"Mais do que o pensamento do povo que nunca voa
Que nasce com qualquer estrela
Que nada em qualquer lagoa
Que brinca como um cavalo
Garupa por todo caminho
No pingo de qualquer ribeira
No facho de qualquer espinho
No rabo de qualquer cometa
E na maleta figuras do mundo vão levar..."
("Pepitas de Fogo", Zé Ramalho da Paraíba)
1 - CONTATOS IMEDIATOS
O casal Janete Clair e Dias Gomes é responsável pela terrível crise renal que, na primavera de 1973, torturou uma pobre criança de 9 anos em Brás de Pina, subúrbio do Rio. Muitas outras, nação afora, devem ter sofrido semelhante tormento. Depois da extraordinária "Selva de Pedra", vinha a mulher do Dias Gomes com "O Semideus" (estrelada por Tarcísio Meira, Francisco Cuoco e Glória Menezes), quando a novela das oito começava às 20h; o marido da Janete sacava, duas horas mais tarde, "O Bem Amado" (com Paulo Grancindo, Lima Duarte e Emiliano Queiroz). Quem tende a ter pedra nos rins, sabe que não se pode segurar, de jeito e maneira, sob pena de se urinar coca-cola. E quem diz que conseguíamos sair da frente da televisão? A gente se contorcia até não aguentar mais. Era arriscado perder uma cena e, com ela, o delicado sentido da trama.
Tal situação crítica, no nosso caso, só voltaria a se desenvolver, entre outubro de 1976 e fevereiro de 1977, quando Gilberto Braga ousou concorrer com a Ave Maria e adaptou para a TV o romance "Escrava Isaura", de Bernardo Guimarães. As vias urinárias quase entupiram de cálculos renais. Para acompanhar as maldades do senhor Leôncio (Rubens de Falco) e as desventuras da escrava branca (Lucélia Santos), só com uma caneca de chá de quebra-pedras.
Outros tempos, os das obras fechadas, roteiros inéditos ou baseados em textos literários. Os autores, redatores e supervisores respondiam pelo sucesso ou pelo fracasso. Davam a cara a tapa. Ainda não existiam telefonia celular, TV por assinatura, Internet. Ainda não havia se disseminado o conceito de interatividade, que surgira, no começo daquela década, em âmbito acadêmico, no contexto das críticas aos meios e tecnologias de comunicação unidirecionais.
Para azar dos nefrologistas, hoje não é mais assim. Basta assistir a cinco capítulos de uma telenovela - intercalados no começo, no meio e no fim - para, sem necessidade de gravá-los, se perceber como a história começou e adivinhar como vai acabar. Pode-se ir ao banheiro à vontade, passear no parque, viajar para o Quelimane, que, na volta, as coisas na ficção estarão sob controle. E ainda é possível, para o consumidor comum, interferir do meio para o fim: mata-se o vilão, salva-se a heróína, ressuscita-se o personagem morto injustamente, por insensibilidade daqueles que assinam o roteiro (seis, sete, oito parceiros, como compositores de sambas de enredo).
Acredita-se que o Brasil é capaz de escrever uma novela a 50 mihões de mãos. Pouco importa que sejam histórias medíocres ou tão ruins que parte significativa dos criadores abandone a criatura na fase de crescimento. E se a criança morrer de inanição, afinal, a culpa é do público. Quem pariu Mateus, que o embale, certo? Coitado do Shakespeare se vivesse na República Democrática do Abandono e tentasse emprestar o inexcedível talento à teledramaturgia nacional. Certamente, o bardo de Avon não conseguiria sequer a aprovação da sinopse de "Romeu e Julieta" - a popularíssima tragédia do século XVI, a mais bela desventura de amor nunca antes contada na história desse mundo. Imaginem se o brasileiro urbano médio, da Vila Mariana, São Paulo, deixaria um rapaz de 17 anos e uma menina de 14 se matarem no ápice de um mau-fado envolvendo duas poderosas famílias rivais! A lógica, mais de 400 anos comprovam, não é da audiência, mas dos programadores e gestores da comunicação, ávidos por pontinhos preciosos no Ibope. Apostam-se todas as fichas no sucesso fácil da interatividade. Quando é 0800, Lobão, vá lá! O pior é o 0300: a gente ainda paga por isso!
2 - O DESESPERO
Vocês sabem com quem estão falando? Se souberem, pelo amor de Deus, nos digam, nos contem, nos ajudem! Porque não atinamos quem são. E está muito difícil aprender-lhes o idioma. Sabe-se que, desde o poeta romano Juvenal, crítico e autor da fórmula panem et circenses, na passagem do primeiro para o segundo século da Era Cristã, se deliciavam e se alienavam com o pão e o circo oferecidos pelos imperadores. Provavelmente, ainda se alienam, mas jamais poderíamos imaginar que chegariam ao ponto de preferir ao hábito adquirido ver o circo pegar fogo e comer pão torrado só porque agora têm uma merreca a mais para uma margarinazinha rançosa.
O pão que durma, mas o bolo publicitário não pode solar. O show tem que continuar! Mas é muita gente pra comer e até azedar o bolo, como o You Tube, website que permite aos usuários carregarem e compartilharem mais de 30 mil vídeos diariamente em formato digital. Os profissionais de comunicação estamos perdidos, principalmente depois que a tal classe C (o pessoal com renda familiar mensal média de R$ 1.200) se tornou, nos últimos dez anos, protagonista no cenário econômico e principal mandatário dos meios de comunicação aberta. É uma gente que, não faz tanto tempo, quase nada tinha, à exceção do prosaico radinho de pilha e do aparelhozinho de TV de 14 polegadas, que captava, com relativa perfeição, as ondas hertzianas de uma só estação. Mas hoje já possui celular com múltiplas funções, sinais de TV por assinatura (clandestino ou não) e até de Internet, a maior revolução na história da Humanidade desde as Grandes Expedições Marítimas. Na guerra acirrada pela audiência dos telespectadores, leitores, ouvintes, é preciso aplacar a fome dos novos bárbaros, antes que nos devorem com as armas mais arrasadoras de que dispõem: o seletor, o controle remoto, o dial ou o mouse.
Talvez o diabo não seja tão feio, mas a novidade apavora. E o pior é que os hunos da classe C arrastam com eles os visigodos da classe D e até os vândalos da classe E. Os programadores e comunicólogos decidiram se debruçar na palavra mágica, povo. Precisamos ser populares a todo custo. E tome-lhe Big Brother, A Fazenda, Faustão, Gugu, Galvão, Pânico, Samambaia, Mulheres Melancia, Jaca, Moranguinho, um pomar inteiro de "beldades", tudo sob os auspícios da interatividade. Você decide, meu caro!
Verdade é que a panaceia interativa não apresenta os efeitos desejados. A febre não cede, o organismo não reage como gostaríamos. O que essa gente beduína quer para se manter fiel? Façam um seguro contra incêndio e podem sair de casa, viajar, mas mantenham os aparelhos ligados!
O que não percebemos, diante do caleidoscópio que nos parece o gosto popular, é que, com a interatividade, nos tornamos cada vez mais obsoletos e desinteressantes. Menos criativos e ousados. São os números nervosos do Ibope minuto a minuto confundindo, irritando, sobressaltando todo mundo. Cavamos a própria sepultura em vão, enquanto os hunos, os visigodos e os vândalos, com a sabedoria debochada dos deuses gregos, zombam do nosso desespero.
3 - A CONSTATAÇÃO
Praticamente em todas as rodas de jornalistas, publicitários, programadores, comunicólogos e "gestores" de mídia, a questão fundamental hoje é saber o que é popular. Fala-se em bundas, crimes, pegadinhas, pagode, promoções, brindes, direito do consumidor (quase nunca do cidadão), curas de doenças. E o foco é sempre São Paulo, a meca nacional do Instituto Brasileiro de Opinião Pública! A paulistinização da cultura seria muito boa se trouxesse, para todos os lares do Brasil, em tela cheia, o Bexiga, o Adoniran Barbosa, os Demônios da Garoa, o Germano Mathias, o Hervê Cordovil, o Noite Ilustrada e todos aqueles ritmos maravilhosos que animam os botequins da Rua Aurora e fazem de Vinícius de Moraes o túmulo do samba. Porque a São Paulo dos Jardins e da Vila Madalena é tão insossa quanto o Rio da Barra da Tijuca e da Nova Lapa.
O que é ser popular? (sugere um título da coleção Primeiros Passos)
Quem assistia ao projeto Aquarius, na Quinta da Boa Vista, em São Cristóvão, lembra que o que mais chamava a atenção era o mundo de gente que chegava de trem da Zona Norte e da Baixada Fluminense, as regiões mais pobres do Rio de Janeiro. Em 1979, mais de 200 mil pessoas lotaram a Quinta para, em silencioso respeito durante e delírio esfuziante no final, prestigiarem o maestro Isaac Karabtchevsky, a Orquestra Sinfônica Brasileira e o coral da Bayer, com 180 vozes masculinas. O sucesso de público era tamanho que a então Rede Ferroviária Federal aumentava o número de composições de trens suburbanos para dar vazão àquele contingente que se comportava exemplarmente.
Para os que gostam de samba, uma visita a qualquer roda de subúrbio carioca - sugerimos a Favela da Matriz, no Engenho Novo - demonstra a popularidade de Chico Buarque, Paulinho da Viola, Dorival Caymmi, Ismael Silva e Noel Rosa. Todos são cantados alegremente, embora quem cante e acompanhe, às vezes, nem saiba os nomes dos autores das canções. Simonal regia coro de 30 mil vozes no Maracanazinho. Orlando Silva, cantor das multidões, mal conseguia andar nas ruas. O público da Festa da Penha e as pastoras dos sambas elegiam os sucessos que perduram até hoje. Roberto Carlos, aos 25 anos, reunia o grupo de amigos mais próximos e escrevia cartas fictícias para as emissoras de rádio, com exigências para que suas músicas fossem executadas, artificio de marketing tão ingênuo que chega a ser comovente. A mídia depende muito mais do Roberto Carlos do que o contrário.
Populares são os filmes de Drácula e King Kong, dos mais sensuais da história do cinema. É o gurufim, enterro com festa, como foi, às vésperas do carnaval de 1949, o de Paulo da Portela, que inundou Madureira de gente bebendo e cantando. Os cortejos fúnebres - sentidos e desesperados - também consagram definitivamente, como os de Getúlio e Carmem Miranda.
Seja de um condutor de ônibus, de uma moça distraída, de um vendedor de picolé, o assovio é a mais sublime e consagradora manifestação popular de apreço a uma canção. O dramaturgo Nélson Rodrigues, por ocasião do sucesso de "A Banda" (1966), de Chico Buarque, escreveu um texto precioso em que sustentava que, com o guri de olhos verdes, o povo brasileiro reapreendia a assobiar. Ele mesmo, Nélson, é popularíssimo com os seus Sobrenatural de Almeida e Boca de Ouro e suas damas do lotação, bonitinhas, ordinárias, engraçadinhas.
William Shakespeare, Getúlio Vargas, Padre Cícero, Lampião, Luiz Gonzaga, o Papa, os Beatles, Elvis, Marilyn, Michael, Roberto Carlos, Simonal, Chico Buarque, Isaac Karabitchevsk, Jorge Amado, Nélson Rodrigues, Garrincha, Orlando Silva, Dorival Caymmi, Carmem Miranda, Ismael Silva, Paulo da Portela, Benito de Paula, Belchior, Fagner, Jorge Ben, Papai Noel, Conde Drácula, King Kong e Cinderela são apenas alguns exemplos de extrema popularidade em épocas distintas. São obras fechadas e personalidades abertas ao sucesso e ao fracasso. Autênticas.
O assunto parece não ter fim. Muito pano pra manga. Voltaremos a ele. É quase meia-noite. E amanhã é mais um dia de trabalho, em que se tentará, digna ou covardemente, atrair e manter a sua atenção. Seu Dorival, não desliga, não!
Zé Ramalho, cantor e compositor de "Pepitas de fogo"