é de vanguarda ou é institucional, as duas coisas é um contrassenso."

Há exatamente 50 anos, Ferreira Gullar redigiu o Manifesto Neoconcreto, que marcou o rompimento do grupo do Rio, encabeçado por ele, Lygia Pape e Mário Pedrosa, com os concretistas de São Paulo. Por causa da efeméride, Gullar tem sido muito procurado para explicar por que rompeu com o movimento. Autor de um livro intitulado Argumentação contra a morte da arte, o poeta diz que não podia mais tolerar o esquematismo matemático e racionalismo dogmático impostos pelos paulistas. Jamais foi perdoado pelos irmãos Augusto e Haroldo Campos e por Décio Pignatari, os corifeus do programa concretista. O didatismo de Gullar é de contundência e lucidez impressionantes. "O concretismo deveria se chamar abstratismo, porque, para se aproximar do concreto é necessário um somatório de atributos. Quando se escreve a palavra "gato", se está tratando de uma abstração. Mas quando se escreve do "gato preto do seu José que mora na última casa da rua tal, no quarteirão tal, aí vamos nos aproximando do concreto."

A obra poética de Ferreira Gullar é indestrutível. O Poema Sujo, concebido em 1976 durante o exílio em Buenos Aires e trazido ao Brasil, clandestinamente e gravado em fita cassete por Vinícius de Moraes, é uma das obras mais estudadas da literatura brasileira atualmente. Sob a angústia das ditaduras militares, Gullar decidiu "escrever um poema que fosse o meu testemunho final, antes que me calassem para sempre". Gullar é autor de 21 livros de poesia - 15 individuais e seis antologias -, dois de contos, 14 ensaios, uma peça teatral (Um rubi no umbigo, 1979) e uma biografia (Nise da Silveira: uma psiquiatra rebelde, 1996). Produziu textos originais e adaptações para a televisão, o teatro e o cinema. Em 2002, fez a melhor tradução para o português de Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes. É autor do belíssimo poema Traduzir-se, musicado e gravado por Raimundo Fagner em disco antológico de 1981, lançado em toda a Europa e na América Latina, um marco na música popular brasileira.

Já da obra de Marcel Duchamp, não se pode dizer exatamente o mesmo. Em 6 de janeiro de 2006, um francês de 77 anos invadiu o Centro Pompidou, em Paris, e atacou a marteladas A Fonte - o urinol mais caro do mundo. O vândalo foi detido. Alegou que o ataque com o martelo seria uma perfomance artística da qual o próprio Duchamp se orgulharia. A peça, que há três anos já estava avaliada em 3 milhões de euros (quase R$ 9 milhões), sofreu escoriações leves e, na opinião de marchands europeus, ficou ainda mais valorizada depois do episódio.

Cláudio Renato