quinta-feira, 30 de julho de 2009

Quem são vocês? O que querem de nós?




"Mais do que o pensamento do povo que nunca voa
Que nasce com qualquer estrela

Que nada em qualquer lagoa

Que brinca como um cavalo

Garupa por todo caminho

No pingo de qualquer ribeira

No facho de qualquer espinho

No rabo de qualquer cometa

E na maleta figuras do mundo vão levar..."

("Pepitas de Fogo", Zé Ramalho da Paraíba)


1 - CONTATOS IMEDIATOS

O casal Janete Clair e Dias Gomes é responsável pela terrível crise renal que, na primavera de 1973, torturou uma pobre criança de 9 anos em Brás de Pina, subúrbio do Rio. Muitas outras, nação afora, devem ter sofrido semelhante tormento. Depois da extraordinária "Selva de Pedra", vinha a mulher do Dias Gomes com "O Semideus" (estrelada por Tarcísio Meira, Francisco Cuoco e Glória Menezes), quando a novela das oito começava às 20h; o marido da Janete sacava, duas horas mais tarde, "O Bem Amado" (com Paulo Grancindo, Lima Duarte e Emiliano Queiroz). Quem tende a ter pedra nos rins, sabe que não se pode segurar, de jeito e maneira, sob pena de se urinar coca-cola. E quem diz que conseguíamos sair da frente da televisão? A gente se contorcia até não aguentar mais. Era arriscado perder uma cena e, com ela, o delicado sentido da trama.

Tal situação crítica, no nosso caso, só voltaria a se desenvolver, entre outubro de 1976 e fevereiro de 1977, quando Gilberto Braga ousou concorrer com a Ave Maria e adaptou para a TV o romance "Escrava Isaura", de Bernardo Guimarães. As vias urinárias quase entupiram de cálculos renais. Para acompanhar as maldades do senhor Leôncio (Rubens de Falco) e as desventuras da escrava branca (Lucélia Santos), só com uma caneca de chá de quebra-pedras.

Outros tempos, os das obras fechadas, roteiros inéditos ou baseados em textos literários. Os autores, redatores e supervisores respondiam pelo sucesso ou pelo fracasso. Davam a cara a tapa. Ainda não existiam telefonia celular, TV por assinatura, Internet. Ainda não havia se disseminado o conceito de interatividade, que surgira, no começo daquela década, em âmbito acadêmico, no contexto das críticas aos meios e tecnologias de comunicação unidirecionais.

Para azar dos nefrologistas, hoje não é mais assim. Basta assistir a cinco capítulos de uma telenovela - intercalados no começo, no meio e no fim - para, sem necessidade de gravá-los, se perceber como a história começou e adivinhar como vai acabar. Pode-se ir ao banheiro à vontade, passear no parque, viajar para o Quelimane, que, na volta, as coisas na ficção estarão sob controle. E ainda é possível, para o consumidor comum, interferir do meio para o fim: mata-se o vilão, salva-se a heróína, ressuscita-se o personagem morto injustamente, por insensibilidade daqueles que assinam o roteiro (seis, sete, oito parceiros, como compositores de sambas de enredo).

Acredita-se que o Brasil é capaz de escrever uma novela a 50 mihões de mãos. Pouco importa que sejam histórias medíocres ou tão ruins que parte significativa dos criadores abandone a criatura na fase de crescimento. E se a criança morrer de inanição, afinal, a culpa é do público. Quem pariu Mateus, que o embale, certo? Coitado do Shakespeare se vivesse na República Democrática do Abandono e tentasse emprestar o inexcedível talento à teledramaturgia nacional. Certamente, o bardo de Avon não conseguiria sequer a aprovação da sinopse de "Romeu e Julieta" - a popularíssima tragédia do século XVI, a mais bela desventura de amor nunca antes contada na história desse mundo. Imaginem se o brasileiro urbano médio, da Vila Mariana, São Paulo, deixaria um rapaz de 17 anos e uma menina de 14 se matarem no ápice de um mau-fado envolvendo duas poderosas famílias rivais! A lógica, mais de 400 anos comprovam, não é da audiência, mas dos programadores e gestores da comunicação, ávidos por pontinhos preciosos no Ibope. Apostam-se todas as fichas no sucesso fácil da interatividade. Quando é 0800, Lobão, vá lá! O pior é o 0300: a gente ainda paga por isso!


2 - O DESESPERO

Vocês sabem com quem estão falando? Se souberem, pelo amor de Deus, nos digam, nos contem, nos ajudem! Porque não atinamos quem são. E está muito difícil aprender-lhes o idioma. Sabe-se que, desde o poeta romano Juvenal, crítico e autor da fórmula panem et circenses, na passagem do primeiro para o segundo século da Era Cristã, se deliciavam e se alienavam com o pão e o circo oferecidos pelos imperadores. Provavelmente, ainda se alienam, mas jamais poderíamos imaginar que chegariam ao ponto de preferir ao hábito adquirido ver o circo pegar fogo e comer pão torrado só porque agora têm uma merreca a mais para uma margarinazinha rançosa.

O pão que durma, mas o bolo publicitário não pode solar. O show tem que continuar! Mas é muita gente pra comer e até azedar o bolo, como o You Tube, website que permite aos usuários carregarem e compartilharem mais de 30 mil vídeos diariamente em formato digital. Os profissionais de comunicação estamos perdidos, principalmente depois que a tal classe C (o pessoal com renda familiar mensal média de R$ 1.200) se tornou, nos últimos dez anos, protagonista no cenário econômico e principal mandatário dos meios de comunicação aberta. É uma gente que, não faz tanto tempo, quase nada tinha, à exceção do prosaico radinho de pilha e do aparelhozinho de TV de 14 polegadas, que captava, com relativa perfeição, as ondas hertzianas de uma só estação. Mas hoje já possui celular com múltiplas funções, sinais de TV por assinatura (clandestino ou não) e até de Internet, a maior revolução na história da Humanidade desde as Grandes Expedições Marítimas. Na guerra acirrada pela audiência dos telespectadores, leitores, ouvintes, é preciso aplacar a fome dos novos bárbaros, antes que nos devorem com as armas mais arrasadoras de que dispõem: o seletor, o controle remoto, o dial ou o mouse.

Talvez o diabo não seja tão feio, mas a novidade apavora. E o pior é que os hunos da classe C arrastam com eles os visigodos da classe D e até os vândalos da classe E. Os programadores e comunicólogos decidiram se debruçar na palavra mágica, povo. Precisamos ser populares a todo custo. E tome-lhe Big Brother, A Fazenda, Faustão, Gugu, Galvão, Pânico, Samambaia, Mulheres Melancia, Jaca, Moranguinho, um pomar inteiro de "beldades", tudo sob os auspícios da interatividade. Você decide, meu caro!
Verdade é que a panaceia interativa não apresenta os efeitos desejados. A febre não cede, o organismo não reage como gostaríamos. O que essa gente beduína quer para se manter fiel? Façam um seguro contra incêndio e podem sair de casa, viajar, mas mantenham os aparelhos ligados!

O que não percebemos, diante do caleidoscópio que nos parece o gosto popular, é que, com a interatividade, nos tornamos cada vez mais obsoletos e desinteressantes. Menos criativos e ousados. São os números nervosos do Ibope minuto a minuto confundindo, irritando, sobressaltando todo mundo. Cavamos a própria sepultura em vão, enquanto os hunos, os visigodos e os vândalos, com a sabedoria debochada dos deuses gregos, zombam do nosso desespero.

3 - A CONSTATAÇÃO

Praticamente em todas as rodas de jornalistas, publicitários, programadores, comunicólogos e "gestores" de mídia, a questão fundamental hoje é saber o que é popular. Fala-se em bundas, crimes, pegadinhas, pagode, promoções, brindes, direito do consumidor (quase nunca do cidadão), curas de doenças. E o foco é sempre São Paulo, a meca nacional do Instituto Brasileiro de Opinião Pública! A paulistinização da cultura seria muito boa se trouxesse, para todos os lares do Brasil, em tela cheia, o Bexiga, o Adoniran Barbosa, os Demônios da Garoa, o Germano Mathias, o Hervê Cordovil, o Noite Ilustrada e todos aqueles ritmos maravilhosos que animam os botequins da Rua Aurora e fazem de Vinícius de Moraes o túmulo do samba. Porque a São Paulo dos Jardins e da Vila Madalena é tão insossa quanto o Rio da Barra da Tijuca e da Nova Lapa.
O que é ser popular? (sugere um título da coleção Primeiros Passos)

Quem assistia ao projeto Aquarius, na Quinta da Boa Vista, em São Cristóvão, lembra que o que mais chamava a atenção era o mundo de gente que chegava de trem da Zona Norte e da Baixada Fluminense, as regiões mais pobres do Rio de Janeiro. Em 1979, mais de 200 mil pessoas lotaram a Quinta para, em silencioso respeito durante e delírio esfuziante no final, prestigiarem o maestro Isaac Karabtchevsky, a Orquestra Sinfônica Brasileira e o coral da Bayer, com 180 vozes masculinas. O sucesso de público era tamanho que a então Rede Ferroviária Federal aumentava o número de composições de trens suburbanos para dar vazão àquele contingente que se comportava exemplarmente.

Para os que gostam de samba, uma visita a qualquer roda de subúrbio carioca - sugerimos a Favela da Matriz, no Engenho Novo - demonstra a popularidade de Chico Buarque, Paulinho da Viola, Dorival Caymmi, Ismael Silva e Noel Rosa. Todos são cantados alegremente, embora quem cante e acompanhe, às vezes, nem saiba os nomes dos autores das canções. Simonal regia coro de 30 mil vozes no Maracanazinho. Orlando Silva, cantor das multidões, mal conseguia andar nas ruas. O público da Festa da Penha e as pastoras dos sambas elegiam os sucessos que perduram até hoje. Roberto Carlos, aos 25 anos, reunia o grupo de amigos mais próximos e escrevia cartas fictícias para as emissoras de rádio, com exigências para que suas músicas fossem executadas, artificio de marketing tão ingênuo que chega a ser comovente. A mídia depende muito mais do Roberto Carlos do que o contrário.

Populares são os filmes de Drácula e King Kong, dos mais sensuais da história do cinema. É o gurufim, enterro com festa, como foi, às vésperas do carnaval de 1949, o de Paulo da Portela, que inundou Madureira de gente bebendo e cantando. Os cortejos fúnebres - sentidos e desesperados - também consagram definitivamente, como os de Getúlio e Carmem Miranda.

Seja de um condutor de ônibus, de uma moça distraída, de um vendedor de picolé, o assovio é a mais sublime e consagradora manifestação popular de apreço a uma canção. O dramaturgo Nélson Rodrigues, por ocasião do sucesso de "A Banda" (1966), de Chico Buarque, escreveu um texto precioso em que sustentava que, com o guri de olhos verdes, o povo brasileiro reapreendia a assobiar. Ele mesmo, Nélson, é popularíssimo com os seus Sobrenatural de Almeida e Boca de Ouro e suas damas do lotação, bonitinhas, ordinárias, engraçadinhas.

William Shakespeare, Getúlio Vargas, Padre Cícero, Lampião, Luiz Gonzaga, o Papa, os Beatles, Elvis, Marilyn, Michael, Roberto Carlos, Simonal, Chico Buarque, Isaac Karabitchevsk, Jorge Amado, Nélson Rodrigues, Garrincha, Orlando Silva, Dorival Caymmi, Carmem Miranda, Ismael Silva, Paulo da Portela, Benito de Paula, Belchior, Fagner, Jorge Ben, Papai Noel, Conde Drácula, King Kong e Cinderela são apenas alguns exemplos de extrema popularidade em épocas distintas. São obras fechadas e personalidades abertas ao sucesso e ao fracasso. Autênticas.

O assunto parece não ter fim. Muito pano pra manga. Voltaremos a ele. É quase meia-noite. E amanhã é mais um dia de trabalho, em que se tentará, digna ou covardemente, atrair e manter a sua atenção. Seu Dorival, não desliga, não!
Zé Ramalho, cantor e compositor de "Pepitas de fogo"

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Assim falava Mestre Ziza




Era difícil dormir com um silêncio daquele. E Zizinho passou muitas noites em claro. Ao fim do trágico crepúsculo de 16 de julho de 1950, não se lembrava como chegara em casa. Deve ter caminhado muito. Do Maracanã até a estação das barcas de Niterói, na Praça XV de Novembro, a distância é de pelo menos dez quilômetros. Estava embriagado de tristeza, mas não chorou. Recordava-se apenas do vazio pesado e melancólico da cidade, vez em quando cortado por um tapinha nas costas, uma ou outra voz solidária, que parecia emergir de um pesadelo e lhe aumentava ainda mais o desespero: "Pois é, Ziza, não deu."




Àquela hora, pouco antes das 8 da noite, Zizinho deveria estar feliz da vida, surdo de tantos fogos, bêbado de champanhe, encarapitado em carro oficial com os companheiros, agarrado à Taça Jules Rimet, ovacionado por centena de milhares de pessoas nas ruas e reconhecido como o maior jogador de futebol do planeta. Um gol desenxabido, chute torto do uruguaio Alcides Eduardo Ghigghia, aos 34 minutos do segundo tempo, pôs tudo a perder: a glória e a fortuna dos jogadores; a honra e a autoestima do povo brasileiro. Pensava desordenadamente enquanto esperava sozinho a partida da barca, como um semideus castigado, destituído do poder e transformado, em poucos minutos, em pobre mortal.




Cinquenta anos passados, o fiscal aposentado Thomaz Soares da Silva nos recebeu, na primeira semana de junho de 2000, no apartamento humilde no bairro do Fonseca, em Niterói, na região metropolitana do Rio. Sereno, Zizinho lembrava em detalhes cirúrgicos aquela tragédia, o placar adverso de 2 a 1, que marcou e angustiou toda uma geração. Tentava explicar a anatomia daquela derrota - termo cunhado pelo filósofo gaúcho Paulo Perdigão, autor da obra mais completa sobre o tema. Seu Tomaz morreria dois anos depois, em 8 de fevereiro de 2002, sem conseguir explicação convincente, mas tinha opinião muito direta. "Os uruguaios eram melhores", dizia o mulato sábio e elegante, então com 78 anos, o mais completo jogador brasileiro até o surgimento de Pelé, segundo o próprio Dondinho, pai do rei.




Havia três anos, Zizinho começara a elaborar "As Lições do Mestre Ziza - Evolução Tática do Futebol Brasileiro", em que pretendia en passant, explicar a derrota. "A certeza da vitória era tanta que me fizeram assinar mais de 2 mil fotos montadas com os dizeres Brasil Campeão. Antes da final, a seleção brasileira aplicara no Maracanã, construído especialmente para a Copa, duas goleadas históricas: 7 a 1 na Suécia e 6 a 1 na Espanha, adversários contra os quais o Uruguai penara para não perder. Os brasileiros, em casa, jogavam só pelo empate.




Brasil derrotado diante de 200 mil pessoas no Maracanã, torcedores e cronistas trataram logo de eleger os culpados: o goleiro Barbosa, o zagueiro Juvenal e o meia-esquerda Bigode. Eles não acompanharam Ghiggia, o ponta-direita de 22 anos que chegou a dar sete passos com a bola antes de despachá-la fraca para o canto esquerdo do gol. Houve até a versão de um suposto tapa que Obdúlio teria desferido contra o rosto de Bigode, para extremar ainda mais a humilhação. "Não vi tapa nenhum", desconversava Zizinho.




Para Ziza, um consolo. "Graças a Deus, nunca me crucificaram, mas culparam injustamente meus amigos." Os "proscritos" viveram como Barrabás, carregando o peso de uma culpa imposta que nem o pentacampeonato mundial conseguiria aliviar. Moacir Barbosa morreu dois meses antes da nossa conversa com Zizinho. Ele passou a vida tentando explicar que não falhara no gol de Ghiggia. Bigode exilou-se em Minas. Juvenal, na Bahia. Augusto, capitão do time, não atendia ao telefone. "Quem errou foi Ghiggia, que queria centrar a bola, chutou a grama e enganou o goleiro", explicava Zizinho.


Apesar da derrota, Zizinho foi eleito o melhor jogador da Copa pelos correspondentes estrangeiros. A beleza plástica das jogadas foi comparada à das obras de Da Vinci. Ziza acreditava que o WM, sistema adotado por Flávio Costa, com a variação em diagonal, deixara o time vulnerável. "O 4-3-3, criado em 1945 por Ondino Vieira, do Vasco, é a melhor disposição tática que o Brasil já teve."




Maior ídolo da seleção na época, Zizinho só estreou no terceiro jogo da Copa de 50, contra a Iugoslávia, após o empate aziago de 2 a 2 com a Suíça no Pacaembu. "Eu não tinha a menor condição de jogar; meu joelho estava inchado, deste tamanho". Ziza, que tinha a perna direita mais fina desde 1946, por causa de uma distensão muscular, sofrera nova torção num treino contra o Flamengo. "Entrei machucado, e o Brasil conseguiu vencer por 2 a 0." Ademir marcou os gols. Zizinho também fez um, erradamente anulado. "Jogava no sacrífício, mas nunca tomei injeção no joelho", assegurava.




Mestre Ziza, como era conhecido, gozava da confiança do técnico Flávio Costa, que o lançara no futebol profissional pelo Flamengo em 1939, após vê-lo participar de um treino no lugar do legendário Leônidas da Silva. "Zizinho é o cérebro e o coração de qualquer time", dizia Costa. O jogador não tinha dúvidas de que a política atrapalhara o escrete de 50. "A concentração em São Januário vivia repleta de políticos, como Cristiano Machado, Adhemar de Barros e outros; no dia da final, tivemos que interromper o almoço várias vezes para ouvir promessas." O que mais irritara Zizinho foi o discurso do prefeito do Rio, general Ângelo Mendes de Moraes, que dizia ter construído o maior estádio do mundo e exigia, em troca, a conquista da taça. "Fiquei com raiva; ele não era nosso dono, não tinha direito de fazer o que fez." A estátua do prefeito que o próprio mandou erguer na frente do Maracanã foi derrubada por torcedores ao fim da partida.




Ziza lembrava que entrou tranquilo na final; não olhava o relógio, ouvia apenas o zunido do público. Ele considerava o esquema do Uruguai perfeito para a partida. "Eles jogavam com um beque de espera e outro no avanço, estavam protegidos." Zizinho observou que a final da Copa de 50 solidificou a amizade entre os jogadores das duas seleções. "Obdúlio foi nosso amigo até a morte; jogador extraordinário, homem como poucos." Os adversários passaram a se encontrar com frequência no Rio e em Montevidéo. "Quase nunca falávamos daquele jogo, o Obdúlio detestava lembrar a data conosco; sabia o quanto o Brasil sofreu." Ele jurava que mantinha conversas telepáticas com Obdúlio Varella.




De 1953 a 1957, com a saída de Domingos da Guia, Ziza tornou-se capitão da seleção brasileira, pela qual jogou 53 partidas oficiais e marcou 31 gols. Armador técnico, condenava os jogadores violentos que ocupam a posição. "O guardião não pode fazer falta perto da área." Zizinho se dizia furioso com o que considerava inverdades sobre a Copa de 50. "A história de que Barbosa queimou as balizas do gol de Ghiggia num churrasco em Ramos é ridícula.", sentenciava. "Como poderia ter levado a baliza para casa? Para que queimaria as traves?", indagava Zizinho, que toda semana acendia uma vela em memória do goleiro. Outra história que desmentia é a de que os brasileiros almoçaram sanduíche de queijo no dia da decisão.


A concentração em São Januário era tão tumultuada, segundo Zizinho, que "a gente não tinha concentração nem para fazer balão." Ziza, Nílton Santos e Alfredo eram os baloeiros. "Se saísse da concentração, ninguém ligava; não fosse o empate com os suíços, eu não jogaria." A algazarra da multidão era até um alento. "Ficava mais tenso contra time pequeno; em estádio vazio, ouvem-se os insultos e palavrões."


Ziza sustentava que o Brasil começara a perder a Copa quando Friaça fez 1 a 0, em um minuto e meio do segundo tempo. "Deu um gelo na equipe, que imaginava ter cumprido o dever." O problema, argumentava, era que o Brasil nunca enfrentara uma seleção sul-americana numa final como aquela, o que torna difícil a compreensão da derrota. "Só reagimos depois do segundo gol dos uruguaios." Ziza rebatia a acusação de que faltaram, em campo, os berros de um Obdúlio a favor do Brasil. "Grito não ganha jogo."


Indignado, Zizinho não entendia por que a imprensa deixara de cobrar as falhas do Brasil na derrota contra a França, na Copa de 98. "O Zagallo diz que estava dormindo, quando o Ronaldinho passou mal; o Lídio Toledo falou que, se cortasse o menino da partida, seria morto; o Roberto Carlos declarou que teve que meter o dedo na garganta do Ronaldo.", discorria. "Por que nada é questionado e só falam da derrota de 50? O Brasil já perdeu oito copas depois daquela e a imprensa é cruel conosco; o Bigode só tem três amigos; o Barbosa, maior goleiro da história do Brasil, foi barrado por um molequinho (o goleiro Taffarel) nos preparativos da seleção e morreu só; por que tanta humilhação?"




Para Ziza, a acusação contra Barbosa, Bigode e Juvenal teria sido "uma baixeza". Mas ele não acreditava em racismo. Considerava "outra indignidade" o argumento de que as vitórias nas Copas de 58, 62 e 70 foram frutos da derrota de 50. O Brasil era injusto com todo mundo, na opinião de Zizinho. Ele dizia que na Europa os jogadores eram protegidos e citava o exemplo de Beckenbauer, eleito o melhor beque central de todos os tempos, apesar de ter jogado no meio-campo.




Não se falava bem de Diego Maradona com Ziza. "Ele não foi nem o melhor jogador argentino a jogar na Itália, porque este foi Sívori, que ganhou três títulos pelo Juventus." O melhor argentino de todos, para Ziza, fora Pedernera, que atuou na década de 40. Em compensação, falar mal de Pelé era arranjar um inimigo. "Como gosto daquele menino", suspirava o velho ídolo que se tornara fã. Para ele, Pelé, Leônidas da Silva, Domingos da Guia e Nílton Santos eram os maiores craques brasileiros da história. Também não poupava elogios a Garrincha, mas tinha reservas em relação a Ronaldo (hoje no Corinthians). "Atacante não pode ser o melhor se não cabeceia bem." O goleiro mais difícil que enfrentara fora mesmo Barbosa. "Era frio demais; eu não tinha coragem de colocar a bola quando ele estava no gol."




Ziza contava que deixara de assistir a jogos no Maracanã havia mais de dez anos. "Tenho medo de passar a humilhação de ser barrado." De vez em quando, convidado pela diretoria do São Paulo, comparecia ao Morumbi. Afirmava que torcia pelo Flamengo, o Bangu e o São Paulo - todos os times em que jogou. Na infância, torcera pelo América do Rio, onde fora preterido por insuficiência física. Franzino, 1,68 metro de altura, Zizinha tinha paixão por basquete. "Com a minha altura, poderia ser armador nas quadras." Adorava boxe e se dizia admirado com o panamenho Roberto "Manos de Piedra" Durán. "Nunca vi homem tão valente", exagerava.


Zizinho nasceu em 14 de setembro de 1921, dentro de um clube de futebol. "A tática que o Uruguai usou para nos vencer já conhecia desde os 6 anos", brincava. Filho de Tomaz Silva e dona Eurídes, Ziza morava numa casa em São Gonçalo, sede do Carioca Football Club, que disputava uma vaga na Liga Niteroiense de Futebol. Em 1937, mudou-se para Niterói e transferiu-se para o Byron, Em 1939, treinou no Flamengo e assinou contrato. Foi lançado em 1940. Conquistou o tricampeonato carioca de 1942/43/44. Em 1949, foi campeão sul-americano pela seleção brasileira.




Na Copa de 50, Zizinho fez o gol que considerava o mais bonito da carreira, contra a Espanha; um sem-pulo, depois de um balão em Gonzáles. "A goleada (6 a 1) foi um acidente de futebol." Ziza acabara de se transferir para o Bangu, onde jogou até 1957. Foi chamado nesse ano pelo técnico húngaro Bella Gutman para o São Paulo, levando, aos 36 anos, o clube a ser campeão paulista. Em 1958, recusou-se a embarcar para a Suécia e perdeu a oportunidade de ser campeão do mundo. "Fui convocado quatro dias antes do embarque; não sou moleque e achei que aquilo seria uma injustiça com o Moacir, do Flamengo, que seria cortado." Ziza jurava que não se arrependera. "É questão de atitude."




Na temporada 1961/62, ainda jogou no Audax Italiano, no Chile. Defensor do passe livre, Zizinho teve proposta milionária do Milan, mas não pôde jogar lá. "Quando houve greve de jogadores na Argentina, nos anos 40, fui lá apanhar o estatuto; queria reunir as cabeças daqui, mas ninguém participava."




Ziza adorava passarinhos e alimentava um bando na varanda do apartamento. Era desquitado, tinha duas filhas, torcedoras fanáticas do Fluminense, e dois netos. Gostava de caminhar pelo horto de Niterói e passear no sítio em Marambaia, Itaboraí. Às vezes, andava armado para se prevenir dos assaltos. Adorava os sambas de Walter Alfaiate, João Nogueira, Baianinho e Nélson Sargento. Frequentava a casa de samba e chorinho Candongueiros, em Niterói.




Ex-técnico do Vasco, América, Bangu e Remo, campeão pan-americano com a seleção brasileira no México (1975), Ziza defendia a criatividade. Concordava com o nome de Wanderley Luxemburgo para a seleção, mas considerava absurdas as convocações de jogadores que atuavam na Europa para amistosos do Brasil contra times sem expressão. "Se jogasse lá fora, não viria", afirmava ele, na época entusiasmado com Ronaldinho Gaúcho, França e Alex, que ainda estavam por aqui.




No fim da Copa de 50, Zizinho ganhou 15 dias de folga do Bangu. Não aguentou ficar longe do Maracanã. Voltou a treinar quatro dias depois. Na reestreia, o time goleou o Flamengo por 6 a 0. Ziza tentava muito se convencer de que a final contra os urguaios fora apenas mais um jogo de futebol. Daquela Copa, só guardara uma medalhinha de vice-campeão (que mais parecia uma moedinha de cobre azinhavrado de cinco centavos), recortes de jornais e revistas e um punhado de amigos. "Tive muita insônia, mas, com o tempo, consegui dormir." E sempre que dormia, até o fim da vida, Ziza sonhava com aquele jogo. "Sonho que Brasil contra o Uruguai é uma partida eterna, sem fim, um jogo que nunca acabou e só acabaria quando conseguisse alcançar aquela bola no último minuto e fizesse o gol de empate."
Cláudio Renato
Zizinho - Documento para a História http://www.youtube.com/watch?v=qrRQbTtgEeA

terça-feira, 14 de julho de 2009

Dormidinha, acordadinha...

"Menininha do meu coração
Eu só quero você
A três palmos do chão
Menininha, não cresça mais não
Fique pequenininha na minha canção
Senhorinha levada
Batendo palminha
Fingindo assustada
Do bicho-papão

Menininha, que graça é você
Uma coisinha assim
Começando a viver
Fique assim, meu amor
Sem crescer
Porque o mundo é ruim, é ruim
E você vai sofrer de repente
Uma desilusão
Porque a vida é somente
Teu bicho-papão

Fique assim, fique assim
Sempre assim
E se lembre de mim
Pelas coisas que eu dei
E também não se esqueça de mim
Quando você souber enfim
De tudo o que eu amei"

Valsa Para uma Menininha
(Vinícius de Moraes e Toquinho)
Bem-aventurados sejam Vinicius de Moraes, Dorival Caymmi, Pixinguinha, Lupicínio Rodrigues, Luciano Gallet, Villa-Lobos, Ernesto Nazareth, Noel Rosa, Zé Ketti, Chico Buarque, João Gilberto, Tom Jobim, Luiz Vieira, Cartola, Guilherme de Brito, Heitor dos Prazeres, Roberto e Erasmo Carlos, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Paulinho da Viola, Francis Hime, Raimundo Fagner, Ednardo, Milton Nascimento, Clementina de Jesus, Clara Nunes, Hervê Cordovil, Jane Duboc, Fátima Guedes, Martinho da Vila, Toquinho, Edu Lobo, Luiz Gonzaga, Patativa do Assaré, Catulo da Paixão, Capinan, Gerônimo, Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Guilherme Arantes, Egberto Gismonti, os cantadores das estradas vicinais do Nordeste, os pastoreiros do Sul, os caboclos da Amazônia e tantos, tantos outros artistas brasileiros, anônimos ou não, que ajudam a manter o arcabouço do cancioneiro tão singular, fundado na ternura do acalanto.
Abençoados sejam os franceses com sua berceuse e os anglo-saxões, com o lullaby.
Amém aos que entoam a lula, na Suécia; o kalebka, na Polônia: a cantilena na Itália; o wiegezang, na Alemanha; o lulle, na Dinamarca.
Benditos os que compõem as rurrupatas, no Chile, e as canciones de cuña, na Espanha e no resto da América Latina. E também os que sopraram vida ao lullen, na Holanda, e às cantigas de arrolar, em Portugal e na África, bem como ao mucuru, dos indígenas nhengatus.
Salve os compositores de liulkova piesen, na Bulgária; de kolybethnaia piecnh, na Rússia; de cantec de legan, na Romênia, e da komoriut, no Japão.
Aos que afugentam o bicho-papão, a bruxa, a cuca, o tutu marambá, o pavão misterioso, o boi- da-cara-preta e todos os demônios terríveis que povoam o universo imaginário das crianças nos quatro cantos do planeta, este texto é dedicado.
Louvadas sejam, enfim, todas as mães, todas as mulheres que embalam meninas e meninos e cantam cantigas para dormir e despertar gerações após gerações.
"Valsa para uma Menininha" - Toquinho & Vinicius

domingo, 12 de julho de 2009

Brasil, a República Federativa do Abandono




"Deus criou os brancos e os negros, mas o diabo se incumbiu de fazer os mestiços". O pensamento do explorador escocês David Livingstone (1813-1873), além de ilustrar a ideologia racialista dominante no Ocidente do século 19, nos autorizaria a concluir que o Todo Poderoso fez do barro os povos nórdicos, anglo-saxões e pretos africanos. O resto, portanto, teria ficado por conta do diabo, para quem sobraram só as massinhas multicoloridas, aquelas com que as crianças brincam na escola. E o belzebu, então, abusou na mistura de cores, tamanhos e densidades díspares. Montou ateliê no Brasil e, nos últimos 500 anos, tem feito a mais extravagante experiência de miscigenação do mundo.

Livingstone é um herói entre os britânicos. Na trilha aberta pelo médico e missionário, que cruzou a África do oeste para o leste, o Reino Unido colonizou o continente. O filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), que não acreditava em raça pura mas na purificação das raças, cita Livingstone em um trecho de "Aurora" (1881) para exaltar os gregos que "nos oferecem o modelo de uma raça e de uma cultura assim depuradas". E o zoroastra conclui: "devemos esperar que a criação de uma raça e de uma cultura européias puras tenham igualmente êxito um dia." Eles, os brancos, que se entendam. E alemão nenhum fica perguntando o que é ser alemão. Mas, e os mestiços? Estamos condenados a ficar aí, procurando a identidade que nos foi sonegada embaixo da saia de nossas mães, avós, bisavós, tataravós?

Nos trópicos, a sociologia do inferno ganhou corpo e ânimo com o pensador pernambucano Gilberto Freyre, que abdicou dos estudos tradicionais baseados exclusivamente em atas, leis, decretos para, com texto primoroso, tentar desvendar quem somos na seiva, no sêmen e na saliva. Muitos séculos antes, o diabo acendera o fogo sexual dos pretos, brancos e índios que geraram mamelucos, cafuzos, mulatos, a brava gente brasileira, que até hoje não se sabe se fadada ao fracasso ou à redenção. É por isso que, além do autor de "Casa Grande & Senzala", tantos outros, como Sérgio Buarque de Hollanda, Caio Prado Júnior, Florestan Fernandes e Darcy Ribeiro tentaram explicar o Brasil. São os exegetas do diabo.

Conhecemos Darcy Ribeiro pessoalmente, no começo da década de 80 e da improvável campanha de Leonel Brizola para o governo do Estado do Rio de Janeiro, que começou com um fusquinha emprestado, virou epidemia nas ruas, acabou vitoriosa e resultou na edificação, por todo o canto, de centenas de Cieps (escolas públicas em turno único).
Darcy adorava freqüentar a praia de Copacabana com uma namorada da época, bem mais jovem, muito bonita. Sentava na areia, reunia as pessoas em torno, e falava pelos cotovelos. Mente quem diz entender o que Darcy dizia. Ele sempre parecia ter cheirado dúzias de carreiras de cocaína de manhã, porque atropelava as palavras, abandonava um raciocínio no meio para só rebuscá-lo muito depois. O que nos seduzia no Darcy era o entusiasmo com as próprias idéias. E os textos originais, porque Darcy gostava de escrever e o fazia muito bem, motivo pelo qual, provavelmente, é tão discriminado no cenário acadêmico nacional. Vá explicar a sociologia da panelinha e a antropologia da inveja!

Darcy Ribeiro é autor de oito livros sobre etnologia, outros oito sobre educação, nove ensaios, quatro romances (com destaque para a obra-prima "Maíra") e sete tratados antropológicos. Chefe da casa civil do governo João Goulart, criou a Universidade de Brasília. Estava disposto a sacrificar a vida para evitar o golpe militar, um voto vencido. No exílio, ajudou a espalhar universidades pela América Latina e a África. De volta ao Brasil, criou os Cieps (uma concepção revolucionária para o ensino público no país) e a Universidade Estadual do Norte Fluminense, referência nacional nos estudos geológicos e outros estratégicos para a exploração do petróleo e do gás natural. Em 1995, dois anos antes de morrer, concluiu o clássico "O Povo Brasileiro". Doente, fugiu do hospital e se isolou em Maricá, na região dos Lagos, no Rio, para poder acabar de escrever a sua obra mais importante.

Em "O Povo Brasileiro", Darcy desenvolveu o conceito de ninguendade, ao sustentar que o Brasil é uma terra de ninguéns, de órfãos que, devido a vicissitudes históricas, perderam a identidade original. Não podemos, neste contexto, deixar de observar uma semelhança com a história de Lúcifer (Luz e Fé), o anjo preferido do Senhor que caiu e se perdeu. Tratava-se, voltando a Darcy, de uma nação de pretos desafricanizados, de brancos deseuropeizados e de índios destribalizados. E o caboclo, desprezando a mãe índia e desprezado pelo pai branco, abriu cruelmente as picadas para a interiorização do país. Nenhum momento histórico, nenhum movimento imigratório, nada fica fora da obra monumental do intelectual mineiro. Uns mais, outros menos, japoneses, alemães, italianos, polacos e portugueses tardios se perderam, ou se envolveram, no labirinto da Terra de Ninguém, do Império dos Órfãos, da República Federativa do Abandono.
E a esta altura, finalmente, chegamos a Roberto Carlos, que comemora 50 anos na profissão de intérprete e tradutor desse abandono tão radical. Quando Roberto canta, o Brasil canta com ele. Ele diz exatamente o que o nosso coração derramado, piegas, maltratado e abandonado quer dizer ou quer que alguém diga em seu lugar. Roberto Carlos não é cafona. Cafonas somos todos nós. Somos nós, que choramos com a propaganda do Gelol e acreditamos em Papai Noel, sim. Cafonas graças a deus ou a satanás. Custamos a acreditar que algum brasileiro sincero não tenha algum dia chorado ao ouvir "Detalhes", "Meu pequeno Cachoeiro", "Eu te amo" e tantas outras canções do capixaba. Roberto é carismático e avassalador, capaz de romper barreiras étnicas, sociais, financeiras, culturais, porque rico, pobre, criança, adulto, velho, preto, branco, pardo, índio, todos os habitantes desta terra de ninguém, somos carentes e queremos expressar o abandono. Quem é brasileiro e não gosta de Roberto Carlos, odeia a si mesmo. Recomendamos a esses infelizes um terapeuta do cinismo, um sociólogo da panelinha, um antropólogo da inveja ou um exegeta do mau-caratismo.

Cláudio Renato
Roberto Carlos e a Jovem Guarda
Darcy Ribeiro, intérprete do Brasil

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Carta aberta a um destinatário fechado




Senhor Geraldo Pedrosa de Araújo Dias:


Tínhamos pouco mais de quatro anos, quando Geraldo Vandré, personagem que o senhor diz ter inventado, deixou o Brasil e menos de nove, quando voltou, para aqui se exilar, depois de vagar pela América do Sul, a Europa e a África. Portanto, mal nos entendíamos como gente, imagine se saberíamos quem era o senhor.

Filhos caçulas, só ouvíamos sobre o tal Vandré quando os irmãos mais velhos deixavam escapar um motejo político ou, do banheiro, a plenos pulmões, entoavam aquela famosa guarânia de dois acordes que o enxotou daqui.

Quem nos interessava na época? Pelé e Garrincha, claro. Gérson, o canhotinha de ouro, também. Jogávamos botão o dia inteiro e assistíamos à tarde ao "Capitão Asa", na TV Tupi. Também ao Ênio, ao Beto, ao Gugu e ao Garibaldo, de "Vila Sésamo" (programa infantil importado dos Estados Unidos e transmitido, com adaptação nacional, pelas redes Globo e Cultura). Os irmãos abusavam, porque julgavam não existir pecado em Brás de Pina (o bairro de classe baixa no Rio, onde fomos criados), motivo por que, talvez, o guerilheiro Carlos Lamarca tenha se escondido lá por um tempo. Mas essa é outra história, timidamente revelada na biografia "O Capitão da Guerrilha", de Emiliano José e Oldack Miranda.
Só em 1979, finalmente liberada da censura, "Caminhando" ou "Pra não dizer que não falei das flores" entrou na nossa vida, pelas ondas da rádio Nacional FM e pelo compacto de rótulo preto (relíquia de um saudoso irmão, nosso padrinho). Levávamos aquele manifesto gravado para as festas, aproveitando os intervalos dos Bee Gees e dos "Embalos de sábado à noite" para pedirmos ao discotecário que tocasse o "hino da abertura". Não podíamos imaginar que a revolução na MPB da época, o LP "Realce", de Gilberto Gil, estava sendo gestada.
Comoveu-nos a gravação que o senhor fizera de "Asa Branca", de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, o mais belo registro da clássica canção nordestina que já ouvíramos. Vibrávamos com a letra, a melodia e o arranjo de "Disparada". E com o ritmo, marcado pelas pancadas intermitentes em uma queixada de burro. "Prepare o seu coração/pras coisas que eu vou contar/eu venho lá do sertão/eu venho lá do sertão/eu venho lá do sertão/e posso não lhe agradar..."

Infelizmente não poderemos derramar nesta carta o lirismo daqueles tempos, porque, por meio desta, confessamos a decepção e impaciência com a sua pessoa.

Gostamos muito do documentário "Cantador" produzido pela jornalista paulistana Paula Quintas. Gostou também, ou vai ter a caradura de dizer que não viu? Será que o senhor não sentiu a mínima emoção ao ouvir o Jair Rodrigues cantar a capella , dolentemente, "Disparada", na abertura da reportagem? Aos 73 anos, será que não tem remorsos de malbaratar a própria história diante de uma geração renovada que vive - e tem o direito a viver - em um país democrático?


Pois então: a Paula, de 22 anos, e a equipe de estudantes de jornalismo da Universidade Morumbi Anhembi, todos mais ou menos da mesma idade, transformaram o trabalho de conclusão de curso em excelente curta-metragem, de 26 minutos, no momento oportuno em que AI-5 completava 40 anos. Conversamos com a moça e soubemos da odisséia da equipe para gravar a reportagem, muito bem produzida e editada, sob a supervisão da professora Maria Eleutério. Todas as entrevistas ali estão conduzidas com apuro profissional.
Paula ficou, de janeiro a outubro do ano passado, praticamente todos os dias, fazendo campana em frente ao seu prédio, na Rua Martins Fontes, no centro velho de São Paulo. Ela nos contou ainda que, certo dia, conseguiu repassar-lhe um bilhete com o número do telefone e o senhor retornou, negando-lhe a entrevista. Orientador do pré-projeto, o professor Valdir Batista propôs ao grupo de estudantes que mudasse o tema, enquanto havia tempo. "Deus precisa gostar muito de vocês para conseguirem falar com ele."


A muito custo, Paula e Carlos Larios, também de 22 anos, conseguiram - com uma câmera MiniDVD (praticamente sem bateria) e a ajuda providencial de um amigo seu - gravar cinco minutos de conversa no restaurante do Novotel. Menos de três minutos foram aproveitados. Só valeu pelas imagens. Tanto esforço! Pois é, pra quê?


Jair Rodrigues revela que precisou mandá-lo à merda para que lhe tratasse com respeito e parasse de duvidar da seriedade dele no dia da apresentação de "Disparada" - a mais épica de suas canções - no II Festival da Música Popular Brasileira da TV Record , em 1966. Só porque o crioulo inzoneiro gargalhava, ao cantar o tradicional samba "Tristeza" (de Haroldo Lobo e Nilton Souza)? Só por causa do "deixa-que-diga-que-pense-que-fale?", como lembra o bem-humorado Hilton Accioly, ex-integrante do Trio Marayá, responsável pela escolha do intérprete? Logo o Jair Rodrigues que defendeu tão emocionadamente a sua composição em parceria com Theo de Barros? Justamente o Jair, que considera "Disparada" um marco na vida dele e na própria música popular brasileira?


Júlio Medaglia, maestro e ex-jurado de festivais, conta que o Chico Buarque de Hollanda pediu ao júri do festival, por intermédio do empresário Paulo Machado de Carvalho, então dono da Record, para dividir o prêmio máximo do certame com o senhor. Chico não aceitaria a vitória isolada de "A Banda." E o prêmio, de fato, foi fatiado entre os dois. Como foi? Precisava disso? Claro que o Chico Buarque tinha uma dívida com o senhor, que defendera, no ano anterior, "Sonho de Carnaval", na primeira apresentação de uma música do compositor carioca em festivais.


José Borges Campos, seu empresário na época, garante que o senhor voltou ao Brasil, em 1973, sob as condições rigorosas dos militares, uma das quais a de não se apresentar mais em território nacional. E o senhor, já tão arredio, concedeu entrevistas, alegando que, a partir de então, só comporia canções de amor e só voltaria a cantar aqui "quando houvesse poder judiciário que apreciasse este crime denominado República Federativa do Brasil". O que é isso? O senhor se convertera ao monarquismo? O empresário conta, ainda, que o senhor logo se tornou amigo do comandante da FAB e se internou, literalmente, em um quartel. Como assim? Vocação castrense? O senhor ficou incomunicável em uma caserna?


Vítor Nuzzi, jornalista, atesta que o senhor, nos anos 60, era um homem poderoso na mídia, o maior salário da televisão e do incipiente show business brasileiro. Quem diria? Mais do que a Hebe Camargo, a Elis Regina e o Simonal?


Solano Ribeiro, produtor do III Festival Internacional da Canção põe lenha na fogueira e diz que a TV Globo foi pressionada a não deixar "Caminhando" vencer a disputa, embora Nuzzi garanta que já entrevistara oito dos nove jurados vivos e ninguém confirmara a história. Ribeiro apóia-se na suposta confirmação feita pelo executivo de TV Walter Clark, que está morto. O fato é que Chico Buarque, Tom Jobim, Cinara e Cybele, autores e intérpretes de "Sabiá", a canção vencedora do festival, tiveram que suportar, estoicamente, dez minutos de vaias no Maracanãzinho lotado (perto de 30 mil pessoas) naquela madrugada de setembro de 1968.


Muitas são as questões acerca da sua biografia, senhor Geraldo, algumas levantadas no curto documentário elaborado pelos estudantes de São Paulo. Mas o senhor parece certos congressistas, que odeiam jornalistas, experientes ou jovens. E as pessoas acabam perdendo o interesse. O que seria das terras do benvirá, com um povo sem informação?


O que ouviu a equipe de universitários, quando finalmente conseguiu se aproximar do senhor, um ermitão fabricado que, vive distribuindo, como o evangelho, a letra de "Fabiana" - a canção que fez em homenagem à FAB? O que ouviram os estudantes? Uma frase pífia dita, enquanto acendia um cigarro. "O fogo queima; a televisão não sabe, ninguém sabe, mas o fogo queima, viu?" Sim, e daí? Paula Quintas nos confessou o sentimento de "agonia", mas, carne de pescoço, queria concluir o trabalho, "porque era (ou parecia) impossível." E o Geraldo Vandré? Morreu e esqueceram de enterrar? Poderia ser cremado. Porque, afinal, "o fogo queima."

PS - Em homenagem ao cantador e compositor paraibano de palavras afiadas e melodias fortes, que o senhor Geraldo um dia foi, deixaremos aqui o endereço eletrônico - no You Tube - em que se poderá relembrar Jair Rodrigues interpretando "Disparada", com uma garra impressionante, no festival da Record, de 1966. Em compensação, também deixamos no quintal desta morada uma das últimas aparições públicas do senhor, no ano passado, em um barzinho no centro de São Paulo, onde foi prestigiar um dos poucos amigos, o policial militar e crooner Samuel Lago. O Sargento Lago, no documentário, também presta depoimento (elogioso, naturalmente) a um personagem que quis deixar de existir. E no barzinho as pessoas continuam bebendo, fumando, conversando. Ignoram o trovador. Elas são as culpadas? O que o senhor fez da própria história?
Jair Rodrigues em "Disparada" http://www.youtube.com/watch?v=AkghEx3g6wI
Geraldo Vandré no show do Sargento Lago http://www.youtube.com/watch?v=519eyCVEliY

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Seu Dorival, não desliga não!


Quando ficavámos tristes, muito tristes mesmo, telefonávamos para o Dorival Caymmi. Cansamos de fazer isso, quando, em São Paulo, nuvens de depressão se formavam sobre nós. Não, nunca fomos amigos íntimos do Caymmi. Ele nem sabia quem éramos, na verdade. Mas atendia, conversava, brincava e às vezes até cantava ao telefone. E o céu azulava.

A idéia de ligar para o Caymmi surgiu no fim da década de 80 e não foi nossa, mas de um pipoqueiro, também cabeça-de-algodão, que fazia ponto na Rua Souza Lima, em Copacabana, onde namorava platonicamente o poeta velho, moreno e sensual. Vendia menos pipoca, mas podia ver o Caymmi a caminho do mar. "Liga, que ele antende e conversa", garantia. A primeira ligação nos custou cinco doses de coragem em um botequim da Cidade Nova.

Sempre nos identificávamos como jornalistas. Caymmi conversava, sem cerimônia, com o repórter de O Globo, de o Estado de S. Paulo, do caderno cultural da Gazeta Mercantil e até do Jornal do Brasil, diário onde jamais trabalhamos. Se nos disséssemos repórter da Folha de Coca, ele atendia, serelepe, da mesma maneira. Adorava falar ternamente dos amigos: da cantora Carmem Miranda, do pintor Clóvis Graciano, do artista plástico Carybé e, principalmente, do escritor Jorge Amado, além de dona Stela e da família. Jamais deixou de atender às ligações. Ele adorava falar!

Que entre neste texto o testemunho do jornalista Marlúcio Luna para atestar a história que se segue.

Marlúcio fora nos visitar, num sábado ensolarado em meados de 2006, em Vila Isabel. Macumbeiro e marrento inveterado, Marlúcio Luna - mar, luz e lua no mesmo nome - acabara de nos presentear com um CD de cantos do candomblé e a conversa tinha, em uma hora, que desaguar em Dorival Caymmi, ministro de Xangô. Levara a Andréia e o Gabriel, então com 3 anos, moleque simpático e personalíssimo, que desdenhava doces e adorava brócolis.

Bebíamos cerveja e cachaça, quando começamos a falar, levianamente, do gênio de João Gilberto. Um homem de esquisitices, o João Gilberto. Uma pessoa pública que jamais dava entrevistas, com uma biografia repleta de clarões, mas um gênio. Achávamos que João Gilberto poderia ser o homem mais triste do mundo, mas quem o conhece garante que não. Confessamos certa vez ao Mário Canivello que lhe invejávamos o emprego: assessor de imprensa de João e de Chico Buarque. Canivello é um administrador de silêncios. Só lhe faltava "assessorar" o Dalton Trevisan, que só fala, enviezadamente, pelos contos, cada vez mais curtos.

Mais exaltados e levianos, à medida que a taxa de álcool subia no sangue, começamos a argumentar que João Gilberto, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé - os baianos todos, os cariocas também - pouco ou nada seriam sem Dorival Caymmi. Contamos ao Marlúcio que já entrevistáramos e de vez em quando falávamos ao telefone com o autor de "Samba da minha terra" e pouco mais de cem canções celestiais. Secretamente, torcíamos para o Marlúcio duvidar. E ele duvidou. E então resolvemos começar o processo pelo princípio mesmo. Ao telefone, teclamos 102 e pedimos à atendente o número de Dorival Caymmi, em Copacabana. Ele nunca fizera segredo do telefone. Assim, quase 20 anos antes, o pipoqueiro conseguira o contato do ídolo, nas páginas amarelecidas da companhia telefônica.

Dois toques, uma moça atendeu. Perguntou quem era. Dessa vez, para espicaçar mais a emoção, dissemos apenas que Cláudio, de Vila Isabel, queria falar com ele. Caymmi, já adoentado, atendeu prontamente.

- Oi, quem está falando?
- Oi, seu Dorival, é o Cláudio, um fã seu, de Vila Isabel.
- Menino, como vai? Tá sol por aí? Rapaz, Vila Isabel, é? Você acredita que conheci o Noel? Sabe que sou fã dele?

Da nossa parte, foi uma tietagem desavergonhada. Contamos ter sido embalados ao som de "Acalanto" - a mais bela cantiga de ninar brasileira que lançou a jovem Dinair Tostes Caymmi, então com 19 anos, ao estrelato. Nana Caymmi entrou pela primeira vez em um estúdio para gravar a canção que o pai compusera para ela dormir. Ele riu, falou da gravação histórica pela Odeon, emendava um assunto no outro.

Marlúcio, olhos esbugalhados, parecia não acreditar. Dissemos que passaríamos o telefone para outro fã e desejamos ao mestre o restabelecimento da saúde. Caymmi não entendeu:

- Meu filho, não desliga não!

Marla tomou o telefone da minha mão, começou a falar com o Caymmi e desmoronou. Choramos. E até hoje a súplica nos remói.

- Meu filho, não desliga não!

Dorival Caymmi, o maior gênio popular do Brasil, morreu em 16 de agosto de 2008, aos 94 anos. Fomos informados da morte naquele sábado de manhã, pelo amigo e também jornalista Eduardo Carvalho. Nada falamos. Trocamos silêncios. Tempos depois, assistimos à reapresentação na TV de uma antiga entrevista de Paulinho da Viola, que ficara anos sem entoar uma canção de Cartola. "Agora, acho que posso". Ele acariciou o violão e cantou lindamente "As Rosas não falam". Silenciamos sobre Dorival. Embora ele jamais saísse do nosso pensamento, as palavras não saíam. Agora, talvez, possamos.

Claudio Renato
Uma cantiga que adormeceu gerações de brasileiros:


quinta-feira, 2 de julho de 2009

Avante, doravante, Passavante


A pedidos, explicamos a origem do nome de batismo deste espaço. Passavante, nas casas reais da Idade Média, era o oficial a quem cabia declarar as guerras e anunciar as pazes, segundo explicação do verbete no dicionário Caldas Aulete. Desde de a Roma dos Césares, o porta-voz exercia papel fudamental na comunicação com o público.
Passar avante, passar adiante. Simples assim, e menos pedante, supomos, que arauto, heraldo, mercúrio e quejandos. Passavantes somos os jornalistas, que odiamos guardar segredos e publicamos as novidades nos jornais, nas revistas, nas emissoras de rádio e televisão, nos livros, nos murais e nos corredores. Passavantes digitais, adoramos a Internet, oceano de informação, onde, raras as exceções, podemos navegar sem passaporto - excelente nome para um espaço virtual de turismo.

Grande Zé Grande


Ao passar dia desses pelo portal do cemitério do Caju, lembrei de alguém muito querido. José Côrtes dos Santos, o Zé Grande, tornou-se legenda da reportagem policial carioca numa época em que não existiam laptops, celulares, computadores. Era um tempo em que valia furtar o boneco (fotografia) das vítimas e até derramar vinho tinto no presunto - simulação de muito sangue, para alegria dos fotógrafos e desespero dos legistas. O estilo profissional, convenhamos, era mais envolvente e romântico, quando ainda se podia pontuar as notícias com exclamações! Textos sangüíneos, apaixonados, do jeito que o Nélson Rodrigues gostava!
De um orelhão descascado, na Rua Gomes Freire, perto da Secretaria de Segurança Pública, Zé ligava a cobrar para a redação e dava o retorno do dia, no meio da tarde. Contava o enredo, ditava nomes e idades, para o redator "preencher a folha de zinco", a manchete do jornal. Sem exagero, Zé Grande conhecia todas as gerações de policiais e bandidos da cidade. Não tinha texto final, mas foi responsável por muitas das boas histórias exclusivas da crônica criminal do Rio de Janeiro, que lhe renderam galhardões da Polícia Militar, do Corpo de Bombeiros, do Juizado de Menores e até um Prêmio Esso. Sua especialidade, dizia, era investigar, encontrar e devolver crianças desaparecidas.
Desengonçado, simpatissíssimo, realmente querido pelos colegas, dromedários (velhos) e focas (jovens), Zé Grande, dois metros de altura, foi assim alcunhado pelo governador Chagas Freitas. Alimentava um mundo de histórias curiosas, ingênuas e inacreditáveis, como as que passo a relatar:Sete horas da manhã, a escuta da redação dos jornais populares estão em polvorosa, despejando cadáveres, estupros e suspeitos que pululavam na madrugada. Zé Grande chegava devagarinho, bebia café sem açúcar, fumava um cigarro, apanhava as pautas, lia, convocava o lambe-lambe, o piloto e seguia célere para o local do crime.
Naquela tarde, em especial, o novo chefe, Manoel Abrantes, sobrecarregara o Zé de pautas. Zé achava que o chefe não gostava dele e a recíproca não poderia deixar de ser verdadeira.
Ao dar o retorno, quase às três da tarde, quando já devia estar em casa tirando uma merecida soneca, Zé ouviu a ordem do chefe:
- Pega um táxi e voa para a Dias da Cruz, porque acabaram de assaltar um banco...E vê se não exagera na nota!
Contrariado, Zé chamou o lambe-lambe, como tratava carinhosamente o fotógrafo que o acompanhava, e sinalizou para o primeiro táxi.
- Segue para o Méier, Dias da Cruz!
No banco traseiro, Zé Grande pôs-se a desabafar com o companheiro de jornada. Quando nervoso, a voz do repórter tonitroava:
- É uma falta de respeito, a gente nem teve tempo para almoçar! Já fiz um estelionato, um homicídio, um estupro e agora esse cara manda a gente fazer um assalto na Dias da Cruz!
- E tá virando rotina - provocou o fotógrafo
Apavorado, o motorista acompanhava o diálogo pelo retrovisor, já suando em bicas!
- Quarta-feira, foi a mesma coisa. A gente fez aquele assalto à joalheria na Conde Bonfim, complicado, com reféns, e o cara ainda manda a gente fazer uma chacina em Campinho, quatro presuntos de uma vez só! - bradava Zé Grande, voz de trovão - Eu não sou cupincha dele, não sou! - repetia, indignado.
Bagas de suor escorrendo pela testa, o motorista só respirou aliviado quando percebeu que se aproximava de um quartel na Polícia Militar . Ali, não conversou. Cantou pneu e embicou com tudo para cima dos sentinelas, que, por pouco, não abriram fogo.
- Calma, calma! Estou aqui com dois ladrões, estupradores, assassinos!Foram todos rendidos, fichados e guardados na sala do oficial de dia, sob a mira de duas carabinas.
O mal-estar só foi dissipado com a chegada do comandante do batalhão, amigo de Zé Grande desde a época em que servira com o ajudante-de-ordens do Palácio Guanabara.
Ainda estava eu nos cueiros, quando Zé Grande protagonizou outra história memorável na crônica da reportagem policial. Ele costumava vender plantões aos colegas, para complementar o ordenado tísico. Trabalhava de manhã, de tarde, de noite. Dormia muito pouco.
Certa vez, no plantão noturno, Zé recebeu o telefonema do próprio chefe da polícia. Tragédia em Copacabana, na Rua Barata Ribeiro 200, conhecido ponto do submundo. Voou para o local e lá encontrou dois corpos. O policial militar, de plantão, deixou Zé entrar no conjugado onde ocorrera o crime. Cansado, Zé aboletou-se na poltrona, ao lado dos cadáveres, e se entregou aos braços de Morfeu. O sono pesado arrastou-o para o chão.
Quando chegou à cena da tragédia, o perito levou um susto: "Disseram que era duplo homicídio, mas é um triplo!". A notícia correu pelo calçadão de Copacabana, e os jornais trataram de mudar o clichê. "Três mortos em tragédia na Zona Sul".
Na época, os legistas se valiam uma varinha, com a qual cutucavam as perfurações dos cadáveres, para identificar o calibre dos projéteis. Quando espetaram-lhe o suvaco, com o tal artefato, Zé estrebuchou violentamente.
- Ressuscitou!!! - berrou o legista apavorado.
Zé estremunhou, olhou ao redor e só foi perceber a confusão quando comprou um exemplar do concorrente.
Quem quiser conhecer o Zé Grande, sugiro que vá ao Caju, no Dia de Finados. Ele é o locutor oficial do cemitério há 30 anos. Foi por isso que me lembrei dele outro dia, quando passava por ali. Seu ofício consiste em orientar, pelo alto-falante, as famílias que visitam o campo santo. No fim do dia, com aquele vozeirão, entoa a Oração da Saudade.
José Côrtes dos Santos, de 78 anos, aposentou-se, depois de mais de meio século de labuta em redação. Hoje vive saudável, tranqüilo e alegre na aprazível cidade serrana de Miguel Pereira.
Claudio Renato

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Paulo Coelho e o nosso "furo" digital







Na quinta-feira e na sexta-feira, 25 e 26 de junho de 2009, o "Jornal Nacional" e o "Bom Dia Brasil", da TV Globo, exibiram trechos de uma entrevista exclusiva com o médico e editor de livros iraniano Arashi Hejazi, que tentou socorrer Neda Aghan Soltan. Baleada no peito, a jovem mártir dos protestos da oposição ao governo de Mahmoud Ahmadinejad, presidente do Irã reconduzido ao cargo por uma eleição supostamente fraudulenta, agonizou diante das câmeras. As imagens que circularam pela Internet abalaram o mundo, mas faltava alguém de carne e osso que tivesse presenciado aquelas cenas aterrorizantes para dar um testemunho convincente sobre a crise politica que tomou conta daquele país.

A imprensa estrangeira está proibida de trabalhar livremente no Irã. E o que se tinha, antes do depoimento de Arashi Hejazi, amigo do escritor brasileiro Paulo Coelho? As imagens na Internet, contestadas, como apócrifas, pelas autoridades iranianas. Qual jornalista americano, europeu ou asiático não gostaria de publicar, em primeira mão, testemunho tão importante? Produzimos esta entrevista sentados em frente a um dos computadores da redação da TV Globo, na rua Von Martius, no Jardim Botânico, no Rio de Janeiro, sempre incentivados pelo editor-executivo do Bom Dia Brasil, Miguel Athayde.


Havia uma semana, Paulo Coelho escrevera, em correspondências nos sítios de relacionamento, que conhecia o médico que tentara socorrer Neda. Quase ninguém acreditou. Ouvimos muitos colegas dizerem que se tratava de mais um ardil publicitário do autor de "O Alquimista", que já vendeu mais de 100 milhões de livros, traduzidos para 67 idiomas em 150 países. Pode-se gostar ou não do Paulo Coelho. Confessamos que, do pouco que lemos, não gostamos. Mas é, no mínimo, imprevidente imaginar que, sob o risco de desmoralização internacional, ele fosse capaz de inventar uma história de tamanha repercussão para se promover e, por causa disso, praticamente ignorar-lhe o depoimento.

Os companheiros do "Bom Dia Brasil" discutiram em reunião de pauta - dois dias antes de a entrevista de Arashi Hejazi ser publicada, com exclusividade, pelo "Jornal Nacional" - sobre a possibilidade de se veicular uma entrevista com Paulo Coelho, que, até então, se recusara a dar detalhes sobre o médico, por questão óbvia de segurança. Hejazi ainda estava em território iraniano. Nosso objetivo inicial seria, então, conseguir um "audiotape" - uma conversa por telefone gravada - com o Paulo Coelho.

Como costumamos fazer, depois de oferecermos as pautas do Rio para o telejornal, saímos à sorrelfa e corremos para o computador. Digitamos no "google" a expressão "e-mail de Paulo Coelho". Imediatamente, apareceram duas opções: no sítio oficial do escritor e em outro, intitulado "Caminho de Santigo". Habilitamo-nos nas duas páginas e enviamos solicitações de contatos telefônicos do escritor para que ele pudesse comentar os graves distúrbios sociais em Teerã. Naquela tarde, os coordenadores dos sítios nos responderam. O "Caminho do Santiago" apenas resgistrava o recebimento da nossa mensagem eletrônica. Da página oficial de Paulo Coelho, uma senhora chamada Belina nos dizia que, naquele momento, o escritor nada comentaria sobre a crise no Irã, mas garantia que a mensagem chegaria ao destinatário. A moça dava uma informação importante: dizia que até às 14 horas do dia seguinte o tal médico deveria ter conseguido sair do Irã. Belina, acreditamos, é uma espécie de "gatekeeper", a pessoa responsável por selecionar, dentre os milhares de e-mails encaminhados diariamente, aqueles que chegarão efetivamente ao escritor. Agradecemos a atenção e a informação. E ficamos convencidos de que Paulo Coelho, cujos livros freqüentam a cabeceira do ex-presidente dos Estados Unidos Bill Clinton e da pop star Madonna, estaria negociando a retirada do médico do território iraniano.

À noite, quando já nos preparávamos para dormir, recebemos e-mail do próprio Paulo Coelho. Ele alegava que, por questões éticas, não daria entrevista antes do médico, mas prometia que nos ajudaria a conseguir a cobiçada conversa com o homem que tentou salvar Neda. Era muito mais do que pediramos. Assim, quando chegamos à redação, às 8h30 de quinta-feira, contamos a história para o Miguel Athayde, que ficou eufórico. Participamos normalmente da reunião de pauta, que acaba às 10h45min. Miguel chegou a comentar com o correspondente da TV Globo em Londres, Marcos Losekann, sobre as nossas investidas do Brasil, mas o enviado, no primeiro momento, não acreditou muito na história. Por volta de 11h, ao checarmos a caixa de correspondência eletrônica, qual não foi nossa surpresa ao recebermos e-mail do Paulo Coelho com os telefones móvel e fixo do médico, já agora com nome e sobrenome: Arashi Hezaji!? Ficamos tão emocionados com aquela informação, que respondemos incontinenti: "Paulo Coelho, com todo respeito: você é o cara!". Imediatamente, passamos a informação para o Miguel Ahayde, que ligou, em seguida, para o Losekan com a novidade. Depois de percorrer mais de 80 quilômetros, de Londres a Oxford, Losekann entrevistou Arashi Hejazi. Simples, assim. Nunca foi tão fácil.
Claudio Renato
Para assistir à entrevista exclusiva do "Jornal Nacional" com o médico Arashi Hejazi, acesse http://jornalnacional.globo.com/Telejornais/JN/1,,MUL1208369-10406,00-ENTREVISTA+EXCLUSIVA+COM+MEDICO+IRANIANO.html